A mora do segurado

RICARDO BECHARA SANTOS

 

Entendimento, embora equivocado, que vem freqüentando julgados de prestigiosos tribunais brasileiros, dependendo de como a matéria está regulada no contrato (as cláusulas devem estar ajustadas com a “Tabela a Prazo Curto” e em perfeita sintonia com o Código Civil e normas da SUSEP), é o de que para o cancelamento da apólice, ou resolução do contrato, que importa na perda da garantia, quer dizer, na perda do próprio seguro, necessário se faz a comunicação ao segurado, não exatamente como vem estabelecido em normas da SUSEP.

 

Com efeito, a perda da garantia é, substancialmente, diferente da perda da indenização estando o segurado em mora por ocasião do sinistro, conforme letra e espírito do artigo 763 do atual Código Civil (“não terá direito à indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação”). Semelhante disposição consta do art. 12 do DL 73/66. E o art. 763 há de ser examinado em estreita sintonia com o art. 397 do mesmo Código, que trata especificamente da mora, conforme passos mais adiante se verá.

 

É o próprio legislador quem distingue uma e outra situação, tanto que, em diversas passagens do Código, se referiu, diferentemente, à perda da garantia e à perda da indenização, como por exemplo no art. 766 (perda da garantia, quer dizer do próprio seguro e não apenas da indenização, se o segurado fizer declarações inexatas); como também, ainda a guisa de exemplo, nos arts.  768 e 769 (perda da garantia por agravamento intencional do risco); enquanto que, a exemplo do art. 763, também no art. 771 o legislador não impôs a resolução do contrato pela perda da garantia, mas a perda da indenização, no caso de o segurado não avisar o sinistro logo que saiba…

 

A propósito, o STJ organizou e coordenou jornadas de estudos sobre o novo Código Civil, baixando, dentre outros, no evento de outubro de 2006, os seguintes enunciados, tangentes com o tema:

 

ENUNCIADOS da IV Jornada (Out/06): (I) “Para efeito de aplicação do art. 763 do CC, a resolução do contrato depende de prévia interpelação”; (II) “A mora do segurado, sendo de escassa importância, não autoriza a resolução do contrato, por atentar ao princípio da boa-fé”.

 

Note-se que, na dicção de ambos os enunciados, a “prévia interpelação”, que aliás pode-se dar por qualquer meio desde que se comprove a ciência do segurado inadimplente, é exigida apenas para a resolução do contrato, o que não impede a perda do direito à indenização estando o segurado em mora ex re na data do sinistro, independentemente de interpelação, conforme se vê da leitura ao art. 397 do Código. Afinal, nem sempre o sinistro importa em extinção do contrato, como não costuma acontecer, por exemplo, nos sinistros parciais.

 

Com efeito, reza o caput do art. 397 do vigente Código Civil, que “o inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor” (mora ex re), enquanto seu parágrafo único estabelece que não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial” (mora ex persona). Verifica-se, portanto, na expressão clara e textual da lei, a perda do direito à indenização uma vez estando o segurado em mora antes do sinistro, dispensada a notificação desde que seja estipulada nos documentos de cobrança a data de vencimento do prêmio, como aliás é de praxe, circunstância que constitui o devedor automaticamente em mora. A notificação ou interpelação somente seria exigida uma vez inexistindo data do vencimento.

 

Quer isso dizer que, no sistema de vasos comunicantes do Código Civil, se o segurado tem conhecimento prévio do termo de vencimento de sua obrigação de pagar o prêmio, elemento fundamental do contrato de seguro, função que é do risco, aliás principal obrigação do segurado, e se o prêmio é, como realmente é, uma obrigação positiva e líquida, para perder o direito àquela indenização que seria devida ao segurado se não estivesse em mora ex re antes do sinistro, não há necessidade jurídica de sua interpelação prévia, tanto assim que o parágrafo único do mesmo art. 397, estabelece a necessidade de interpelação prévia somente na hipótese de não haver data de vencimento da obrigação, conhecida do segurado, o que normalmente não sucede, por exemplo, no seguro de automóvel, pois a data de vencimento é previamente conhecida do segurado a partir do recebimento da boleta de pagamento.

 

Se há o prévio conhecimento pelo segurado da data estabelecida para sua obrigação de pagar o prêmio, seria extremo abuso de direito (o art. 187 do Código Civil considera ato ilícito o abuso de direito), exigir que o segurador opere como verdadeira “secretária” do segurado, encaminhando-lhe sistemática e mensalmente os avisos de cada vencimento já conhecido quando do envio do carnê, e monitorando os lembretes de seus compromissos!… A hipossuficiência do consumidor não pode nem deve chegar a tanto. O segurado tem que arcar com as conseqüências de sua mora, salvo, como anda dizendo a jurisprudência mais desavisada (vide um dos enunciados acima citados), se for a “mora de escassa importância” (não me perguntem o que seria uma mora de escassa importância, pelo alto coeficiente de subjetividade que a expressão contém, todavia, uma hipótese que poderia imaginar nessa expressão seria, por exemplo, um segurado que tenha pago a vida inteira, sem atrasar, os prêmios de um seguro, digamos, de vida, e, em momento derradeiro, que antecedeu à sua morte, deixara de pagar uma, duas ou três prestações, por razões justificáveis).

 

Portanto, notícias, muitas vezes maldosamente festejadas por alguns, dando conta dessas decisões judiciais equivocadas, não atentam para esses detalhes, não sendo lícito, portanto, generalizar, ou estender certas decisões judiciais – veiculadas de forma distorcida – a situações nelas não previstas, pois se o segurado estiver em mora por ocasião do sinistro, continuará sem o direito à indenização, quando muito com o direito de enquadramento na “Tabela a Prazo Curto”, embora para a resolução do contrato seja prudente, doravante, a comunicação prévia, que como dissemos pode-se dar por qualquer meio.

 

O direito não pode se compadecer com a possibilidade de banalizar a tal ponto os fundamentos do contrato de seguro, como que encarnando o espírito de Santa Edwiges, padroeira dos devedores, permitindo a indenização ao segurado em mora, pois, do contrário, todos iriam preferir pagar o prêmio se e quando o sinistro acontecesse, o que certamente levaria o seguro a mais completa inviabilidade, à total queima de suas reservas, mormente num País onde a “Lei de Gerson” não é mera ficção. O contrato de seguro e a mutualidade estariam feridos de morte, no coração de seus elementos essenciais, perdendo inclusive o caráter aleatório, fulminada a sua base atuarial essencial.

 

Entendamos prudente, portanto, continuar orientando pela negativa de sinistros com base na mora do segurado, ou seja, nos arts. 763 c/c 397 do NCC e 12 do DL 73/66, até porque não haveria como sintonizar a notificação de mora para efeitos da perda de indenização com a ocorrência aleatória de cada sinistro, que sabemos todos são acontecimentos futuros e incertos.

 

Aliás, sobre o cancelamento, se a Seguradora, ao cumprir o disposto no § 1º do artigo 6º da Circular SUSEP 239/2004 (determina a comunicação, em caso de inadimplência, do novo prazo resultante da aplicação da tabela a prazo curto) acrescentasse, na carta, um parágrafo dizendo que, em caso de não regularização dentro deste novo prazo, a apólice estará automaticamente cancelada, o disposto nesses julgados estaria sendo cumprido (“Art. 6°. No caso de fracionamento do prêmio e configurada a falta de pagamento de qualquer uma das parcelas subseqüentes à primeira, o prazo de vigência da cobertura será ajustado em função do prêmio efetivamente pago, observada, no mínimo, a fração prevista na tabela de prazo curto constante do anexo II desta Circular. § 1° A sociedade seguradora deverá informar ao segurado ou ao seu representante legal, por meio de comunicação escrita, o novo prazo de vigência ajustado, nos termos do “caput” deste artigo”).

 

Observe-se, ademais, que, afinal, é perfeitamente lícita a cláusula resolutiva expressa, se se confere opção ao segurado de manter o contrato com o pagamento do prêmio em atraso ou tê-lo por resolvido, atendendo-se assim ao § 2º do art. 54 do Código do Consumidor e ao art. 474 do Código Civil.

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