A anencefalia do feto e os seguros de vida, de acidentes pessoais e DPVAT

RICARDO BECHARA SANTOS

 

Diga-se de pronto que este tema, embora de incidência prática escassa no dia-a-dia das seguradoras, serve para ilustrar o quão rica é a instituição do seguro no seu envolvimento com situações jurídicas das mais variadas, daí se dizer que o seguro acaba se relacionando com todos os ramos do direito – civil, processo civil, criminal, trabalhista, administrativo, constitucional etc. – e com a ciência em geral – a medicina, a matemática, a atuária, a engenharia, a economia etc. Daí haver me tornado um amante inveterado dessa notável e instigante instituição que, apesar de sua inexorável importância, ainda se mostra como uma ilustre desconhecida, ainda não suficientemente difundida entre o público em geral, razão talvez de muitas das suas incompreensões. E a situação jurídica do feto anencéfalo, por ter vindo a público a partir de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, despertando tamanho interesse da imprensa e das pessoas em geral, nos dá a oportunidade de trazê-la também a debate no que tange à sua relação jurídica com o seguro.

 

Em data recente, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, sob pressão dos mais variados segmentos da sociedade, viu-se diante da questão relacionada ao “aborto” de fetos sem cérebro, tendo como discussão central o fato de se tratar de morte intra ou extra-uterina, pondo-se em dúvida o direito da mulher de decidir ou não sobre o que alguns pensamentos mais conservadores da sociedade passaram a chamar de “eutanásia pré-natal”, e outros ainda mais severos, de “iniciativa fratricida”, e outros ainda mais dramáticos, de “mortandade de crianças não nascidas”.

 

De um lado a tese de que o direito positivo brasileiro já consagra, ainda que para efeito de doação de órgão para transplante, o critério objetivo da morte cerebral (art. 3º da Lei 9.434/97, que dispõe ser possível o transplante após a constatação da morte encefálica), por isso incontestável seria a inexistência de vida intra-uterina para o feto que sequer tem cérebro, acrescendo-se que, mesmo que assim não fosse, a ciência já decretara a sua inviabilidade, afirmando-se que a “anencefalia seria uma condição fatal, incompatível com a vida em cem por cento dos casos”, pois o feto tem “morte” intra-uterina ou “sobrevive” por pequeno hiato de tempo após o parto, eis que, ainda que escapasse para respirar o ar de fora, tal apenas se daria, momentaneamente, em função de o útero materno funcionar como que uma UTI humana, bastando que se desliguem os “cordões umbilicais” para que nem mesmo a vida pulmonar e outras pulsações perseverem. Nesse diapasão, a interrupção da gravidez do feto anencéfalo sequer poderia ser considerada uma forma de aborto, muito menos criminosa, diante da figura do crime impossível, pois não se pode matar o que já estaria morto.

 

Os defensores dessa tese aditam que seria exercício de tortura para com a mãe que deseja interromper a gravidez, já que o espetáculo da vida não poderia se resumir no nascimento de feto já condenado a uma morte completa e imediata, pois a vida humana pressupõe ao menos uma expectativa que contemple uma vida no seu sentido mais amplo, pois seria esse o objetivo da prole. Reconhecem que a palavra Vida é utilizada numa visão macro, de preservação da espécie e sua condição de humanidade, se não regrediríamos à condição zoológica, e nos afastaríamos da vocação pelos experimentos tão essenciais à evolução da humanidade, tais como os projetos de “biotecnologia”, do “gnoma humano”, do “geneticamente modificável”, da “engenharia gênica”, da “genética molecular”, da “neo eugenia”, da “biodiversidade”, da clonagem, da “fertilidade in vitro”, da “barriga de aluguel, enfim, para chegarmos ao “biodireito”, visando a uma convivência entre o avanço da ciência médica e a lei.

 

E não se justificaria castigar a mãe ao sofrimento, desnecessário, de carregar no seu ventre, até com risco psicológico e de vida, um feto inviável e parindo-o apenas para ainda suportar o sofrimento adicional de ter que a ele dar um nome e um registro civil, sepultá-lo e enfrentar questões de ordem sucessória.  A tese, em suma, seria a de conferir à mãe o “livre arbítrio” de decidir por uma interrupção justificada da gravidez que é sua.

 

De outro lado, a tese que se apega ao fato de que a vida começa na concepção, ou seja, quando o óvulo é fecundado, e não no nascimento, o que faria com que o aborto do anencéfalo tivesse as características de um homicídio, calcada no art. 2º do Código Civil, consoante o qual a lei protege o direito do nascituro desde a concepção, ainda que somente venha a ser sujeito de direitos e obrigações se nascer com vida extra-uterina, ou seja, se respirar o ar de fora. Dessa corrente participa o entendimento de que todos nascem para morrer, independente do tempo de vida, e que o sofrimento faz parte da vida e até a engrandece, como que a dizer, numa concepção espiritualista, do karma de cada um.

 

Se tivéssemos que avançar – ou regredir dependendo do ponto de vista – , correríamos o risco de cair numa “terceira onda” de discussão, qual a de perquirirmos se o embrião, ou pré-embrião, deva afinal ser considerado pessoa ou coisa, quando nos envolveríamos com a questão da “fertilidade in vitro”, pois já despontam no mundo pelo menos três posições distintas a propósito do tema: (a) a que equipara o pré-embrião a um ser humano; (b) a que o compara a um simples tecido humano e; (c) a que o considera, intermediariamente, com direito a proteção maior que a dos tecidos humanos por sua possibilidade em converter-se em pessoa, tal como o feto, já concebido, mas que, apesar disso, como tal não deve ser considerado posto não haver ainda adquirido personalidade, tampouco se desenvolveu como indivíduo, sendo ainda possível que nunca atinja seu potencial biológico.

 

O novo Código Civil deu um passo nesse sentido, ao prever o “concepturo” na participação sucessória nos termos do art. 1.799, I, de que falaremos mais adiante.

 

Nessa divergência de teses e de concepções ideológicas, em recente e ontológica Sessão do Supremo Tribunal Federal, os senhores Ministros, em acirrada polêmica, chegaram alguns a se desentender – quase atingindo às vias de fato – , resultando, por maioria, na cassação de uma liminar que havia sido concedida pelo próprio STF para autorizar o aborto do feto anencéfalo, vindo agora a questão, tamanhas as suas polêmicas e pressões, a ser submetida à inusitada Audiência Pública que deverá acontecer por designação do próprio Supremo e, por parte do Governo, o anúncio de que irá promover a revisão da lei de modo a tornar legalmente possível a interrupção de gravidez de fetos com anencefalia, uma vez medicamente caracterizada a má-formação irreversível conhecida como “ausência de cérebro”. Até porque, se o próprio Código Penal, de 1940, admite o aborto de fetos concebidos por estupro – situação que, na linha dos que defendem a vida desde a fecundação do óvulo, seria bem mais grave do que a do feto sem viabilidade, eis que, no caso de estupro, estará autorizada a morte de feto sadio ou perfeito – por mais forte razão se justificaria o direito da mãe de interromper a gravidez ainda que a concepção fora por ela desejada. A idéia passa pelo sentimento de que não seria justo que, além de ser punida pela natureza, a mulher também o seja por um código nesse ponto caduco. Se bem que o “aborto” de anencéfalos não estaria previsto em nenhuma lei brasileira.

 

O clamor popular sobre essa questão suplanta julgamentos importantes da história recente do STF, e jamais um tema teria sido tão acompanhado pelos diversos setores da sociedade, polarizando os entendimentos do mundo científico – tanto que a ação no STF foi promovida pela Associação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNST) justamente porque o feto morre ainda na gestação ou poucos minutos após o parto – e do mundo religioso, mobilizando até mesmo sua santidade o Papa, mesmo a despeito do fato de já haver sido, de há muito, consagrada a separação da igreja e do Estado.

 

A questão, todavia, não é fácil, tampouco simples, envolvendo valores éticos, religiosos, morais e afetivos, de cunho eminentemente pessoais, daí porque a decisão que se alvitra do Judiciário decerto não pode se basear em nenhum desses valores, talvez descambar para os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade, eis que ao homem julgador não é dado o poder divino de proferir uma decisão certa em caso como o presente, quando muito uma decisão mais ou menos próxima do justo.

 

Feitas essas considerações e já se perquirindo até onde a questão do feto anencéfalo poderia tangenciar com o seguro, nomeadamente os seguros de vida, acidentes pessoais e o de DPVAT, pondero como segue.

 

De qualquer modo o feto, ou nascituro em condições normais de viabilidade – até mesmo o concepturo nos termos do art. art. 1.799, inciso I do novo Código Civil – , por si só, já suscita interessantes questões tangentes com esses seguros na medida em que as pessoas, conquanto não possam ter interesse legítimo segurável sobre ele para realizar seguros sobre a sua vida já que antes do nascimento não adquire personalidade, não se torna sujeito de direito e obrigações, podem todavia indicá-lo beneficiário e, em caso de acidente de trânsito em que seja vítima mulher grávida, ser também indenizável a morte do feto desde que com vida extra-uterina, por conta do seguro DPVAT e até mesmo do seguro de APP (Acidentes Pessoais de Passageiros como garantia adicional no seguro de automóvel), considerando que em caso de grávida dois seriam os passageiros, duas poderiam ser as vítimas, a mãe e o feto nela entranhado.

 

Note-se que tanto o DPVAT quanto o APP são seguros em favor de pessoas que só serão conhecidas por ocasião do sinistro, são, portanto, estipulações em favor de terceiros (novo Código Civil, arts. 767 e 790), onde não existe a nomeação de beneficiários como costuma ocorrer nos seguros de vida. E somente haverá cobertura se a morte decorrer de acidente de trânsito. Mas outra questão que se põe é a de que, mesmo em caso de acidente de trânsito, a “morte” do feto invariavelmente se daria em decorrência da anencefalia, caso em que não encontraria a cobertura dos referidos seguros, mormente em se concluindo pela pré existência dessa “morte encefálica”.

 

Com efeito, conforme seja o entendimento que possa se consolidar de todos esses questionamentos, sufragando no sentido de que a morte do feto anencéfalo seja considerada desde o interior do útero materno, outras podem ser as conseqüências jurídicas em relação ao seguro diante de situações em que esse feto seja mesmo anencéfalo, caso em que nem a sua nomeação como beneficiário, nem a indenização do seguro DPVAT e do APP, seriam possíveis, pela falta de objeto, já que inexiste interesse legítimo segurável (novo Código Civil, art. 757) sobre quem já é morto desde antes de nascer, ou de quem já se conhece o momento de sua morte, vale dizer, o momento do sinistro, este que, face à natureza aleatória do contrato de seguro, há de ser futuro e incerto. Não sem lembrar de que para ser considerado segurado, ou como parte de um contrato, mesmo nas hipóteses vislumbradas pelos artigos 767 e 790 do Código Civil, não bastaria a sua potencialidade para se tornar pessoa, como é o caso do feto com vida, é preciso que seja mesmo pessoa, vale dizer, que tenha nascido com vida, já que esta é a condição legal para se adquirir personalidade (novo Código Civil, art. 2º). Senão, vejamos.

 

O novo Código deixa clara a possibilidade de se realizar seguro de pessoa indicando-se o feto como beneficiário (art. 791) desde que tenha vida intra e extra-uterina, em face do disposto no seu art. 2º que considera os direitos do nascituro – quiçá até de embrião sequer ainda concebido por ilação do que dispõe o art. 1.799, inciso I do Código (cencepturo) – desde a concepção, na medida em que o beneficiário, assim como o feto, tem apenas expectativa de direito, por isso a sua nomeação como tal estará presa ao implemento de condição: a do feto a de nascer com vida, pois esta, repita-se, é a condição para se adquirir personalidade, de se tornar sujeito de direitos e obrigações; a do beneficiário a de ocorrer o sinistro, ou seja, a morte do segurado instituidor, tanto que este pode a qualquer tempo alterar a cláusula beneficiária, observadas as situações previstas no art. 791 do Código Civil, ou seja, se o segurado não renunciar a essa faculdade ou se o seguro não tiver como causa declarada a garantia de alguma obrigação.

 

Com efeito, o segurado pode efetivamente nomear beneficiário do seguro quem ainda não se tornou pessoa, como é o caso do feto, do nascituro, porém não do feto anencéfalo, entendo, já que este não teria vida sequer intra-uterina, e, mesmo que respire o ar de fora, já se saberia pela ciência médica, da sua não viabilidade, não fazendo sentido, até do ponto de vista prático, a nomeação de beneficiário inviável, de quem não tem expectativa de vida. Realmente, consoante o art. 2º do novo Código, que reedita o art. 4º do Código revogado, “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. A nomeação do nascituro como beneficiário é em regra perfeitamente possível: a uma, porque o beneficiário, não sendo parte do contrato não precisa expressar nenhuma vontade ou sequer ter ciência da nomeação; a duas porque, como sucede com o próprio nascituro, tem apenas uma expectativa de direito que se concretiza com a morte do instituidor. Assim é que, se a lei põe a salvo desde a concepção o direito do nascituro, nada impede seja indicado beneficiário, porém, para adquirir direito ao benefício a condição, repita-se, é a de que nasça com vida extra-uterina, pois se falecer no recôndito do útero materno, sem respirar o ar de fora, não se tornará pessoa, portanto não será sujeito de direitos e obrigações, daí por que, nesse caso, a sua indicação ou nomeação não se concretiza, ficando a cláusula beneficiária em branco ou, se houver outros beneficiários, o seu quinhão acresceria aos demais ali nomeados ou indicados.

 

Nessa mesma linha de idéias e como a instituição de beneficiário de seguros de pessoa assemelha-se a uma como que instituição testamentária, embora seguro não seja herança (Código Civil, art. 794), poderia ainda, em tese e por analogia, ser nomeado beneficiário desses seguros o concepturo, a que se refere o art. 1.799, inciso I, do novo Código, que assim dispõe: “Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão.” Todavia, observadas as regras de representação e de curatela a que alude o art. 1.800 do mesmo Código, como também o prazo de validade da nomeação ali igualmente estabelecido, já que, passados dois anos após a morte do instituidor sem que tenha sido concebido o beneficiário esperado, a instituição perde a eficácia, ou melhor, é como se não tivesse sido feita.

 

Com efeito, verdade comezinha é a de que o beneficiário, em regra, não costuma ser parte do contrato, embora possa sê-lo excepcionalmente, como é o caso, já mencionado, em que o seguro tenha como causa declarada a garantia de uma obrigação. Nada obstante, oportuna a observação de MANUEL MARTINEZ ESCOBAR – com a qual aliás coincide a posição da grande maioria dos autores brasileiros – em seu “Los Seguros”, página 192, lembrada por Pedro Alvim que tem o mesmo entendimento – contrariando a posição de VIVANTE e entre nós de M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, segundo os quais o beneficiário não goza apenas de uma expectativa mas de um direito, e próprio – assim sintetizada: “la posición  jurídica del beneficiário es muy especial y presenta dos fases distintas. En vida del asegurado, vigente el seguro, nada significa, nada representa en el contrato. La compañia aseguradora lo ignora. El asegurado, en qualquier momento, por un simples capricho de su voluntad, lo espera. Su situación es incierta. No tiene más que un derecho expectante y eventual y precario, que puede desaparecer sin que él mismo lo sepa. No tiene intervención alguna en el contrato ni acción contra la compañia. Está expuesto a que, por descubiertos en el pago de las primas, se produzca la caducidad de la póliza”.

 

São essas as considerações que me ocorrem sobre este instigante tema, assim postas sub censura dos doutos e na oportunidade em que são travados os debates públicos sobre tão importante questão social, como é a do “aborto” do feto anencéfalo.

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