A prescrição no contrato de resseguro. Sua natureza jurídica

RICARDO BECHARA SANTOS 

 

Para se chegar a um entendimento sobre que prazo de prescrição extintiva de direitos rege as pretensões entre segurador e ressegurador e vice-versa, mister se conheça a natureza jurídica do contrato de resseguro, ou estudando a sua tipologia jurídica.

 

De há muito se tem discutido, mundo afora, sobre a natureza e ou tipologia jurídicas do contrato de resseguro, mas no Brasil esse debate não ganhou asas porquanto calado pelo monopólio concedido desde 1939 ao ressegurador oficial estatal, finalmente liberado pela Lei Complementar nº. 126, de 15/01/2007 e normas infra-legais regulamentares subseqüentes, embora pouco determinando ou inovando em matéria de resseguro com relação ao que dela já se conhecia no mercado internacional.

 

Consta como função primordial do contato de resseguro a de indenizar a “cedente”, ou melhor, a sociedade seguradora ressegurada, cabendo de pronto uma reparação quanto à expressão “cedente” que, embora empregada na referida Lei Complementar, não pode nem deve conduzir a uma eventual confusão entre o contrato de resseguro e o instituto da cessão, tratada especificamente pelo Código Civil.

 

Como bem pondera WALTER POLIDO, em seu “Resseguro”, editado pela FUNENSEG, antes de tudo “os contratos de resseguro são contratos de indenização” e, fundados nesse princípio geral, “(…) a responsabilidade do ressegurador se limita estritamente ao sinistro real que a companhia cedente sofreu dentro dos limites do contrato de resseguro (…)”. Sem prejuízo das várias outras funções financeiras do resseguro, dentre elas a de atuar como que espécie de capital adicional (ou margem de solvência adicional) a serviço do mercado de seguros.

 

Tal por igual não traduz que a eventual pretensão indenizatória da ressegurada contra o ressegurador e vice-versa, seja uma pretensão de reparação civil nos moldes do instituto da responsabilidade civil, por isso de pronto também resta afastada do contrato de resseguro a pretensão indenizatória de que trata o art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil, cujo prazo prescricional seria de três anos, que nada tem a ver com o princípio indenitário que rege os seguros de dano e, por conseguinte, o resseguro.

 

Mesmo que o resseguro seja conhecido como operação de transferência de riscos da “cedente” (seguradora) para o ressegurador (art. 2º da LC 126/07), já se infere que o contrato de resseguro não tem a mesma natureza jurídica da cessão, seja cessão de crédito ou cessão passiva, posto que nesta o cessionário se sub-roga nas obrigações da cedente, como sucessor, se retirando do negócio, enquanto que no resseguro a “cedente” permanece em regra na relação, em que pese a possibilidade de se poder contratar a cláusula cut-through, que excepcionalmente abre um caminho direto ao segurado (cliente da ressegurada) para demandar a resseguradora, porém não porque a “cedente” assim o quis eximir-se, mas por razões invencíveis de insolvência ou outras situações específicas.

 

Realmente não existe uma definição uniforme do resseguro quanto a sua classificação na tipologia contratual, chegando alguns autores a classificá-lo como contrato de sociedade só pelo fato das cláusulas de cooperação e de controle, comumente entranhadas no contrato de resseguro. Mas evidente que contrato de sociedade o resseguro não é, ainda que diante da cláusula folow the fortune, que obriga o ressegurador a seguir a sorte do ressegurado, pois falta o elemento de ligação entre os sócios (diga-se, aliás, que ressegurador e ressegurado tampouco sócios são) que se denomina affectio societatis, pois ao contrário da união de esforços que sucede em um mesmo lado da sociedade, haverá sempre latente entre ressegurador e ressegurado, em que pese certa parceria, interesses contrapostos, tais como os que existem entre segurado e segurador originais. O fim comum da sociedade difere do objeto do contrato de resseguro. Na sociedade o grupo de pessoas que se unem conjugam esforços ou recursos para realização de um fim comum, mas cujo interesse dos sócios é idêntico, com finalidades, econômicas ou não, próprias e que combinam por em comum seus esforços, seus bens ou sua indústria, conjuntamente, para obter lucros ou um resultado não econômico, conforme seja o objetivo da sociedade.

 

O resseguro também sequer se assemelha com o mandato, como alguns, açodadamente, tentam confundir, tal não sucedendo, entretanto, na medida em que, se mandato ou representação houvesse, estar-se-ia criando um vínculo entre o segurado originário e o ressegurador, que em regra inexiste no resseguro. Ora bem, o segurador originário celebra o contrato de seguro em nome próprio, e não por conta do ressegurador, cabendo ao segurador originário obrigações próprias, jamais o cumprimento de obrigações do ressegurador.

 

Consideram alguns autores que o resseguro e a retrocessão seriam seguros sucessivos  de seguros originais ou originários, sem, contudo, perderem suas autonomias, sendo a opinião mais acatada na doutrina internacional a de que o contrato de resseguro reporta-se, de modo geral, ao tipo securitário (PAULO DE TOLEDO PIZA, in “Contrato de Resseguro”, pág. 251).

 

Enfim, não resta melhor classificação para o contrato de resseguro senão a de que seja ele um verdadeiro contrato de seguro, formalmente acessório, mas juridicamente independente do contrato de seguro firmado entre o ressegurado e o segurado originário, cada qual com instrumentos e bases contratuais específicos. E, como contrato de seguro, o de resseguro se inseriria dentre os seguros de dano, aproximando-se do contrato de seguro de responsabilidade civil, por cobrir a responsabilidade da seguradora “cedente” (ressegurada) emergente de um contrato, garantindo o risco patrimonial próprio desta última, frente à reclamação do segurado detentor do risco originário, visando garantir a solvência da sociedade propriamente dita seguradora.

 

Por isso se diz, largamente, que o resseguro é o seguro do segurador (não o seguro do seguro), enquanto a retrocessão o seguro do ressegurador (não o resseguro do resseguro), ambos respectivamente reunindo os mesmos elementos do contrato de seguro propriamente dito, dentre eles o risco, por conseguinte a alea, o prêmio, a indenização, a mutualidade, a boa-fé, e igual natureza jurídica, pois são igualmente contratos bilaterais, onerosos, consensuais, aleatórios para muitos, senão para todos ou quase todos, e comutativos para muito poucos, senão para ninguém ou quase ninguém. Tampouco a ação direta do segurado originário contra o ressegurador (cláusula cut-trhough) alteraria sua natureza típica de seguro, como se colhe de excertos doutrinários de J. JARAMILLO.

 

Assim como o seguro propriamente dito, o seguro chamado resseguro também é regido pela “lei dos grandes números”, explicada pelo Teorema de JACOB BERNOUILLI, integrando a “sociedade de riscos”. O ressegurador, assim como o segurador original, também transfere os riscos que sobejam de sua capacidade técnica de aceitação, no caso pelo mecanismo da retrocessão. Da mesma forma que o segurador original, o ressegurador também pode dividir o risco com outros resseguradores pelo mecanismo do corresseguro.

 

Assim como o seguro típico, o resseguro também se afasta do jogo e da aposta, ainda que o risco seja elemento comum entre aqueles e estes. No seguro/resseguro o evento futuro e incerto, que uma vez materializado se converte em sinistro, não é em regra desejado pelas partes, enquanto no jogo e na aposta, conquanto não seja desejado pela banca, o é, fortemente, pelo apostador. O prêmio é a prestação do segurado/ressegurado, mas no jogo e na aposta a prestação da banca é o benefício do apostador.

 

As operações de resseguro também seguem as cautelas obrigatórias das provisões e reservas técnicas, agindo enfim suas operadoras com margem de solvência, capital mínimo e outros sistemas garantidores, inclusive de seus ativos, debaixo das mesmas regras a que se submetem as seguradoras originais. A atuária, ou matemática do seguro, também é sua ciência mãe.

 

Conforme de oportuno lembra PAULO DE TOLEDO PIZA, in “Contrato de Resseguro”, pág. 39, “(…) a doutrina moderna é praticamente unânime em considerar o contrato de resseguro como uma espécie de contrato de seguro (…)”.

 

O contrato de resseguro “é um típico negócio jurídico de seguro, melhor ainda, um seguro contra o surgimento de uma dívida ou débito”, como pondera o acatado jurista colombiano J. JARAMILLO, citado por POLIDO, em sua obra “Resseguro”, Funenseg. Pág. 3.

 

O resseguro, apesar da identidade, também não se confunde plenamente com o cosseguro em si (art. 2º da LC 126/07 e art. 761 do Código Civil), como alguns poucos tentaram ensaiar, embora ambos sejam manifestações de seguro e meios de distribuição ou pulverização de riscos entre mais de uma seguradora, só que no resseguro, onde a seguradora é chamada de resseguradora, não há vínculo entre o segurado originário e a resseguradora. No cosseguro as responsabilidades e obrigações das seguradoras costumam ser simultâneas em relação aos segurados originais, enquanto no resseguro sucessivas. São operações enfim em que a seguradora originária se utiliza tecnicamente, por não deter capacidade própria de aceitação de riscos em função de seu ativo líquido e, legalmente, diante do art. 79 do Decreto-Lei 73/66, que expressamente veda ao segurador reter responsabilidade superior ao seu LT/LR (Limite Técnico ou Limite de Retenção).

 

Tudo isso não bastasse, vale acrescentar que, consoante o art. 4º do Decreto-Lei 73/66, o resseguro, o co-seguro e a retrocessão, são partes integrantes da operação de seguro, in literis:

 

“Integram-se nas operações de seguros privados o sistema de co-seguro, resseguro e retrocessão, por forma a pulverizar os riscos e fortalecer a relações econômicas do mercado.”

 

Em reforço a isso, acresça-se com o art. 5º da Lei Complementar 126/07, que manda aplicar

 

“aos resseguradores locais, observadas as peculiaridades técnicas, contratuais, operacionais e de risco da atividade e as disposições do órgão regulador de seguros: (I) o Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966, e as demais leis aplicáveis às sociedades seguradoras, inclusive as que se referem à intervenção e liquidação de empresas, mandato e responsabilidade de administradores; e (II) as regras estabelecidas para as sociedades seguradoras.”

 

Deflui daí que as operações e os contratos de seguro, cosseguro, resseguro e retrocessão, bem assim suas operadoras, se submetem ao dirigismo estatal dos mesmíssimos órgãos reguladores, normatizadores e fiscalizadores, integrando um só sistema: o Sistema Nacional de Seguros Privados (art. 8º. Do DL 73/66 e arts. 2º e 3º da LC 126/2007).

 

Houve até quem propusera, como conceito ou definição de contrato de resseguro, como sendo “(…) a relação obrigacional pela qual a resseguradora, mediante o recebimento do prêmio, garante o interesse da seguradora contra os riscos próprios de sua atividade, decorrentes da celebração e execução de negócios de seguro” (JOÃO MARCOS BRITO MARTINS e LÍDIA DE SOUZA MARTINS, in “Resseguros – Fundamentos Técnicos e Jurídicos”, editora Forense Universitária, pág. 44). Conceito aliás que, guardadas as devidas peculiaridades, se assemelha à definição do contrato de seguro plasmada no art. 757 do Código Civil de 2002.

 

No Caderno “Estudos e Pesquisas” editado pela FUNENSEG, especificamente sobre “O RESSEGURO”, Volume I, “Seleções do Concurso de Monografias Funenseg-Aon Re Brasil”, pág. 15, constam transcritas as seguintes idéias e conceitos do resseguro, ipsis literis:

 

“Um contrato de resseguro é um contrato de seguro entre um segurador ou ressegurador puro (o ressegurador) e outro segurador ou segurador puro (o cedente) de indenização contra perdas em um ou mais contratos emitidos pelo cedente em troca de uma remuneração (o prêmio), tradução livre (IAIS, 2004, p. 57); seguradoras aceitam riscos, isto é, potenciais reclamações de seus clientes, os segurados, contra a cobrança de um preço chamado prêmio. Se um risco ou cesta de risco é tão grande para a companhia, ela repassa parte do risco para outras companhias, resseguradoras, o restante do risco não repassado que fica retido na primeira seguradora, que é chamado de retenção (tradução livre – STRAUB, 1997, p. 1).”

 

Pelo até aqui exposto, já se infere que o contrato de resseguro tem muito mais que uma simples afinidade com o instituto jurídico do contrato de seguro em seus diversos pontos, para integrar-se na sua grande categoria e nela ser incluído a título de classificação, pois com ele se confunde e se permite afirmar que o resseguro é um seguro mesmo – ainda que atípico – próprio do segurador, razão pela qual se afasta léguas, do prazo prescricional geral de dez anos, para se encontrar regido pelo mesmo prazo prescricional anuo do seguro previsto no artigo 206, inciso II do Código Civil, até porque dito dispositivo não faz qualquer referência a que tipo de seguro privado ele alcança, típico ou atípico, de dano ou de pessoa, bastando seja um seguro privado, em suas mais variadas manifestações.

 

E não seria o fato de o contrato de resseguro não dispor de normas legais específicas a regular-lhe no direito brasileiro, mas apenas referências a cláusulas obrigatórias incluídas na LC 126/07, o que faz dele um contrato atípico, que são aqueles sem tratamento legal específico, mas admissíveis juridicamente, como bem pondera o ilustre especialista SERGIO BARROSO DE MELLO, em seus formidáveis escritos, ainda não publicados porém a mim confiados e autorizada esta pequena pitada de seus ensinamentos sobre o tema, que o descaracterizaria como integrante da família dos contratos de seguro, ou como espécie de contrato de seguro mesmo, que efetivamente é.

 

O eminente especialista citado enquadra o contrato de resseguro como contrato atípico-misto, por isso submetido às regras do Código Civil reservadas aos contratos em geral (aliás, também a essas regras gerais se submetem os contratos típicos, naquilo que as regras específicas não dispuserem), como também especial e principalmente, às regras destinadas aos contratos de seguro sempre no que lhe for tecnicamente possível, o que reforça a qualificação do resseguro como espécie de contrato de seguro, por isso sendo-lhe aplicável as que se referem aos prazos específicos de prescrição reservados ao contrato de seguro. Porque, ainda com o magistério de SERGIO BARROSO DE MELLO, o contrato de resseguro se liga ao de seguro até na sua origem, pois têm sua formação com base, fundamentalmente, na ciência atuarial, no mutualismo, na álea, dentre outros elementos visceralmente comuns a ambos os negócios jurídicos, justificando, inegavelmente, sua estreita proximidade como que xifópaga, siamesa, com o contrato de seguro e suas regras e fundamentos. São contratos que, afinal, se unem pelo mesmo DNA.

 

Os juristas mais investigativos, que estudaram o tema de ponta a cabeça, extraíram, da anatomia do contrato de resseguro, sua natureza de um contrato de seguro mesmo, e de seguro de dano, até por sua função assegurativa calcada no princípio indenitário, afastando as elocubrações teóricas e concluindo, efetivamente, não se tratar ele, em que pese alguns pontos comuns que costumam os diversos contratos possuírem entre si, nem de fiança, nem de mandato, nem de sociedade, nem de cessão, nem de comissão mercantil, nem de contrato  de contas em participação, nem de qualquer outro senão o de seguro. A esse tema, sugiro leitura à obra de BLANCA ROMERO MATUTE (emérita professora de Direito Mercantil das Faculdades de Direito e de Ciências Econômicas da Universidade de Cádiz, membra da Seção Espanhola de AIDA), intitulada El Resseguro Tomos I e II, editada pelo COMITÊ HIBERO-LATINOAMERICANO DE AIDA-CILA, por ocasião do PREMIO BIENAL J. EFRÉN OSSA G., em parceria com a Pontifícia Universidad Javeriana, Faculdad de Ciências Jurídicas.

 

Nesse sentido também as lições do festejado jurista argentino RUBEN S. STIGLITZ, acatado nas paisagens jurídicas das Américas e da Europa, que a propósito da natureza jurídica do contrato de resseguro, não hesita em afirmar que

 

el reasseguro es um supuesto ou modalidad del seguro de daños por el cual el assegurador/reasegurdor se assegura (se garantiza), total o parcialmente, dentro de los limites estipulados convencionalmente, contra la aparición de um daño com motivo de tener que afrontar eventualmente las consecuencias dañosas de um siniestro que sufra su asegurado”. (in Deretho de Seguros, Tomo III, pag.300, 4ª edição, Editora FEDYE)

 

E em base à premissa supra, o mesmo acatado autor conclui, inevitavelmente, que

 

uno de los efectos derivados de identificar al reaseguro como um seguro de daños se halla relacionado com la prescripción”.

 

Nesse sentido assinala, no particular, que, ao tratar-se de um contrato de seguro, lhe é aplicada a previsão dos prazos prescricionais previstos para o contrato de seguro (obra citada, pag. 303).

 

É certo que a prescrição é instituto de ordem pública e que por isso não comportaria interpretação extensiva, caso em que deveria se aplicar o prazo geral de dez anos previsto no artigo 205 do Código Civil, assim reservado para quando a lei não lhe haja aplicado prazo menor. Mas é certo também, certíssimo aliás, que esse não é o caso do resseguro, porque a lei previu, para qualquer pretensão decorrente do contrato de seguro privado, o prazo de um ano, nele se incluindo o seguro do segurador, isto é, o resseguro, como também o seguro do ressegurador, ou seja, a retrocessão.

 

E não seria lógico, nem razoável, salvo por comodismo intelectual ou raciocínio simplista, entender que bastaria não haver nominação, letra por letra, do instituto no rol das previsões do art. 206 do Código Civil, para só por isso cair na vala comum daquele prazo geral, e tão maior, de dez anos, a que alude o art. 205 do mesmo Código. Por isso o enquadramento há de ser, irrefragavelmente, pela afinidade dos institutos, quanto mais pela sua identidade, sendo absurdo sequer supor que a prescrição no seguro seja diferente no resseguro, quer dizer, de um ano no seguro e de dez anos no resseguro, co-seguro e retrocessão, quando todos esses institutos se confundem na sua natureza jurídica, integrando uma mesma morfologia contratual e operacional, a mesma genética familiar, daí porque adotar prazos distintos de prescrição em situações iguais seria desprezar e menoscabar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, como também o da isonomia, além de banalizar regras comezinhas de hermenêutica.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS E HISTÓRICAS SOBRE O INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO

 

Feitas as considerações sobre o seu prazo, que preside a pretensão do ressegurador contra o segurador e vice-versa, insta a propósito tecer algumas considerações gerais e históricas sobre o instituto da prescrição, para melhor deslinde da situação específica da questão aqui agitada.

 

Com efeito, o instituto da prescrição está presente no direito e na legislação de todos os povos, desde os primeiros tempos de Roma, como nos informa CÂMARA LEAL, sendo inegável a sua transcendente importância, notadamente para a instituição do seguro, por conseguinte do resseguro que, pelos seus sistemas próprios de constituição de reservas e provisões técnicas, necessitam contar, sobremaneira, com certa limitação temporal para as demandas e pretensões dos segurados, de modo a que a mutualidade gerida pelo segurador/ressegurador não fique à mercê de uma infinita e dispendiosa manutenção, por isso a prescrição é, como dito e redito, instituto criado como medida de ordem pública, visando a que a estabilidade do direito, das instituições e das relações, seja assegurada, liberando as pessoas, físicas e jurídicas, de seus compromissos para que não fiquem eternizadas pelo guante, pela vergasta do tempo.

 

Realmente, a inércia é fenômeno subjetivo e muitas vezes voluntário, enquanto o tempo é fenômeno objetivo, porém ambos, como fenômenos extintivos, ou aquisitivos, de direitos, ganham o caráter de fatos jurídicos que, na definição de SAVIGNY, mostrada por Câmara Leal (“Da Prescrição e Decadência”, Forense, pág. 22), são os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem e se extinguem.

 

Daí a chamada prescrição liberatória ou extintiva que no caso mais interessa ao presente estudo, e que se contrapõe à prescrição aquisitiva, de que é exemplo a usucapião, pois enquanto a prescrição extintiva libera o devedor, a prescrição aquisitiva importa na aquisição de direitos em face do decurso do tempo sem contestação.

 

É como disse o jurista argentino AMADEO SOLER ALEU: “La prescriptión es una excepsión o defensa para repeler una acción pelo solo hecho de quien la entabla há dejado durante um lapso de intentaria o de ejercer el derecho al cual ella se refiere”.

 

A doutrina vem ao longo do tempo mostrando os motivos determinantes da legislação criadora da prescrição, dentre outros os seguintes, que revelam a evidente procedência e utilidade do instituto: (a) o da ação destruidora do tempo (COVIELLO); (b) o do castigo à negligência (SAVIGNY); (c) o da presunção de abandono ou renúncia (M.I. CARVALHO DE MENDONÇA); (d) o da presunção de extinção do direito (COLIN & CAPITANT); (e) o da proteção ao devedor (VAMPRÉ e CARVALHO SANTOS); (f) o do interesse social, pela estabilidade das relações jurídicas (BAUDRY, & TISSIER, LAURENT, PLANIOL & RIPERT, COLIN & CAPITANT, BELTJJENS, CHIRONI & ABELLO, COLMO, PUGLIESE, BARASSI, RUGIERO e muitos outros).

 

Dentre as justificativas da prescrição acima apontadas, deve-se de logo afastar aquela que se baseia no fato de que seria referido instituto uma forma de punição pela inércia do interessado, é que não haveria fundamento lógico no fato de alguém ser punido apenas por não exercer um direito seu.

 

De mais força seria a justificativa filiada à necessidade de pacificação social, considerando que as relações jurídicas não podem nem devem, de forma alguma, ficar pendentes de solução indefinidamente, somando-se daí a que se baseia na segurança jurídica, na necessidade da estabilidade das instituições, sendo oportuno afirmar, com CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, que “o direito exige que o devedor cumpra o obrigado e permite ao sujeito ativo valer-se da sanção contra quem quer que vulnere o seu direito; mas se ele se mantém inerte por certo tempo, deixando que se constitua uma situação contrária ao seu direito, permitir que mais tarde reviva o passado é deixar em perpétua incerteza a vida social. Há, pois, um interesse de ordem pública no afastamento das incertezas em torno da existência e eficácia dos direitos, e esse interesse justifica o instituto da prescrição em sentido genérico”.

 

Portanto, sendo a segurança jurídica fundamento maior da prescrição, é muito mais forte que qualquer eventual evocação do tão decantado princípio da função social do contrato (no caso sequer invocável por se tratar de partes não vulneráveis pela hipossuficiência), por mais penoso que se possa imaginar a situação daquele que se vê privado de um direito pelo simples decurso de prazo, mesmo em se tratando de contratos impregnados desse princípio, o da socialidade. Afinal, trata-se de extinção de um direito cavada pela própria inércia de seu titular.

 

Cabe a propósito recordar, que o instituto da prescrição deve incidir em todos os campos do direito, pois como dito a prescrição é o modo pelo qual um direito se extingue em face da inércia de seu titular, durante certo tempo, como de há muito já ensinava ORLANDO GOMES, em sua “Introdução ao Direito Civil”, Forense, Rio, ou, consoante NELSON NERY JÚNIOR, uma causa extintiva da pretensão de direito material pelo seu não exercício no prazo estipulado em lei, conforme escólios que se extraem de seu “Código Civil Anotado”, RT, SP. Mas merece destaque a preleção de FÁBIO MEDINA OSÓRIO, literis:

 

“Sem embargo, a justificação constitucional para o instituto da prescrição é, sem dúvida, o princípio da segurança jurídica. Ninguém pode ficar à mercê de ações judiciais por tempo e prazos indefinidos ou, o que é pior, perpétuos. Trata-se de uma garantia individual, porém com intensa transcendência social. As relações sociais necessitam de segurança e o direito busca, em um de seus fins, assegurar a estabilidade na vida das relações…” (in Direito Administrativo Sancionador, RT, SP).

 

 

Se se trata, portanto, de um direito de ordem pública, fundado em princípio constitucional, sua violação poderia até mesmo ser objeto da proteção heróica de Recurso Extraordinário, não fora o entendimento pretoriano de que a infringência deva ser direta, não por via reflexa!

 

Realmente, num Estado Democrático de Direito, a ordem jurídica gravita em torno de dois valores essenciais: a segurança e a justiça. Para realizar a justiça, tanto material como formal, prevêem-se diferentes mecanismos, que vão da redistribuição de riquezas ao asseguramento do devido processo legal. É para promovê-la que se defende a supremacia da Constituição, o acesso ao Judiciário, o respeito a princípios como o da isonomia, o da irretroatividade das leis etc.

 

A segurança, por sua vez, encerra valores e bens jurídicos que decerto não se esgotam na mera preservação da integridade física do Estado e das pessoas. Abrigam-se em seu conteúdo, ao contrário, conceitos fundamentais para a vida civilizada, como continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas. Em nome da segurança jurídica, consolidaram-se institutos desenvolvidos historicamente, com destaque para a preservação dos direitos adquiridos e da coisa julgada. É nessa mesma ordem de idéias, como lembra o professor LUÍS ROBERTO BARROSO, “que se firmou e difundiu o conceito de prescrição, vale dizer, da estabilização das situações jurídicas potencialmente litigiosas por força do decurso do tempo”. Acrescenta que essa visão é amadurecida e incontroversa, e não apenas na doutrina publicista. SAN TIAGO DANTAS, com densa simplicidade, resumiu o conhecimento convencional:

 

“Esta influência do tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais. Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado de coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro; quem podia reclamar não mais o pode. De modo que, o instituo da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: estabelecer a segurança nas relações sociais – fazer com que o homem possa saber com o que conta e com o que não conta.” (Programa de Direito Civil, Parte Geral, 1977, p. 397/8)

 

Pode-se daí afirmar, sem quaisquer rebuços de dúvidas, já que em qualquer dos campos do direito a prescrição tem como fundamento lógico o principio geral e constitucional da segurança das relações jurídicas, que é ela uma regra absoluta, enquanto a imprescritibilidade situação excepcionalíssima, valendo a propósito conferir com os magistérios, respectivamente, de PONTES DE MIRANDA e CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

 

“A prescrição, em princípio, atinge a todas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional” (Tratado de Direito Privado, Vol. 6, §§ 666, p. 127)

 

 “A prescritibilidade é a regra, a imprescritibilidade a exceção” (Instituições de Direito Civil, Vol. 1, p.147).

 

Tudo isso, como se vê, independentemente das condições pessoais ou econômicas do prescribente e do titular da pretensão, pessoas físicas ou jurídicas, mesmo que o prescribente seja um devedor, por exemplo, que tomou um empréstimo do credor e não pagou, ou, ainda, que o prescribente seja alguém que se apossou de um bem do titular de um direito de propriedade; nem por isso a prescrição, ao extinguir o direito do credor ou do proprietário, importará em ato expropriatório, por exemplo. Nessa senda, nem mesmo a tão decantada função social do contrato, como dito, poderia, legitimamente, se sobrepor à força dos fundamentos que presidem o instituto da prescrição.

 

De fato, tendo como escopo extinguir as pretensões, por conseguinte as ações delas decorrentes, cabe repisar que o instituto da prescrição foi criado como medida de ordem pública, visando a estabilidade do direito e para que as relações não viessem a se perpetuar, liberando as pessoas de seus compromissos para que não restem agrilhoadas pelo tempo. Efetivamente, desde as lições, primordiais, de LUDWIG ENNECERUS, “a prescrição serve à segurança geral do direito e à paz jurídica, as quais exigem que se ponha um limite às pretensões jurídicas envelhecidas. Sem a prescrição ninguém estaria a coberto de pretensões sem fundamentos ou extintas se, como freqüentemente é inevitável, houvesse perdido no curso do tempo os meios da prova para sua defesa”. É certo que o instituto pode vir a favorecer o devedor inadimplente, mas, ainda que possa eventualmente servir à contrariedade do justo, seus benefícios sociais o justificam plenamente.

 

E cada vez mais curtos são e devem ser os prazos de prescrição, na medida em que a modernidade avança.

 

Daí a chamada prescrição liberatória ou extintiva, que se contrapõe à prescrição aquisitiva (a usucapião), justo porque, aquela, libera o devedor, enquanto esta importa na aquisição de direitos em face do decurso do tempo sem contestação. Tanto numa quanto noutra, a sociedade moderna vem imprimindo prazos até menores, encurtando-os tanto para extinguir direitos quanto para adquiri-los, ao contrário da legislação do Baixo Império Romano que admitia uma praescriptio longissimi temporis, de trinta ou quarenta anos, o que já representava na época uma evolução, porque antes não se admitia ponto de extinção de obrigações, nem de ações, por conseqüência de inação daquele que podia exercê-la, pois as ações, então, eram em geral perpétuas.

 

Percebeu-se que o tempo, só, não podia nada criar e nada destruir, mas a ele dever-se-ia juntar outros elementos, variáveis em relação à prescrição (extintiva) e a usucapião (prescrição aquisitiva). Recorde-se que, neste, se exige um elemento positivo – a posse – sob as condições determinadas em lei e tem por efeito a aquisição da propriedade; naquela, há um elemento negativo – a inação – e seu efeito é extintivo.

 

A inércia do credor, consoante CARVALHO SANTOS, secundando CLÓVIS BEVILÁQUA, in “Código Civil Brasileiro Interpretado”, 1934, vol. 3, pág. 72, estabelece uma situação de dúvida que a ordem jurídica condena, por isso a prescrição exprime o modo pelo qual a pretensão de direito se extingue, em vista do não exercício dele por certo lapso de tempo, por falta de ação de seu titular. O decurso do tempo é, pois, um dos acontecimentos naturais que maior influência exerce nas relações jurídicas, conforme algures mencionamos sobre como o tema evoluiu.

 

É este, em estreita síntese, o resumo de meu entendimento, sub censura dos doutos.

 

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