A fraude contra o seguro

Por Ricardo Bechara Santos*

TEMA RECORRENTE POR MAIS QUE A SOCIEDADE SE DESENVOLVA TECNOLOGICMAENTE. A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA CRIA NOVOS AMBIENTES PARA A FRAUDE E MUITA VEZ É FERRAMENTA EFICAZ TAMBÉM PARA SUA PRÁTICA E NÃO SOMENTE PARA SEU COMBATE. A FRAUDE É TIPIFICADA NO CÓDIGO PENAL COMO CRIME, DE NATUREZA ECONÔMICA, LUCARATIVA, POR ISSO DE INCIDÊNCIA SISTÊMICA. É A ANTÍTESE DO SEGURO, CONTRATO PECULIARMENTE DE BOA FÉ, SUA ARQUIINIMIGA QUE SE MANIFESTA AINDA COM MAIOR INTENSIDADE EM TEMPOS DE CRISE E QUANDO SE FICA DIANTE DA CERTEZA DA IMPUNIDADE.

De há muito já dizíamos que a fraude contra o seguro talvez seja um mal congênito do próprio seguro. Este que sempre foi visto como alvo fácil, de impunidade quase certa, ou bom atalho, pelos que experimentam a compulsão de fazer dinheiro por meios tortos, por portas travessas, causando preocupação por causa do relevo que sua prática adquiriu e, tamanha a variedade em que a fraude pode ser imaginada, pelas formas mais requintadas e exóticas, por inúmeras vezes serviu de tema explorado por Hollywood, desde os tempos do cinema em preto e branco, despertando os cinéfilos do gênero.

Também pelo cinema nacional, como no filme de CACÁ DIEGUES, “DEUS É BRASILEIRO”, baseado no conto de JOÃO UBALDO RIBEIRO: “Deus” resolveu tirar umas férias elegendo para aterrissagem o nordeste brasileiro e, dentre os pecados aqui praticados que os autores escolheram para o roteiro, um deles foi a “fraude contra o seguro”, mostrada em cena pela qual um personagem, acima de qualquer suspeita, após haver dado carona a “Deus”, diante dele, ateou fogo no veículo e, com acintosa naturalidade, informou de que dali iria receber o valor do seguro, quando “Deus” mostrou-se indiferente ao fato. Como o cinema e contos brasileiros retratam nosso cotidiano, não seria difícil imaginar que a fraude contra o seguro não é nenhuma ficção, já tendo, portanto, se incorporado em nosso dia a dia. Não é incomum depararmo-nos, à margem de estradas e caminhos mais ermos deste nosso País continental, com carcaças de automóveis incendiados por causas não naturais, como que auto denunciando a banalização da fraude contra a carteira de seguros de automóvel! Fazendo certo o brocardo segundo o qual a impunidade torna o fraudador de ocasião em fraudador de carreira.

A fraude, aninhando-se nas estatísticas de sinistros, termina pressionando os custos do seguro, a dano do consumidor e da sociedade como um todo, por isso o seu combate racional e eficaz, adicionado a uma base inteligente é e deve ser institucionalizado não só como atividade policial de interesse público, mas também como permanente programa de trabalho das sociedades seguradoras, de interesse dos segurados. A liberdade criativa do homem se realiza em todos os campos, do bem e do mal. A atividade de seguro, como tantas outras, está mergulhada no desenvolvimento, como agente e paciente, e se constitui em alvo permanente da fraude.

Representantes do National Insurance Crime Bureau – NICB, organização mantida pelas seguradoras norte-americanas, já afirmaram, algures, que a fraude contra o seguro no Brasil – uma das nações onde mais se comete fraude no mundo – na época ainda não vivíamos o clima da “Lava jato” – apresenta desenvolvimento de Primeiro Mundo, mas com acompanhamentos preventivos e repressivos de Terceiro Mundo, observando-se aqui algum recato por parte do setor público, em abrir as portas para participação do setor privado e, ao contrário do que sucede nos EUA, onde a própria sociedade convencida do prejuízo causado pela fraude impôs o necessário ambiente de cooperação entre os setores público e privado, o tema no Brasil ainda é tratado com certo tabu e o verbo compartilhar conjugado com certa parcimônia, onde as seguradoras só de uns tempos para cá começaram a conversar um pouco mais entre si visando a romper a postura de compartimentos estanques, porque, a cada dia o mercado de seguros toma um susto diferente diante da miríade de fraudes cometidas pelas mais variadas formas, chegando a estabelecer uma estatística, ainda que empírica, na base do “chutômetro”, reveladora de que em média o setor desperdiça, no Brasil, de 20% a 30% do total de indenizações pagas anualmente com fraudes (LUCIO ANTONIO MARQUES).

E se chega a esses percentuais com base nos casos em que, embora se saiba da ocorrência da fraude, ainda existe algum receio de levá-la a juízo, temendo-se o revés de ações cíveis de perdas e danos, inclusive morais, além dos processos, no campo criminal, por eventual denunciação caluniosa que a audácia dos fraudadores é capaz de perpetrar contra os dirigentes das seguradoras. Esse cenário, é bem verdade, vem se mitigando porque o Judiciário vem se firmando no exame valorativo da prova indiciária, dando sinais positivos nesse sentido.

A importância do tema e a constante preocupação que dele suscita, levou, tempos atrás, a que a SWISS RE editasse em 1993 uma elogiável monografia sobre fraude, intitulada “FRAUDES CONTRA O SEGURO: DELITO DE MASSAS”, cujo investimento editorial do porte se justifica por muitas e boas razões, que poderiam ser citadas, dentre as quais: 1) as fraudes, embora visando seguradoras, por vezes são crimes contra a incolumidade pública, por que matam e ferem pessoas que nada têm a ver com tais delitos, como nos incêndios e acidentes provocados; 2) as fraudes, no frigir dos ovos, oneram a comunidade segurada, infiltrando-se, quando não descobertas, nas estatísticas pelas quais são calculados os preços dos seguros; 3) as fraudes, tal é a sua frequência, tem relevante peso econômico-financeiro; embora difícil, por razão de método, de se quantificar com exatidão, já se tem um limite percentual mínimo das perdas que elas causam à indústria do seguro, estimado na época em cerca de 10% das indenizações pagas pelo mercado mundial, que já era uma proporção de peso no balanço das seguradoras e resseguradoras, pelo qual se presume que os ganhos poderiam ser duplamente maiores, ou os prêmios muito mais baixos, se fosse possível evitar a fraude no seguro.

A publicação foi uma chamada ao segurador e ressegurador, para evitar que a ideia da assunção coletiva do perigo em benefício da comunidade não seja sacrificada em prol de interesses pessoais egoístas. É uma chamada a não se aceitar por mais tempo a fraude contra o seguro, a reconhecer-se em todas as suas dimensões como ameaça fundamental para toda a indústria do seguro, e a combatê-la conjuntamente e de modo decidido. É que se os seguradores continuarem generosos e complacentes frente a esses fatos corre o risco, não só de serem qualificados como vítimas, senão também de cúmplices por omissão: quem tolera a injustiça por muito tempo a fomenta. A fraude contra o seguro, não só é uma ameaça às reservas das companhias, como também uma erosão na seriedade e na reputação de todos os ramos. A qualidade do seguro, como instituição com a missão social acima apontada, se medirá pelo interesse e capacidade na defesa de seu timbrado princípio de superação do risco.

Oportuno lembrar frase que auscultei de dirigentes da primeira seguradora em que trabalhei (Cia internacional de Seguros), nos idos de 1974: “angariação mal feita, liquidação imperfeita…” É dizer que uma angariação bem feita, em sintonia com a área de sinistros, pode também contribuir para a redução do flagelo da fraude contra o seguro.

O dedicado trabalho da Swiss Re, que sempre vale a pena revisitar, aborda, entre outros aspectos das fraudes, um que é de natureza sociológica: a tolerância da opinião pública a esses “delitos de cavalheiros”, de elevadas frequência e severidade. Cidadãos supostamente honestos não se acreditam em pecado ou em deslize quando tiram vantagem do sinistro, majorando o valor do dano passível de indenização. Há no inconsciente coletivo certa simpatia por Robin Hood, que roubava dos ricos em favor dos pobres. Essa visão errônea da opinião pública, entretanto, somente pode ser corrigida por um longo e implacável trabalho de esclarecimento institucional, como inclusive fez a Swiss Re, sendo importante, todavia, um trabalho educacional que seja também veiculado no dia a dia dos meios de comunicação de massa.

A fraude por vezes é gritante, denunciando a si mesma, mas isso é fato bissexto porquanto em grande parte das vezes ainda são descobertas por acaso, diante de um “azar” do fraudador, tal como sucedeu no Rio de Janeiro com uma advogada que, alegando compadecida solidariedade, emprestou seu cartão de seguro-saúde para a internação hospitalar de amiga gravemente enferma, que veio a falecer deixando complicada herança: o atestado de óbito da advogada viva e, para a família desta, a polpuda conta do hospital onde se tratara a falsa segurada! (Jornal O GLOBO de 20/03/99).

Dentre outros muitos casos que poderiam ser aqui citados, um também sucedeu no Sul do País, onde um pequeno comerciante pretendeu fazer as vezes do acaso, mas este acaso, felizmente, pegando carona em sonoros pingos d’água, foi mais engenhoso que o mini empresário, evitando que o seu frustrado e criminoso golpe contra a instituição do seguro não só resolvesse sua insolvência como também – e principalmente – impedisse consequências ainda mais graves à incolumidade alheia, pelos danos que a explosão e o incêndio decerto causariam aos moradores da vizinhança se o seu plano, noturno e soturno, se consumasse. Endividado, o comerciante imaginou que a saída seria o incêndio no seu minimercado, à custa do seguro. Decidindo assumir as funções do acaso, esse autor de acontecimentos fortuitos, e, sem dispor da sofisticada parafernália tecnológica dos filmes de James Bond, montou uma engenhoca simples, de sua própria invenção, cujos componentes eram apenas uma corda, um balde de plástico e uma roldana. Uma extremidade da corda foi amarrada à válvula do encanamento de gás e a outra ao balde; a corda deslizaria pela roldana à medida que, pesando cada vez mais pela acumulação da água que pingava de uma torneira adrede regulada, o balde fosse perdendo altura, até que a corda iria abrindo aos poucos a válvula do gás, ficando o resto por conta de um fogareiro acesso a conveniente distância do ponto de escapamento de gás. Mas os pingos d’água produziram ruídos, estranheza e curiosidade aos moradores, no silêncio da noite, conspirando, assim, contra o infeliz projeto do endividado comerciante (Jornal do Commercio de 14/02/97).

Assusta a ideia que é comumente passada para a comunidade dos fraudadores de que “a fraude contra o seguro é um crime que compensa, fácil de ser praticado e difícil de ser comprovado”; mesmo descoberta, muitas vezes fica no limbo da impunidade e, sem que seus autores sejam punidos, acaba encorajando-os a perseverar, até com mais ousadia e requinte, em novas fraudes.

Temos também as fraudes do tipo “equatorial”, para encerrarmos esta triste amostra de fraudes à moda antiga, mas recorrentes, exóticas, que para ser esgotada não caberia neste trabalho. Contam-se façanhas, também só eventualmente descobertas, marcadas por sinistros fraudulentos cujas causas só mesmo o tino “sherlokiano” dos investigadores mais atilados poderia perceber, e que ficaram conhecidas como “turcos circuitos”, que eram incêndios ardilosamente provocados, principalmente na região de Manaus, em que comerciantes orientais mal sucedidos em seus negócios procuravam atribuir à fortuidade normalmente decorrente de centelhas oriundas de fios elétricos intencionalmente mal conservados, ou até mesmo substituídos por outros de qualidade inferior. Como também a guisa de exemplo, sinistros que ficaram por lá conhecidos como “gatos kamikazes” que, em verdade, eram incêndios decorrentes da ação criminosa de comerciantes que, vislumbrando não deixar vestígios, capturavam gatos, os envolviam em estopas embebidas em material inflamável, deixando-os bem encilhados, ateavam fogo neles e os soltavam em meio do casario velho de madeira, causando, assim, incêndios de grandes proporções, e assim procedendo não sem realizarem um “belíssimo seguro”!… (em Direito de Seguro no Cotidiano, Editora Forense, 4ª edição, Pág. 100, de autoria do signatário – Ricardo Bechara Santos). O surpreendente foi que depois de desbaratada a série desses crimes – só descobertos porque casualmente foi achada dentre os escombros uma ossada do bichano ainda encilhado com vestígios do arame que o fogo não consumiu -, quando se esperava uma cobertura jornalística exemplar repudiando o crime contra o seguro, a imprensa noticiava simplesmente com manchetes do tipo: “COMERCIANTES DESONESTOS ATENTAM CONTRA A LEI DE PROTEÇÃO AOS ANIMAIS”. Sem nenhuma nota para enfatizar a fraude contra o seguro.

E por falar em gato, o criminalista PEDRO PAULO NEGRINI lembra velha história segundo a qual o felino gato foi declarado o inimigo maior e que por isso deveria ser destruído e que a melhor forma de combatê-lo seria saber por onde ele andava e, para conhecer seus passos bastava colocar um sino em seu pescoço. Por mais que se discutia essa necessidade era sempre difícil aparecer um voluntário para a tarefa. Esse conhecido gato, simbolizando a fraude, embora identificado, chegada a hora, já madura, de se pendurar o sino para prisões em flagrante dos fraudadores, já não mais se estava diante de simples gatos, fraudadores eventuais e amadores, pois já se tornaram tigres, profissionais da fraude, reunidos em quadrilhas, enfim organizados no que já se pode chamar da “terrível indústria da fraude”. E pendurar sino em pescoço de tigre é, obviamente, tarefa bem mais complicada.

O Desembargador SERGIO CAVALIERI, em seus acórdãos, em seu livro “Programa de Responsabilidade Civil” e em suas palestras, costumava comentar, muitas vezes fazendo coro com o Desembargador SYLVIO CAPANEMA, nas suas valorosas contribuições para o bom conhecimento entre nós do seguro, que “uma das causas da fraude é a facilidade na sua consecução. O segurado está na posse da fábrica e dispõe a seu talante do estoque de mercadorias. O valor do maquinismo pode ser mascarado, figurando o segurado sempre como vítima. Ele é que dirige o automóvel, carrega o caminhão, embala as mercadorias e faz prova dos prejuízos. Se o segurador consegue provar a fraude exime-se do dever de indenizar, mas é aí que reside a sua dificuldade. Essa prova é diabólica, hercúlea, militando em favor do segurado e, na dúvida, os tribunais acabavam decidindo contra o segurador.”

Ainda com CAVALIERI, importante observar que “a fraude tarifária, por exemplo, vinha se tornando cada vez mais frequente nos grandes centros urbanos, onde o furto e roubo de automóvel atingem índices astronômicos, aumentando enormemente o prêmio do seguro, mormente de certas marcas preferidas pelos ladrões. Já em municípios próximos e tranquilos os riscos objetivos dos veículos são muito menores e menor também o prêmio (20%, 30% e até 40% inferior). Atraída por essa redução tarifária muita gente, embora residindo nas grandes cidades, emplaca seus veículos nesses municípios, não raro se valendo de falsidade. Não há dúvida de que se trata de conduta fraudulenta, contrária ao princípio da boa-fé expressamente vedada pelo Código Civil.”

ERNESTO TZIRULNIK, em artigo sobre o tema, abre a questão afirmando que “a fraude contra o seguro é um problema de proporções agigantadas, cujas consequências são prejudiciais não só ao mercado segurador (seguradoras, segurados e entidades da Administração Pública do setor), mas à totalidade do espaço econômico nacional e regional – uma vez que o princípio da mutualidade é a linha mestra da estruturação jurídica da operação securitária – atingindo-se, deste modo, todos os agentes econômicos do sistema, com diferentes graus de intensidade” (ETAD-SP-1998). E acrescenta, em nome da função social do seguro: “Fatos que visem a prejudicar o funcionamento adequado e normal da atividade securitária têm um impacto muito maior do que à primeira vista se percebe. São as próprias relações sociais que têm seu funcionamento garantido que sofrerão abalos…” Não sem lembrar que crises econômico-financeiras e períodos recessivos que atingem um País, “tendem a acentuar a ocorrência de fraudes, a provocar o incremento de tais ações delituosas.”

Há de haver alerta constante para a fragilidade diante da fraude no seguro, este que lida com organização de economias coletivas para amenização de consequências de eventos prejudiciais, considerando que o fundo gerido pelas seguradoras reside na manutenção de comportamentos comumente observados, por isso “a fraude altera, de forma drástica, a relação proporcional existente entre a quantidade de eventos previstos, sua intensidade e os valores cotizados pelos integrantes do fundo” (TZIRULNIK). Pondera o articulista que “ocorre fraude quando se desvirtua a função econômico-social do seguro, uma vez que justamente sua equilibrada existência é o objetivo da lei”. E enfatiza a importância da prova indiciária como uma das soluções para o problema da fraude contra o seguro, principalmente ao se lembrar de que “muitas vezes as maquinações são realizadas com sofisticação tão aguçada, que somente através de indícios pode-se provar o realmente ocorrido”.

O contrato de seguro é inserido dentre as mais eloquentes espécies de contrato de finalidade social, por isso o princípio da boa-fé objetiva, que embora tenha sido inserido como cláusula geral no sistema aberto do Código Civil de 2002, foi mantido no capítulo do contrato de seguro como cláusula específica, sua principal peculiaridade. A mutualidade é, sem dúvida, a grande vítima da fraude, sendo missão de seus gestores combatê-la com tenacidade, missão que será fracassada se não puderem contar com a melhor compreensão de seus principais intérpretes, os magistrados, que bem saberão compreender a força dos indícios, elementos tangíveis e apreciáveis que se vinculam ao fato abstrato ou incerto e o revela de algum modo ou lhe dá verossimilhança. É o fato de que se infere, por via reflexa, a existência de outro, desconhecido, que se perquire em virtude da relação de causalidade que com este estabelece. O indício, pois, é a prova circunstancial a que se chega por indução.

Nos casos em que a seguradora recusa-se a pagar a indenização por dispor de fundados indícios de fraude, apoiados também na convicção dos seus técnicos experimentados, a posição mais razoável, em prol da coletividade de consumidores que integra a mutualidade do seguro, seria a de considerar o caso fora do tratamento de rotina inerente ao sistema de proteção ao consumidor, sendo necessário que a regulação se aprofunde até as raízes das irregularidades apontadas, de modo que a função social do seguro possa realmente triunfar.

Independentemente das filigranas conceituais, se um comerciante encontra-se virtualmente falido, manipula os seus estoques, visivelmente incompatíveis com o seu comércio, contrata um eletricista para substituir a fiação elétrica por outra de material inferior e inadequada, de modo a torná-la apta e sensível a um “curto circuito”, perto do que irá se encontrar material inflamável não comum em seu negócio e, sobretudo, realiza um formidável seguro, estará com isso revelando indícios e propiciando presunções tão mais veementes que uma confissão – tida como a rainha das provas -, de que o incêndio ali irrompido, dias depois, em seu estabelecimento, reveste-se de uma requintada fraude, a que se chega por presunção.

Pode-se daí dizer que a fraude, ou mesmo as interpretações generosas de alguns intérpretes contemplando esse ou aquele consumidor individualmente sem que o sinistro encontre a cobertura do seguro, abate e onera mais fundo a coletividade de consumidores que integra a mutualidade, do que propriamente o segurador, este que, como gestor dessa universalidade, haverá de aumentar o custo do seguro para manter o equilíbrio atuarial das operações, a ônus da coletividade.

Em qualquer dicionário fraude continua sendo a obtenção para si ou para outrem, de vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio enganoso, tendo como componentes o dolo e o estelionato, e a confundir-se com a burla. Cometer fraude é enganar, lesar, privar, despojar, espoliar. A fraude é a materialização da má-fé, para ocultação da verdade, com intenção de causar prejuízo à terceiro. O combate à fraude, pois, é direito de todos, dever primordial do Estado. Erradicar a fraude é obstinação que há de ter o mesmo ímpeto com que os abnegados perseveram no combate a uma enfermidade pública, endêmica, epidêmica. O “bacilum fraudis“, pois, é inoculado na célula do seguro na medida em que o sistema imunológico de seu organismo esteja vulnerável. E tal vulnerabilidade acontece pela fragilização daqueles que julgam, analisam e decidem sobre as questões relacionadas aos sinistros, deixando-se entreaberta a porta para que o mal cresça, e apareça.

Usando de linguagem figurativa, a fraude degenera o mutualismo em “parasitismo”, como na relação entre o boi, de um lado, e de outro o carrapato e o berne, sabido que, naquele, os atores se ajudam mutuamente, como o próprio nome do mútuo sugere, neste, no parasitismo, só uma classe se beneficia, figurando o mútuo como mero hospedeiro. Basta conferir o conceito de “parasitismo” nos escólios de ALESSANDRO ALLEGRETTI, em sua obra “Explicando o Meio Ambiente” (Edição MEMORY – Centro de Memória Jurídica), pág. 31, dando conta de que a natureza é boa mestra: “parasitismo é a associação em que uma das espécies (parasita), na maioria das vezes menor, vive dentro ou sobre outra (hospedeiro), se alimentando dela e geralmente não a destruindo imediatamente. O parasita costuma usar o hospedeiro como moradia, agindo lentamente sobre ele, enfraquecendo-o e nele provocando doenças, levando-o na maioria das vezes à morte com o tempo. Muitos insetos, bactérias, vírus, protozoários, plantas, fungos e vermes são parasitas. Os parasitas possuem adaptações como ventosas e espinhos para se fixarem aos hospedeiros e se especializam em parasitar determinados tipos de ser vivo. Quando um hospedeiro morre rapidamente ao ser parasitado isto indica que a relação entre ele e a espécie de parasita não é recente. Hospedeiros resistentes a um tipo de parasita são frutos da evolução devido a seleção natural…” Qualquer semelhança com a fraude não é mera coincidência!…

As seguradoras, na sua lida diária pagam vultosíssimas importâncias na garantia dos riscos que suportam. Porém, são cotidianamente vítimas das artimanhas, do ardil, do estelionato, de segurados, beneficiários ou terceiros inescrupulosos, que se aproveitam justamente do elemento boa-fé que caracteriza o contrato de seguro, não raro de difícil comprovação, tal o requinte com que agem contra as seguradoras. E o Estado, como um todo, não pode desconsiderar a importância das atividades das seguradoras dada a sua função econômico-social, desempenhando o seu papel na formação de capital e das forças produtivas, na defesa econômica contra o risco, protegendo o segurado honesto, oferecendo-lhe segurança sobre futuro incerto, possibilitando gerações creditícias, tornando mais fácil suportar coletivamente as consequências danosas dos infortúnios individuais, resguardando a produção, circulação e distribuição de riquezas, dando segurança às pessoas (individual e coletivamente) e às coisas, reforçando, enfim, a economia nacional. Faz-se, portanto, imperioso não se compadecer com a fraude. Por menor que ela seja, porque são das fraudes aparentemente pequenas e com ar de inocência, mas bem sucedidas, é que se desencadeiam as fraudes maiores e que acabam se espargindo e contaminando a instituição do seguro.

Além do princípio da boa-fé vigoram sobre as relações contratuais tantos outros princípios gerais do direito que devem ser considerados pelo intérprete, dos quais caberia aqui lembrar o da vedação do enriquecimento ilícito e as primigênias regras de convivência social, dentre elas a de não lesar ninguém, viver honestamente e dar a cada um o que é seu, traduzidas nas máximas romanas nemnem laedere; honestae vivere e; suum cuique tribuere.

O seguro sofre as consequências das fraudes praticadas não só pelos próprios segurados, intermediários, beneficiários, funcionários das próprias seguradoras, e outros agentes que integram essa teia de criminalidade, além de ser chamado a indenizar sinistros decorrentes de ações criminosas de terceiros resultando em furtos, roubos, lesões, homicídios etc. Muitos desses crimes se entrelaçam com outro que os complementa, dando vazão a seus resultados, o chamado crime de Receptação, por isso combater também o receptador importa em desmotivar a prática de furto, roubo, apropriação indébita, dentre outros que contribuem com o crescimento da sinistralidade. O combate ao crime de “lavagem de dinheiro”, de algum modo poderá ser útil ao combate à fraude, sabido que o roubo de automóvel e de carga no Brasil opera como moeda de troca para a prática dos crimes de tráfico e de outros que dão origem ao crime transnacional de “lavagem de dinheiro”, espécie do gênero dos crimes do “colarinho branco”, que hoje, sabemos todos, sofre forte combate na chamada operação “LAVA JATO”.

O fraudador não é em regra um bandido sanguinário e nossa sociedade impressiona-se muito com os crimes de sangue, que geram prejuízos financeiros relativamente insignificantes, se comparados às perdas dos crimes do colarinho branco. Aqueles provocavam a atuação imediata e às vezes mais vigorosa da Polícia e do Ministério Público, enquanto estes, os crimes do colarinho branco, nem sempre, ao menos até a operação “lava Jato”, assustavam a sociedade, principalmente se cometidos contra Sociedades Anônimas, anônimas, mas não inexistentes.  Como que se as seguradoras não tivessem donos, e os donos não fossem pessoas. O fraudador é aquele que aplica a “Lei de Gerson”, que leva vantagem em tudo, que não respeita os códigos sociais. O fraudador não é o favelado, o miserável, não é o pobre, não é o inculto. O fraudador pode ser o funcionário público, o executivo, o profissional liberal, o profissional da informática, o empregado ou ex empregado da própria empresa. Muitas vezes tem curso universitário. Pode ser o advogado procurador de vítimas fictícias, o médico que agrava o relatório das doenças, das lesões, dos tratamentos, o engenheiro que elabora laudos ideologicamente falsos.

A coluna Mercado Aberto, da Folha de S. Paulo, neste mês de março de 2018, informa que “ex-funcionários são vistos como os principais responsáveis por fraudes no Brasil, segundo 540 executivos ouvidos pela Kroll, consultoria de gestão de riscos. Cerca de 53% dos entrevistados mencionaram empregados que já saíram da empresa como fator chave em problemas no país como roubo de ativos, dados ou estoque, acima da média global de 34%. Quando se fala de fraudes como adulteração de balanços ou quebra de política de compliance, porém, há envolvimento da administração”. O índice de episódios fraudulentos subiu 16 pontos percentuais em relação ao de 2016 e chegou a 84% em 2017. Além da maior incidência, a alta é um reflexo do combate acanhado a incidentes do tipo, que ficaram mais em evidência após operações como as da Lava Jato. Não sem lembrar de que o seguro também garante os riscos de danos como que tais.

O segurador lida com recursos de terceiros, geridos e administrados por força do mutualismo que caracteriza o contrato de seguro, do qual faz parte cada segurado, não sendo justo, nem curial, que a massa de segurados probos seja penalizada pela sanha dos que fraudam, dos que mentem, dos que reticenciam. É rigorosamente legítima, pois, a posição assumida pelas companhias de seguro, quando, em resistências às pretensões duvidosas de segurados ou de terceiros provocam a discussão e a solução judicial dos litígios surgidos na execução dos contratos de seguro, administradoras e responsáveis que são por vultosíssimos patrimônios que garantem o cumprimento das obrigações assumidas com aqueles que no contrato de seguro procuram cobertura para riscos a que cotidianamente se submetem seus bens, suas faculdades e suas vidas; com a causação de danos de consequências dificilmente suportáveis pelos indivíduos isoladamente, as seguradoras por isso mesmo não se colocam numa defesa egoística de um patrimônio exclusivamente delas, porque se constituindo para cobertura daqueles riscos decorridos pelos segurados, é patrimônio muito mais do que delas mesmo.

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.

Já se percebe que seria írrito, senão impossível, falar de fraude sem tocar na boa fé, nas suas duas principais vertentes, a subjetiva e a objetiva, lembrando, de logo, que a boa-fé, conduta primaz do homem, não dispensada nas demais relações contratuais, no contrato de seguro é exigida, objetivamente, com sobrelevada importância, por isso o contrato de seguro é de extrema boa-fé, onde o segurador, pelas características próprias desse contrato, fica mercê, muita vez, das declarações do segurado, quer seja na contratação quer na convivência com o contrato e, muita vez na liquidação do sinistro.

A boa-fé é moeda que não pode, por puro arrivismo, ser desvalorizada, mormente nestes tempos de inversão de valores morais. Agir de boa-fé implica num dever de conduta no qual se insere a veracidade, age sem boa-fé, portanto, proponente, segurado ou beneficiário que faz declarações falsas, inexatas ou reticentes ainda que sem intenção de prejudicar, incidindo em perda de direito. A boa-fé é moeda boa, que a comunidade jurídica e a atividade de seguro têm necessidade vital de que se mantenha em circulação, exatamente porque o processo econômico-social se transformou, em termos qualitativos e quantitativos. É mantendo, pois, a boa fé viva, que se poderá combater e evitar que cresça e apareça, ainda mais o vírus da fraude, posto que, dependendo da intensidade, epidêmica, endêmica, com que possa inocular no seu tecido, levaria a instituição à morte. O obsoletismo do princípio da boa-fé é algo que não se deve adubar, por isso hão de ser reforçados os mecanismos de combate à fraude no seguro. Não se pode deixar dominar a impressão de que tudo é válido, importando os fins e não os meios, muito menos na fraude contra o seguro, onde tanto os fins quanto os meios são inexoravelmente condenáveis. A boa-fé no seguro não pode ser vista como uma espécie de relíquia jurídica de valor histórico de utilidade prática escassa e duvidosa. Não se pode perder de vista o velho princípio ético – jurídico para deixar nascer uma nova moral social emergente, contemplando o segurado com o benefício da inferioridade econômica, espécie de condição suficiente para que ele, um Davi, tenha sempre ganho de causa sobre o Golias que toda empresa seguradora para alguns preconceituosamente simbolizaria.

Ao tratar da boa-fé é preciso saber, de pronto, a qual das suas duas vertentes se está referindo: a subjetiva ou a objetiva. Sabe-se que a boa-fé subjetiva traduz-se num estado de crença errônea fundada numa situação de aparência, um estado psicológico; para afastá-la é preciso esteja contraposto o dolo, erro crasso, ou culpa grosseira que conduza a idéia de má-fé, quando se ingressa no terreno da fraude; nesse âmbito, boa-fé se contrapõe a má-fé, a pessoa ignora os fatos, e está de boa-fé, ou não ignora e está de má-fé.” (FERNANDO NORONHA, in “Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais”- SP, Saraiva).

Se, na concepção subjetiva, a boa-fé contrapõe-se à má-fé o mesmo não ocorre com a boa-fé objetiva, à qual se contrapõe a ausência de boa-fé e, não, a má-fé. No contrato de seguro a inobservância do dever se manifesta simplesmente pela prova a ser produzida pelo segurador de que as declarações do segurado não são verdadeiras, impondo-se a consequente perda de direito, salvo se o segurado provar caso fortuito ou força maior. No contexto do princípio da boa-fé objetiva, ao segurador não cabe, a rigor, provar a má-fé pelo descumprimento do dever, compete-lhe sim, provar que foi levado a aceitar a proposta em erro e que, se conhecesse o real estado do risco não o teria aceito, ou o teria aceito sobre outras condições.

O contrato de seguro está de tal forma fundado na boa-fé que sua ausência é suficiente para retirar-lhe a eficácia como decorre, em nosso direito, do art. 766 do Novo Código Civil. Tanto assim que mereceu também a atenção do nosso Código Penal, no inciso V do art. 171, que trata da fraude para recebimento de indenização ou valor do seguro, refletindo a situação que se produz quando o segurado procura intencionalmente a ocorrência do sinistro ou exagera suas consequências, com ânimo de obter enriquecimento sem causa, o que é em síntese um atentado ao princípio da boa-fé subjetiva.

Sinto-me supinamente honrado com a oportunidade que me é dada para uma vez mais expor sobre este tema, nada agradável, diga-se de passagem, posto que a fraude é fortemente ofensiva à instituição do seguro que tanto aprendi a gostar, porém necessário de ser enfrentado de forma sempre recorrente.

 *Consultor Jurídico especializado em Direito de Seguro. Membro efetivo da Associação Internacional de Direito do Seguro – AIDA Brasil. Autor das obras Direito do seguro no cotidiano, Direito do seguro no novo código civil e legislação própria e Coletânea de jurisprudência STJ/STF, Seguros, Previdência Privada e Capitalização e coautor de diversas obras. Consultor jurídico da Cnseg e do Sindseg RJ/ES.

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