A jurisprudência e as coberturas de danos corporal, material e moral no seguro de RCV-V

RICARDO BECHARA SANTOS e RENATO BARCELLOS SANTOS *

EMENTA: o presente artigo tem por escopo a análise de jurisprudência iniciada no sul do país com reflexos nas coberturas de dano corporal, dano material e dano moral, oferecidas no seguro de responsabilidade civil facultativo de veículos, criando insegurança jurídica na aplicação dessas coberturas em desconsideração ao princípio cardeal da delimitação do risco no contrato de seguro, máxime em relação às indenizações por pensionamento que, mesmo a despeito de originar de um dano corporal conforme definido na apólice, o entendimento de tais julgados é o de mandar aplicar a cobertura de dano material embora desenhada apenas para cobrir o reembolso ao segurado de indenização por danos a bens móveis ou imóveis de terceiros. Alguns julgados, no entanto, vão ainda mais longe, eis que, além de banalizar o princípio da delimitação do risco, desconsideram a autonomia, independência e incomunicabilidade das três coberturas, e, sem a devida contraprestação do prêmio, somando-as na medida em que cada uma se esgote, mesmo a despeito de a vítima haver sofrido somente uma das três modalidades de dano cobertas. Os princípios da Segurança Jurídica, da Razoabilidade e da Proporcionalidade, previstos na CONSTITUIÇÃO FEDERAL, estariam sendo desconsiderados por tais julgados.

 

RETROSPECTIVA SOBRE A ÚLTIMA REVISÃO NA NOMENCLATURA DAS COBERTURAS DO SEGURO DE RCF-V EM FACE DO DANO MORAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Recorde-se que no passado, não tão distante, o mercado segurador se viu a braços com a necessidade de rever a nomenclatura das duas coberturas então vigentes – dano pessoal e dano material – a partir do momento em que a jurisprudência não mais aceitava a inclusão do dano moral na mesma cobertura de dano pessoal, considerando que a CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, que a partir de outubro de 2013 comemora seus vinte cinco anos de existência, passou a tratar do dano moral como categoria específica de dano, dissociada da cobertura para dano pessoal, levando o segurador a oferecer a cobertura de dano moral como terceira cobertura, própria, autônoma e dissociada das demais, questão hoje pacificada, nesse particular, pela nova nomenclatura adotada nas apólices e posto que em consonância com a jurisprudência dominante no STJ. Realmente, embora a reparação por dano moral deite suas raízes em princípios bem antigos do direito, verdade é que só ganhou maior prestígio no direito brasileiro após o advento da CONSTITUIÇÃO DE 1988, chegando naturalmente na sua fase de maturidade, reassumindo a sua relevância no cenário do direito civil reparatório de danos.

Já agora, caberia sugerir mais uma revisão na nomenclatura das três coberturas vigentes, de modo a adequá-las, o quanto possível, a uma nova tendência jurisprudencial.

O TEMA

Consoante relato que temos recebido, durante anos  a fio o mercado segurador comercializa o seguro de Responsabilidade Civil Facultativo de Veículos (RCF-V) tratando “pensionamento” ou “constituição de renda” como cobertura contida na rubrica “Danos Corporais ou Físicos”.

Sucede que o Judiciário aceitava esse entendimento pacificamente, mas que o tem mudado, principalmente o judiciário do sul do país, passando a entender que o reembolso da indenização a que o segurado for condenado por “pensionamento” ou “constituição de renda”, deve ser tratado na cobertura de “dano material”, prevista no seguro de responsabilidade civil facultativo de veículos, sob o argumento de que a perda de renda ou salarial tem natureza material não obstante advir de uma invalidez ou morte que, sem dúvida, é dano corporal ou físico conforme delineado nos contratos de seguro. Este entendimento teve inicio no Rio Grande do Sul e se espalha pelo Brasil, em que pese os melhores argumentos despendidos pelos advogados das seguradoras.

As decisões a que nos referimos acima são ementadas de forma semelhante à que adiante se transcreve a guisa de amostragem:

EMENTA:  AGRAVO DE INSTRUMENTO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. REEMBOLSO DO PENSIONAMENTO PELA SEGURADORA CONDENADA REGRESSIVAMENTE. PARCELA QUE INTEGRA A RUBRICA DANOS MATERIAIS. O pensionamento integra a rubrica “danos materiais”, por constituir prejuízo financeiro suportado pelo segurado, condenado em ação indenizatória a ressarcir os danos causados. Precedentes. Seguimento liminarmente negado. (Agravo de Instrumento Nº 70024357501, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 23/05/2008).

É certo, no entanto, que o Superior Tribunal de Justiça – STJ ainda não apreciou a questão no seu mérito.

Para fins de seguro, quer nos parecer equivocado o entendimento de que o “pensionamento” ou “constituição de renda” decorrente de um dano corporal ou físico (morte, invalidez e despesas médicas) se transmude em dano material a ponto de receber a cobertura da verba de danos materiais no seguro de RCF-V. Aliás, diga-se de passagem, que no ambiente da responsabilidade civil sequer existe o conceito de dano corporal, que é próprio do seguro, mas nem por isso deveria o judiciário confundir os conceitos e princípios do instituto da responsabilidade civil com os conceitos e princípios do seguro do mesmo nome.

 

Para o seguro o que importa é a natureza do dano conforme delineado na apólice, se material, corporal ou moral, sendo o “pensionamento” ou “constituição de renda” apenas uma forma de indenização, como o seria a indenização única por morte ou invalidez. Do contrário, não mais sobraria espaço ou sentido para a cobertura de dano corporal e ou de dano pessoal, na medida em que toda indenização desaguaria em cobertura única de dano material, caso em que resultaria em consequências bem mais gravosas do prêmio, a dano da mutualidade, na medida em que cada uma das três coberturas referidas possuem critérios próprios de precificação ou de cálculo atuarial do prêmio, quer em função da frequência ou da severidade em razão da natureza do risco de cada qual.

 

A confusão que existe, pensamos, talvez seja por conta do conceito jurídico geral em relação aos danos materiais. O instituto da Responsabilidade Civil conhece apenas dois tipos de dano: o patrimonial, também entendido como material, e o extrapatrimonial, onde se inclui o dano moral. Não sem considerar as variantes dos danos emergentes, lucro cessante, perda de chance, danos estéticos, morfológicos… No entanto, para o seguro, que no caso é o que importa, existem dois tipos de danos patrimoniais, sendo eles o Corporal (dano físico com efeitos patrimoniais) e o Material (propriamente dito). Inclusive, as próprias apólices conceituam estas modalidades de dano (vide exemplo básico abaixo).

 

No caso, esta separação se dá, como dito, em razão da diferença destes riscos em relação ao cálculo atuarial. Colocando tudo em um só balaio, a precificação do seguro ficaria consideravelmente diferente de acordo com o perfil de cada segurado.

 

Danos Corporais: Tipo de dano, caracterizado por lesões físicas, causado ao corpo da pessoa, excluídos dessa definição os danos estéticos. Também conhecido como dano pessoal…

Danos Materiais: Todo e qualquer dano que atinja bens móveis ou imóveis…

Dano Moral: ofensa ou violação, mesmo sem ferir ou causar estragos aos bens patrimoniais, que atinja de forma negativa a honra, dignidade ou sentimentos de uma pessoa, ficando a cargo do juiz do processo o reconhecimento da existência de tal dano, bem como a fixação da sua extensão e eventual reparação…

 

Resta óbvio, portanto, que a morte e a invalidez, modalidades de danos corporais, qualquer que seja a forma de reposição ou indenização segundo o princípio indenitário que rege os seguros de dano (dentre os quais se insere o seguro de responsabilidade civil segundo a classificação dicotômica estabelecida no Código Civil, nas balizas da delimitação dos riscos do seguro), jamais se enquadrariam no conceito de danos materiais acima e, daí, nunca poderiam se enquadrar na cobertura de danos materiais, ainda que indenizado sob forma de pensionamento ou constituição de renda.

 

Em suma, a indenização no seguro de RCF-V e consequentemente a aplicação de suas verbas, deveria se orientar pela natureza primária do dano conforme sua definição na apólice, jamais pela forma de indenizar: se o dano é corporal, a indenização devida seria pela verba de dano corporal (lesões físicas causadas ao corpo da pessoa); se material, é dizer, causado a bens móveis ou imóveis, a indenização seria pela verba de dano material.

 

Tanto uma como outra cobertura admitiriam composições por perda de receita (o profissional que sofre invalidez; ou um taxista que deixa de trabalhar em face da paralisação de seu instrumento de trabalho), mas nem por isso deveriam se apropriar das coberturas do seguro que não lhes sejam próprias.

 

Por outra via, poder-se-ia recomendar, se caso, uma reestruturação nos clausulados das apólices com vistas a tornar as respectivas coberturas ainda mais claramente definidas e destinadas, inclusive deixando induvidosa toda essa questão, no sentido de que o pensionamento, se decorrente de dano corporal conforme definido da apólice, não caberia em outra verba senão na destinada a dano corporal. Quem sabe, talvez, esses casos julgados tenham sido dessa forma em face de redação pouco clara das apólices para os magistrados.

 

A clareza na definição e destinação das verbas é importante também para que não haja esgotamento de uma verba em detrimento da outra, em função de destinação equivocada, como por exemplo, ser consumida, por pensionamento ou constituição de renda, toda a verba de dano material, e nada sobrar para a reparação de danos materiais verdadeiros, e vice-versa.

A propósito, temos exposto esse nosso entendimento e preocupação em reuniões jurídicas do setor, inclusive em recente seminário de cujo painel participou como palestrante o eminente ministro gaúcho PAULO DE TARSO VIEIRA SANSEVERINO – STJ, com quem tivemos a honra de participar e debater, em Seminário para magistrados no Espírito Santo nos dias 1 a 3 de novembro de 2013, ocasião em que o ministro confirmou a informação de que o STJ ainda não apreciara o mérito da questão, que apenas ronda as portas do STJ, sem entrar, em face do juízo de admissibilidade do Recurso Especial.

Ponderamos, ademais, que o seguro de responsabilidade civil não se confunde com o instituto da responsabilidade civil, eis que, do contrário, acabaríamos no absurdo de o seguro se submeter ao princípio da indenização integral (restitutio in integrum), a ponto de sequer valer o próprio limite estabelecido em cada uma das coberturas, e sem que o segurador tenha para tanto recebido a contrapartida do prêmio. Seria um golpe contra a mutualidade, sabido que a precificação, repita-se até a exaustão, é diferenciada em cada uma das garantias (dano corporal, dano material e dano moral).

Realmente, o segurador não substitui o causador do dano, no caso o segurado proprietário do veículo com seguro de RCF-V, pois o caráter indenitário do seguro de dano é desassociado dos princípios comuns que regem o instituto da responsabilidade civil, não valendo contra ele, por exemplo, a regra da citada “restitutio in integrum”, justamente porque a dívida do segurador não é de valor, mas de dinheiro, conforme o artigo 776 do CC, nos limites do contrato.

Ora bem, se vige no âmbito da responsabilidade civil o princípio da indenização mais ampla, representado pelo aforismo da “restitutio in integrum”, também vige no âmbito do direito do seguro, o princípio inexcedível da delimitação do risco, positivado no artigo 757 do Código Civil. Por isso, se o segurado contratou cada uma das três coberturas citadas de forma insuficiente para cobrir todos os danos que ele causou ao terceiro, não seja por isso que o segurador deva responder pelo excedente, caso em que a vítima poderá, valendo-se dos princípios que regem o instituto da responsabilidade civil, inclusive o da “restitutio in integrum”, promover a competente ação judicial para pleitear o complemento da indenização contra o causador do dano.

O seguro, portanto, embora denominado seguro de responsabilidade civil, não se confunde, nem poderia, com o instituto da responsabilidade civil, sendo a responsabilidade do segurador limitada ao risco assumido e ao valor de cada garantia correspondente, que no caso não se comunicam entre si, pois como visto a delimitação objetiva e subjetiva do risco, que envolve a sua organização e distribuição no contrato, é conforme o já citado artigo 757 do CC (Ricardo Bechara Santos, in Direito do Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria, Forense Rio, páginas 182 e 184).

Com efeito, a responsabilidade civil e toda a estrutura de reparação de dano há de estar a serviço da instituição do seguro, até como “produto” (vejam as diversas modalidades de seguro de RC), jamais como carma. Tanto que o seguro de RC é tratado nos artigo 787 e 788 do CC da seção do capítulo que trata dos seguros de dano.

Nem se diga tratar-se de cláusula abusiva diante do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, este que admite cláusulas restritivas e delimitativas ao direito do consumidor, desde que redigidas com clareza e fácil compreensão, como no caso, por isso sendo da natureza própria do contrato de seguro a limitação do risco em toda sua extensão no contrato, não seria abusiva uma clausula que clara e induvidosamente preveja a particularização de cada uma das três coberturas (dano corporal, dano material e dano moral) delimitando os riscos de cada uma de forma autônoma.

 

As citadas coberturas, excludentes dos riscos uma da outra, além de não colocarem o consumidor em desvantagem exagerada (no caso o terceiro sequer é consumidor do seguro de responsabilidade civil facultativo), decididamente não são incompatíveis com a boa-fé ou a equidade, tão pouco se inserem como tais no rol das abusividades do art. 51 do CDC, até porque não ofendem, de modo algum, os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertencem, muito ao contrário, hospedam-se justamente na lógica essencial do seguro e na sua natureza própria de se organizar e plasmar o risco no contrato.

 

Até porque, como cediço, o CDC não veio à luz para alterar a natureza dos contratos típicos desenhados pelo Código Civil, dentre eles o de seguro, e dentre os de seguro, o de responsabilidade civil. Toda a revolução jurídica que o Código traz há de estar a serviço da melhoria das relações de consumo, e não para resolver as ilusões de cada um de nós. E o equilíbrio dessas relações é o limite (art. 4º do CDC), eis que, uma vez ultrapassado, restaria ameaçado um princípio maior e fundamental (art. 5º da CF), que é o da SEGURANÇA JURÍDICA, pondo-se em risco daí a própria estabilidade das instituições, cuja destruição também não está no objetivo do Código.

A propósito, temos observado que algumas empresas de ônibus, por conseguinte as seguradoras, vêm sofrendo os fortes efeitos dessa insegurança jurídica, na medida em que, por ser o seu negócio o transporte de pessoas, costumam comprar apenas a cobertura de dano corporal, bancando os riscos das demais (dano material e dano moral), em face da maior frequência e severidade, para elas, dos riscos de danos corporais ou físicos nas pessoas transportadas ou não, indenizáveis sob a forma de pensionamento ou constituição de renda. Pois bem, se a decisão judicial manda aplicar ao pensionamento a verba reservada para o reembolso de indenização por dano material, ficará a empresa segurada sem o reembolso posto não haver contratado a cobertura por dano material, fiada no entendimento, lógico, irretorquível, de que a cobertura adquirida para danos corporais seria a adequada.

Todavia, como estamos diante de uma situação real em que a jurisprudência vem, perigosamente, caminhando nesse sentido adverso (tendo algumas, mais precisamente no judiciário catarinense, indo ainda mais além para mandar aplicar indistinta e aleatoriamente as três coberturas, sem respeitar a incomunicabilidade e independência de cada uma, somando-as na medida em cada uma se esgota, independentemente da natureza do dano, se material, corporal ou moral), não devemos descartar toda forma de combate, seja no STJ no leading case que acaso lá chegar, seja melhorando a redação das apólices. Tudo para conter a insegurança jurídica que essa jurisprudência vem indevidamente causando na operação do seguro de responsabilidade civil.

Posto assim vemos com bons olhos a ideia de se rever a redação que atualmente vige nas apólices, com vistas a se estabelecer uma nova nomenclatura de modo a que se aproxime o mais possível dos conceitos encontradiços no âmbito do instituto da responsabilidade civil, sugerindo, todavia, que se acresça uma cláusula complementar estampando, claramente, que as coberturas são estanques, autônomas, independentes, e que não se comunicam entre si, em face dos critérios de precificação de cada uma.

A seguir uma sugestão, ajustável ao modelo de cada seguradora, das nomenclaturas para as referidas cláusulas:

“DANOS PATRIMONIAIS RELACIONADOS A BENS DE TERCEIROS: para cobrir o reembolso dos valores que o segurado vier a pagar a terceiros, até o limite máximo de indenização estipulado na apólice para esta cobertura, em decorrência de acordo prévio e expressamente autorizado pela Seguradora ou de sentença transitada em julgado…, em razão de dano patrimonial a bens (móveis ou imóveis) de terceiros, involuntários, causado pelo veículo segurado…

 

DANOS PATRIMONIAIS RELACIONADOS A DESPESAS MÉDICAS, INVALIDEZ OU MORTE DE TERCEIROS: para cobrir o reembolso dos valores que o segurado vier a pagar a terceiros, até o limite máximo de indenização estipulado na apólice para esta cobertura…, em decorrência de acordo prévio e expressamente autorizado pela seguradora ou de sentença judicial transitada em julgado… , em razão de morte, invalidez permanente e despesas com assistência médica e hospitalar em decorrência de acidente involuntário causado pelo veículo segurado…

 

DANOS EXTRA PATRIMONIAIS: para cobrir o reembolso ao segurado dos valores que vier a pagar até o limite máximo de indenização estipulado na apólice, em decorrência de decisão transitada em julgado… , ou de acordo judicial autorizado de modo expresso pela seguradora, por danos morais causados a terceiros, e desde que diretamente consequentes de evento coberto nesta apólice, em razão  de acidente de trânsito envolvendo o veículo segurado…

 

INDEPENDÊNCIA E INCOMUNICABILIDADE DE CADA UMA DAS COBERTURAS: as coberturas de “danos patrimoniais relacionados a bens de terceiros”, de “danos patrimoniais relacionados a despesas médicas, invalidez ou morte de terceiros” e de “danos extrapatrimoniais”, definidas nesta apólice, são estanques, autônomas, independentes e não se comunicam entre si…”

São estas as ponderações que nos ocorrem sobre o tema da referência, que submetemos à reflexão dos leitores, fazendo-o, no entanto, sub censura dos doutos.

Ricardo Bechara Santos e Renato Barcellos Santos

Advogados especializados em Direito de Seguro.

 

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