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Prescrição do beneficiário. Seguros DPVAT, vida e acidentes pessoais
Por: Ricardo Bechara Santos
Surge discussão quanto à prescrição da pretensão do titular do benefício garantido pelo seguro DPVAT, e, a reboque, pelos seguros de vida e acidentes pessoais, tentando alguns, poucos é bem verdade, enquadrá-la no prazo geral de 10 anos do art. 205 do Código Civil, já que, para estes, não haveria prazo específico no rol taxativo do art. 206 do mesmo Código, talvez por não conseguirem ler, com olhos de ver, o disposto no seu § 3º, inciso IX, que estabelece a prescrição de 3 anos para os beneficiários, de seguros de vida/acidentes pessoais (seguros de pessoa) e terceiros prejudicados no caso de seguros de responsabilidade civil legalmente obrigatórios, deduzirem sua pretensão contra o segurador, pretensão essa que, tanto nos seguros de pessoa quanto nos de responsabilidade civil legalmente obrigatórios, são dirigidas diretamente contra o segurador (art. 788 e 789 do CC).
Uns, tentando enquadrar o seguro DPVAT no prazo geral prescricional do art. 205 do Código por não o perceberem na modalidade de seguro de responsabilidade civil, mas tipicamente como seguro de pessoa. Outros, procurando justificar esse enquadramento no prazo geral por acharem que não estaria tal seguro tipificado no mencionado art. 206, § 3º, inciso IX, do Código, simplesmente por uma questão de vírgula.
I – Entendo que o prazo prescricional no DVAT seja mesmo de 3 anos por compreender que tal seguro, embora com matizes de seguro de pessoa, é mais predominantemente um seguro de dano, integrando a família dos seguros de responsabilidade civil legalmente obrigatório, por isso enquadrado no prazo específico no art. 206, § 3º, inciso IX, do Código Civil. Senão, vejamos.
Os danos pessoais causados a terceiros por veículos automotores no Brasil, são cobertos tanto pelo Seguro Facultativo de Responsabilidade Civil (RCF) quanto pelo seguro legalmente obrigatório de danos pessoais (DPVAT). O primeiro, previsto no art. 787 do Código Civil e normas infralegais emanadas dos órgãos regulatórios do setor e inteiramente estruturado como seguro de responsabilidade civil puro; o segundo, previsto no art. 788 do mesmo Código e regulamentado pela Lei 6.194/74 e normas infralegais dos mesmos órgãos regulatórios, porém estruturado, por interpretação, como que seguro híbrido de responsabilidade civil objetiva (independente de apuração de culpa) e de acidentes pessoais, misto portanto de seguro de pessoa e de dano, mas predominantemente seguro de dano como soem ser os seguros de responsabilidade civil, seja facultativo ou obrigatório, porque os dispositivos do Código Civil, antes citados (arts. 787 e 788), estão alocados na seção do Código reservada aos seguros de dano, tanto assim que a lei específica que rege o DPVAT (Lei 6.194/74, recepcionada pelo art. 777 do Código Civil mas com aplicação deste no que com aquela não for incompatível) prevê, expressamente, em seu art. 8º, o direito sub-rogatório do segurador, enquanto expressamente vedado nos seguros de pessoa pelo Código Civil (art. 800); também porque, sintomaticamente, opera a primeiro risco do seguro facultativo de responsabilidade civil cuja indenização é dedutível da do seguro obrigatório em comento (DPVAT), fato aliás reconhecido pela jurisprudência copiosa, por isso sumulada, do STJ (verbete nº 246), o que jamais poderia suceder com qualquer seguro de pessoa, circunstância que o contamina também da função indenizatória própria dos seguros de dano, ainda que por valores limitados, que não ocorre nos seguros de pessoa. Seria ele seguro de responsabilidade civil atípico, mas somente porque cobre também os danos causados ao condutor do veículo, quer dizer, ao próprio causador, confundindo-se nesse ponto com o seguro de acidentes pessoais. Mas nem por isso se lhe retira o brasão da família dos seguros de responsabilidade civil legalmente obrigatórios.
Realmente, o proprietário do veículo causador, ao contratar o seguro DPVAT, aliás obrigatoriamente, realiza uma estipulação em favor de terceiro, terceiro beneficiário este de regra não conhecido no momento da celebração do contrato mas tão somente por ocasião do sinistro (salvo o proprietário quando estipula em favor dele mesmo), que, sendo titular do benefício, tem ação direta contra a seguradora, diferentemente do seguro de responsabilidade civil facultativo (de dano puro), que tem por objeto, não estipular benefício a terceiro, mas a proteção do patrimônio do próprio segurado proprietário do veículo, visando à reposição, por reembolso, do valor desfalcado pelo desembolso da indenização do dano causado a terceiro.
O DPVAT mostra seu lado, mais tênue, de seguro de acidentes pessoais também porque se utiliza dos critérios e percentuais adotados para o seguro de acidentes pessoais na apuração da invalidez, valendo-se da mesma tabela deste seguro, entre nós conhecida como “tabela de açougueiro”, afinal, as coberturas impostas para o seguro DPVAT, por valores limitados, seriam, mutatis mutandis, as mesmas oferecidas, por valores livres, pelo seguro de acidentes pessoais (morte por acidente; invalidez por acidente; reembolso de despesas médicas e hospitalares por acidente), ambos não cobrindo danos materiais.
É seguro sui generis de responsabilidade civil porque concebido, com fito eminentemente social, de transferir para o segurador, os efeitos econômicos dos riscos da responsabilidade civil objetiva do proprietário (teoria do risco), de reparar os danos que sua máquina perigosa possa causar às vítimas desafortunadas do trânsito independentemente de apuração de culpa. Embora não seja classificável como seguro de responsabilidade civil puro, o DPVAT por outro lado não seria também seguro tipicamente de pessoa porque escaparia, a rigor, da definição que os arts. 789 e seguintes do Código Civil reservara para tal modalidade de seguro, na classificação dicotômica do Código Civil (de dano e de pessoa), a começar pelo fato de não haver a estipulação livre de um capital segurado, ou, como dito, pelo fato de o DPVAT, ao contrário do seguro de acidentes pessoais, admitir a sub-rogação (vedada nos seguros de pessoa consoante o art. 800 do CC), também pelo fato, repita-se, de operar a primeiro risco do RCF (Seguro de Responsabilidade Civil Facultativo), este que também é, desassombradamente, seguro de dano na classificação do Código Civil.
Nada obstante tudo isso, quer dizer, diante de toda essa hibridez, meio que camaleônica, do seguro DPVAT – mas que tem seu lado mais robusto mesmo a feição de um seguro de responsabilidade civil, e o mais flácido a de um seguro de acidentes pessoais –, é até possível que, para a SUSEP, seja ele considerado, por ficção, também seguro de pessoa, a julgar pelos precedentes de seus pareceres internos, inclusive de sua douta Procuradoria Geral, que ganharam caráter normativo, quando se pautaram nessas premissas para admitir que as seguradoras que operam exclusivamente em seguros de pessoa possam operar em DPVAT, integrando o respectivo Convênio pelo qual esse seguro é operado no Brasil. Nem por isso, entretanto, a SUSEP desconhecera a natureza, aliás precedente e genuína, também de seguro de dano ao DPVAT, do contrário, as seguradoras que operam exclusivamente seguros de dano não poderiam estar operando referido seguro, por conseguinte integrando o Convênio de operação desse seguro.
A propósito, a 3ª Câmara Cível do TJ-GO, recentemente, negou pretensão de beneficiário do seguro DPVAT, face o prazo prescricional de 3 anos previsto no novo Código Civil. Para o relator, desembargador FELIPE BATISTA CORDEIRO, o autor da ação entrou com o pedido em 20/04/06, sendo que o acidente ocorreu em janeiro de 2003. Segundo o Desembargador, de acordo com o novo Código Civil, o prazo de prescrição é de três anos, ao contrário do Código de 1916, que estabelecia prazo de 20 anos. O magistrado reforçou que o atual diploma legal entrou em vigor em 11/01/03 e como o fato ocorreu em 8/01/03, não havia ainda decorrido mais da metade do prazo prescricional estabelecido anteriormente para a pretensão – segundo regra de transição do art. 2.028 do CC –, caso em que é cabível a aplicação de novo prazo, conforme dispõe o artigo 206, de três anos.
Em igual sentido o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, conforme dá mostra a decisão exarada no recurso de Apel. nº 2008.001.03924, da lavra do eminente Desembargador EDSON VASCONCELLOS, cuja ementa permito-me transcrever:
“SEGURO OBRIGATÓRIO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PRESCRIÇÃO -Pretende o autor obter complementação de indenização referente ao seguro DPVAT a que alega fazer jus em virtude de invalidez permanente acarretada por acidente automobilístico. O sinistro ocorreu em 26 de setembro de 2002, quando vigente o Código Civil de 1916, aplicável às ações pessoais a prescrição vintenária do art. 177, tendo sido proposta ação no dia 28 de dezembro de 2006. Desta forma, verifica-se ter a apelante proposto ação após decurso do prazo prescricional de 3 (três) anos disposto no art. 206, § 3º, IX do Código Civil de 2002, já que não transcorrido mais da metade do lapso prescricional estabelecido no Código Civil de 1916 quando da entrada em vigor daquele diploma. Negado seguimento ao recurso”.
II – Superada ou vencida a tese do prazo prescricional pelo fato de o DPVAT não se enquadrar como um seguro de responsabilidade civil legalmente obrigatório, mas como seguro de pessoa, argua-se apenas para argumentar, de qualquer forma a prescrição da pretensão do beneficiário, seja ele o proprietário do veículo ou o terceiro, a vítima ou seus dependentes enfim, estaria enquadrada no art. 206, § 3º, inciso IX, do Código Civil, e não seria apenas por uma vírgula que tal enquadramento não se daria. Do contrário, não fosse o enquadramento no prazo trienal aqui referido, a prescrição jamais seria de 10 anos, mas de 1 ano, que é o prazo que rege a prescrição entre segurado e segurador, porque, não nos esqueçamos, sendo o seguro DPVAT uma estipulação em favor de terceiro, quer dizer, um seguro a conta de outrem, a que alude o art. 767 do Código Civil, o titular do beneficio seria equiparado ao segurado, e o proprietário do veículo apenas o estipulante, por isso sua pretensão prescreveria em apenas em 1 ano não fosse o prazo de 3 anos que o código reservou para a prescrição da pretensão dos beneficiários em geral, inclusive dos beneficiários dos seguros de responsabilidade civil legalmente obrigatórios, especificado no sobredito art. 206, § 3º, inciso IX. Senão, vejamos.
Com efeito, o direito está muito além da simples literalidade, por isso ciência que demanda interpretação, pela qual se busca o verdadeiro sentido do preceito legal, mormente no Código Civil, como sistema aberto de cláusulas gerais, que oferece um campo mais elástico de atuação para o intérprete, inclusive no que tange à prescrição, que as novas tecnologias da informação e comunicação tendem a reduzir os prazos, a começar pelo próprio prazo geral, antes de vinte anos hoje reduzido para dez anos.
A interpretação do direito, enfim, realiza-se não como mero exercício de leitura de textos normativos, para o que bastaria ao intérprete ser alfabetizado (EROS GRAU). Razão pela qual a lei não pode, nem deve, ser interpretada apenas levando em conta as posições das vírgulas, mas pelas regras mais amplas de hermenêutica.
Aqui, se acaso não se operou um erro material na colocação das vírgulas, de todo modo não veria de outra maneira o verdadeiro sentido que o legislador pretendeu imprimir ao § 3º, inciso IX, do art. 206 do Código, senão o de regular em três anos o prazo de prescrição da pretensão do beneficiário em qualquer modalidade de seguro, inclusive vida e acidentes pessoais, justamente porque, face a regras comezinhas de hermenêutica, o legislador não usa de palavras inúteis, desnecessárias, pois se desejasse dizer que a prescrição de três anos fosse apenas para as hipóteses de seguro de responsabilidade civil obrigatório, teria se utilizado somente da palavra terceiro, porque este encarna exatamente a figura do beneficiário nos seguros de responsabilidade civil. O beneficiário de um seguro de RCTR-C, por exemplo – catalogado no art. 20 do DL 73/66 como seguro de responsabilidade civil legalmente obrigatório – é o terceiro, que não foi parte do seguro de transporte entre segurador e transportador.
Daí, entendo que a melhor interpretação que se possa dar ao § 3º, inciso IX, do art. 206 do CC, é a de lê-lo sem a segunda vírgula (meramente respiratória), até para que não se estabeleça, indevidamente, uma inutilidade à palavra beneficiário, que não estaria ali desnecessária ou inutilmente, mas para efetivamente significar a prescrição trienal da pretensão do beneficiário, nos seguros de pessoa e nos seguros legalmente obrigatórios de responsabilidade civil, ainda que híbrido de seguro de responsabilidade civil (seguro de dano) e de acidentes pessoais (seguro de pessoa). Não sem lembrar de que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são também ingredientes de uma boa interpretação. Bem a propósito, vale acrescer que um dos acórdãos que deram azo à súmula 101 do STJ, que estabelece a prescrição ânua nos seguros em grupo, vem assim ementado:
“SEGURO FACULTATIVO DE VIDA E ACIDENTES PESSOAIS EM GRUPO. PRESCRIÇÃO. PRAZO. A ação do segurado ou do beneficiário contra a seguradora, na hipótese acima referida, está sujeita ao prazo prescricional anuo, contado a partir do dia em que tiveram conhecimento do fato, ex vi do art. 178, § 6º, II, do Código Civil de 1916. Recurso Especial da Seguradora conhecido e provido”. (Resp. 43.362-2, 4ª T. Rel. Min. Antônio Torreão Bras).
O acórdão fundamenta-se na inteligência do aforismo nemo dat quod non habet, consoante o qual a ninguém é dado transferir mais direito do que possui, portanto, se o DPVAT é, além de seguro obrigatório de responsabilidade civil objetiva, não deixa de ser também uma estipulação em favor de terceiro, quer dizer, em favor de um beneficiário, embora só conhecido por ocasião do sinistro. Assim é que, se o proprietário do veículo que contratou o seguro, na condição também de estipulante e segurado, não poderia transferir para outrem prazo maior do que teria para deduzir sua pretensão ao segurador, isto é, 1 ano, conforme art. 206, inciso II, seja pela letra “a” (seguros de responsabilidade civil) seja pela letra “b” (demais seguros). Se o segurado não possuísse mais que um ano para acionar o seu direito material contra o segurador, com mais que isso também o seu beneficiário não poderia contar, a partir do conhecimento da morte de seu instituidor. Se o beneficiário adquire os direitos decorrentes de ato do segurado instituidor, sujeito, portanto, às regras de aquisição de direitos, não poderia ele ter mais direitos que o próprio instituidor, como por exemplo prazo de prescrição maior que o de um ano.
E só não seria de um ano o prazo prescricional da pretensão do beneficiário porque o CC conferiu a ele, prazo maior, no caso três anos, e não o prazo geral de dez anos.