As ouvidorias a serviço do consumidor

RICARDO BECHARA SANTOS

 

Atualmente, após a constatação do inegável prestígio do consumidor permeada por recorrentes debates, o funcionamento das OUVIDORIAS encontra-se regulado pela Resolução nº 110/04 do CNSP, que estabelece as regras e critérios mínimos a serem observados pelas entidades supervisionadas, para fins de reconhecimento das OUVIDORIAS pela SUSEP.

 

Passados, portanto, cerca de seis anos de seus profícuos serviços, o Conselho Diretor da SUSEP decidiu lançar em Audiência Pública (AP nº 07/10), nova minuta de Resolução do CNSP visando a alterar a que se encontra em vigor, com a novidade de pretender tornar obrigatórias as OUVIDORIAS pelas entidades supervisionadas, objetivando assegurar a estrita observância das normas legais e regulamentares relativas ao direito do consumidor e de atuar como canal de comunicação entre essas entidades e os clientes e usuários de seus produtos e serviços, inclusive na mediação de conflitos.

 

Tudo isso de forma a que as OUVIDORIAS sejam constituídas e dotadas de estrutura compatível com a natureza e a complexidade dos serviços de cada entidade, mas com as necessárias autonomia e independência das suas demais unidades organizacionais. Tanto assim, que a minuta de Resolução posta em audiência pública estabelece como condição que o Ouvidor não poderá acumular outra função na entidade, exceto a de diretor de relações com a SUSEP, devendo se reportar, tamanha a importância da função, diretamente ao diretor presidente ou ocupante de cargo correlato, que responderá solidariamente pelos atos praticados pelo Ouvidor.

 

A ideia de revisão das normas hoje vigentes demonstra, à saciedade, o prestígio cada vez maior que o consumidor goza em todo o sistema de sua proteção estabelecido pelo ordenamento jurídico vigente, a partir da Constituição Federal de 1988 e com o advento do CDC.

 

Com efeito, embora deitem suas raízes em datas mais remotas, as OUVIDORIAS tiveram seu primeiro impulso, até chegar aos dias de hoje com a sua disseminação quase que total no mercado segurador, a partir do advento do Código de Relações de Consumo em 1990, que inaugurou uma como que “Monarquia Sui Generis“, onde reina sua “Majestade o Consumidor”, com todo esse poderoso “Sistema de Defesa” a seu serviço, desde a Imprensa, os PROCONs, o Ministério Público e Associações Legitimadas, o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas, as Câmaras de Vereadores, o Poder Judiciário, setores do Poder Executivo, inclusive, como vimos, a SUSEP, e também a ANS. Mas não podemos deixar de render nossas justas homenagens à douta Superintendência de Seguros Privados, pela iniciativa concreta de criação efetiva das OUVIDORIAS no mercado segurador.

 

Espera-se nunca seja chegada a hora, madura e inevitável, da necessidade de se criar, como medida extrema, as “associações dos fornecedores desassistidos”.

 

Todo esse fenômeno, que teve como germe o Código de Defesa do Consumidor, forçou, principalmente no mercado segurador, o aperfeiçoamento das relações das sociedades seguradoras com o segurado, melhorando a qualidade de seus serviços, de seus manuais impressos, de suas garantias adicionais, de seus atendimentos etc, rendendo-se, assim, aos pés de sua “majestade o consumidor”, inclusive culminando por resgatar mais um setor a serviço dele, as OUVIDORIAS que, aliás, remontam aos tempos da Monarquia, ganhando nome de rua na velha capital, no Rio de Janeiro, onde esteve até pouco tempo, exatamente na Rua do Ouvidor, a sede da centenária seguradora Sul América.

 

Não seria demasiado lembrar que o mercado segurador desde o início de sua vigência reconheceu sua submissão a esse notável Código de Relação de Consumo – que depois da Lei Áurea foi a lei mais festejada neste País -, ao contrário dos Bancos, diga-se de passagem, que a ele resistiram até que o STF, em decisão proferida em ADI da CONSIF e sem autorização das seguradoras, diga-se de passagem, desencantou a pretensão, embora legítima, do Sistema Financeiro Nacional de ver as instituições financeiras fora da abrangência do referido Código.

 

Enfim, o Código de Defesa do Consumidor, inegavelmente, abriu as comportas de uma litigiosidade contida, fazendo crescer a consciência reivindicatória, cujo movimento pendular acionado a partir dele, espera-se um dia, talvez com o auxílio das OUVIDORIAS, vir a se equilibrar de forma mais consistente, até porque o equilíbrio é o limite traçado pelo próprio Código Consumerista, eis que, do contrário, uma vez ultrapassado esse limite, estará cada vez mais em perigo o princípio, maior e constitucional, da Segurança Jurídica, que garante a estabilidade das instituições. Mas é bom que se diga que esse Código não veio à luz para resolver as ilusões de cada um de nós, mas unicamente, frise-se, para melhorar as relações de consumo, razão pela qual não teve o condão de modificar as fórmulas e elementos básicos dos contratos típicos, cuja disciplina é do Código Civil, dentre eles o de seguro. Nem mesmo a propalada “função social do contrato” teria esse propósito tão presente.

 

Permitindo-me uma linguagem metafórica e tomando de empréstimo algumas idéias de um artigo publicado numa dessas revistas de bordo, Luís XIV (1638-1715), rei de França, o chamado “Rei Sol”, monarca absolutista, déspota, que dizia “O Estado sou eu”, ao verificar que sua carruagem chegava diária e infalivelmente na hora exata em que ele marcava, certa vez disse: “Eu quase esperei”. Com a globalização, com a competição acirrada que temos no mercado, com tantos concorrentes em busca do mesmo cliente, com tantas opções de compra de produtos e de serviços, a verdade é que o cliente se tornou um rei. E um rei déspota, intolerante, exigente, que sabe do poder absoluto que tem. O cliente, hoje, se comporta como um Luís XIV e espera que todos venham servi-lo, bajulá-lo, fazer-lhe mesuras e rapapés. O cliente de hoje não aceita esperar. Ele quer tudo na hora. E quando servirmos e atendermos o cliente na hora exata que ele exigiu e da forma como exigiu, ele ainda dirá: “Eu quase esperei…”.

 

Cada vez mais o poder passará das mãos da empresa para as mãos do cliente. E o cliente sabe fazer uso desse poder “real” em seu favor, pouco se importando com qualquer dificuldade que a empresa possa alegar ou justificar (e esse seu poder cresce ao ponto de abusar com exigências até descabidas, muitas vezes de serviço ou produto para o qual não pagou ou sequer comprou; é ele quem acaba definindo os produtos e serviços do fornecedor). Essa nova realidade traz necessidades de um novo comportamento. É preciso ter senso de urgência. O cliente não aceita mais esperar. E se você deixá-lo esperar, com certeza o perderá (muitas vezes ainda movendo ação por dano moral pelo simples fato da demora).

 

Se quisermos sobreviver nesses novos tempos, teremos que servir, de algum modo, a esse rei absolutista e déspota que se chama consumidor ou cliente. E mais do que satisfazê-lo (diz a área de produção ou comercial, para irritação da área de sinistros), temos que antecipar seus desejos e estar com a nossa “carruagem”, onde ele estiver, antes da hora por ele marcada. Se quisermos conquistar e manter esse rei como cliente, teremos que surpreendê-lo, encantá-lo (se preciso até perfumando as apólices e ou o “enxoval” que as guarnece). E mesmo assim, temos que estar preparados para ouvir: “Eu quase esperei”…

 

Em poucos meses de vivência de Ouvidorias, já se podia confirmar, mormente agora passados seis anos, toda a assertiva acima, por mais que atendamos às inquietudes do consumidor, que começa a eleger, com profusão, os serviços de Ouvidorias das empresas, cada vez mais exigente ele se torna.

 

Nesse contexto, vale a propósito também lembrar as imortais palavras de nosso saudoso e pranteado PEDRO ALVIM, que me dei ao trabalho de anotar em palestra por ele proferida logo após a edição do CDC, no início da década de noventa, assim se manifestando: “Apesar de ser um contrato amplamente divulgado, o seguro continua sendo mal compreendido pela maioria dos segurados. Poucos são os que acreditam realmente na possibilidade de serem vítimas do risco, razão porque não lhe dão maior atenção e não perdem tempo em aprofundar seu entendimento com a leitura de suas cláusulas. Nem mesmo o corretor é ouvido com paciência, ao tentar esclarecer o sentido e o alcance de determinadas condições. Esse estado de espírito do segurado preside a celebração do contrato. Julga satisfatórias as noções superficiais sobre a natureza e o objeto do seguro e que se resumem na convicção de que, se houver o sinistro, o segurador terá de pagar a indenização integral. Reside aí a dificuldade do melhor relacionamento entre as partes contratantes. E os desentendimentos aparecem por ocasião do sinistro, quando as emoções traumáticas do acontecimento perturbam sua capacidade de assimilação do exato sentido do contrato. Como não chegou a inteirar-se dessa situação, quando fez o contrato, defende seus direitos com fundamento apenas naquelas noções vagas que alimentava. A ocorrência do sinistro deveria ser a oportunidade do segurador de exaltar a importância social da instituição do seguro. Cumprir rápida e satisfatoriamente suas obrigações contratuais, condição essa necessária para respaldar a verdadeira imagem da instituição. Infelizmente, o que acontece com maior freqüência, apesar de ter sido o contrato cumprido, de acordo com suas cláusulas, é ficar o segurado insatisfeito, supondo-se lesado nos seus direitos. Mesmo sabendo das dificuldades muitas vezes enfrentadas nas regulações e liquidações de sinistros mais complexas e de mais difícil obtenção das informações, documentos e dados necessários para sua completa e perfeita conclusão. Eis porque a instituição do seguro não desfruta da posição que devia ter no meio social e que afeta seu desenvolvimento e desperta a má vontade da própria magistratura e de alguns de seus intérpretes, no julgamento e decisões levados a seu conhecimento.”

 

E por falar em intérprete e magistratura, eis que os magistrados por vezes são também importantes “vassalos do consumidor”, no bom sentido é claro, vale resgatar as palavras de CONDILAC, que, versando sobre a vaidade do ser humano, e apontando como virtude a arte de reconhecer com humildade o erro diante dos fatos, e que mudar de idéia é mais nobre no homem do que insistir no erro por simples capricho, afirma, sem rebuços de dúvida, que a pessoa, ao invés de atentar para as coisas que pretende conhecer, as imagina e, de suposição falsa em suposição falsa, extravia-se do caminho certo, entre uma infinidade de erros, os quais, com o tempo, se transformam em preconceitos. Aliada ao preconceito, a paixão faz respeitar mais o erro do que a verdade. Daí porque EISNTEIN, percebendo a origem crônica dessa enfermidade, chegou a afirmar que foi para ele mais fácil desintegrar um átomo do que remover um preconceito.

 

Tudo isso também pode acontecer no judiciário e em todas as instâncias e organismos que acabam julgando o seguro (infelizmente, apesar de sua inegável importância, o seguro ainda se mostra um ilustre desconhecido), eis que de tanto repetir decisões equivocadas pode resultar em jurisprudências e precedentes preconceituosos de difícil remoção. Quem sabe o Novo Código Civil, no salutar diálogo das fontes, dentre estas o CDC, seja um momento oportuno para uma reflexão por aqueles que queiram rever os seus conceitos sobre o contrato de seguro e seus elementos e fundamentos essenciais tão bem hospedados em seus artigos 757 até 802.

 

Quem sabe também as OUVIDORIAS, como as arbitragens, sejam o marco de um novo tempo para o desarme de preconceitos e a renovação dos conceitos técnicos que devem presidir as decisões sobre o contrato de seguro, afinal, as decisões mal aplicadas, julgadas por simples e desavisadas sensações dissociadas da lógica e da boa técnica, conquanto possam favorecer o segurado na sua individualidade, acabam penalizando, injustamente, toda a mutualidade, ou seja, a coletividade de consumidores de seguro. Daí porque as OUVIDORIAS não devem apenas se prestar ao papel de resolver cada caso concreto, mas também ao de, com base nas experiências das soluções dadas, e esse o seu grande mérito, sugerir e promover correções de rumo em prol do aperfeiçoamento do seguro, sem perder de vista os seus fundamentos, pensando e voltando suas vistas para a coletividade de consumidores de seguro que integram a mutualidade, e não apenas naquele que reclama, inclusive para que as reclamações minimizem.

 

Realmente, interpretar sempre, mas com os necessários limites que não se permita rasgar a lei, pois a Constituição não confere ao juiz a produção de leis, porque isto seria contrário às liberdades políticas, o usurpar o Poder as funções do outro. Há realmente situações em que o “magistrado” se vê a braços com omissões e lacunas da lei, que lhe cumpre integrar, suprir ou preencher, outras em que a lei é de tal modo clara que sua alteração, senão pelo legislativo, importaria na sua jugulação, como é, por exemplo, o artigo 798 do Código Civil, que criou claro e legítimo critério objetivo de prazo de carência, dentro do qual não há de ser pago o capital segurado em caso de suicídio, seja qual for a forma de autoeliminação da vida, assim como o capital não pode deixar de ser pago se o suicídio ocorrer fora da carência.

 

Vale aqui terminar com excertos de LOPE DE VEGA: os que julgam e aplicam normas, assim como “Os magistrados, devem ser como as leis, que castigam com equidade e não com ira”.

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