Breve comentário ao acórdão da terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, no recurso especial nº 1.297.362-SP, versando o dies a quo da prescrição em ação de ressarcimento no seguro marítimo

Por RICARDO BECHARA SANTOS

 

A decisão abaixo ementada, da Terceira Turma do STJ, de relatoria do eminente Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, exarada no REsp nº 1.297.362 – SP (2011/0294875-7), merece especial atenção do setor de seguros pelo beneficio que propicia às sociedades seguradoras que operam o seguro de transporte marítimo, não só por reconhecer a inexistência de relação de consumo e consequente inaplicabilidade do CDC, posto que o serviço de transporte de mercadorias e produtos e seus correspondentes seguros encerram relação insumerista, como também, e principalmente, por fixar o termo inicial do prazo prescricional ânuo nas ações de regresso das sociedades seguradoras sub-rogadas a partir da indenização dos danos à carga transportada. Senão, vejamos.

 

“RECURSO ESPECIAL Nº 1.297.362 – SP (2011/0294875-7)

RELATOR: MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA

RECORRENTE: HAMBURG SUDAMERKANISCHE DAMPFSCHIFFAHRTS

RECORRIDO: UNIBANCO AIG SEGUROS S/A

 

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. RECURSO. NÃO CABIMENTO. TRANSPORTE MARÍTIMO DE MERCADORIA. PERDA TOTAL DO BEM SEGURADO. CULPA DO TRANSPORTADOR. AÇÃO DE REGRESSO. SEGURADORA. PRAZO PRESCRICIONAL ANUAL. SÚMULA Nº 151/STF. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. TERMO INICIAL. PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO.

  1. Apresenta-se desprovido de conteúdo decisório e, assim, insusceptível de causar gravame às partes, o ato que, em juízo de retratação, reconsidera anterior pronunciamento e determina inclusão do feito em pauta, não autorizando, por conseguinte, a interposição de nenhum recurso.
  2. Discute-se nos autos, em essência, o termo inicial do prazo prescricional para que a seguradora, em ação regressiva, pleiteie o ressarcimento do valor pago ao segurado por danos causados à mercadoria no decorrer do transporte marítimo.
  3. Ao efetuar o pagamento da indenização ao segurado em razão de danos causados por terceiros, a seguradora sub-roga-se nos direitos daquele, podendo, dentro do prazo prescricional aplicável à relação jurídica originária, buscar o ressarcimento do que despendeu, nos mesmos termos e limites que assistiam ao segurado.
  4. No caso de não se averiguar a relação de consumo, observa-se o prazo prescricional de 1 (um) ano para propositura de ação de segurador sub-rogado requerer do transportador marítimo o ressarcimento por danos causados à carga, nos termos da Súmula nº 151/STF e do art. 8º, caput, do Decreto-Lei nº 116/1967.
  5. O termo inicial do prazo prescricional para seguradora sub-rogada propor ação de regresso é a data do pagamento integral da indenização ao segurado. Precedentes.
  6. Embargos de declaração de fls. 731/736 não conhecidos. Recurso especial conhecido e não provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, decide a Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencido quanto à fundamentação o Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze (Presidente). Participaram do julgamento os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.

Brasília (DF), 10 de novembro de 2016(Data do Julgamento)

Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA – Relator.”

 

Importante assinalar, de pronto, que uma vez fixada a data do pagamento da indenização como termo inicial do prazo de prescrição para a seguradora ajuizar ação de regresso contra o transportador, visando se ressarcir do valor pago ao segurado por danos à mercadoria transportada em face da responsabilidade presumida do transportador pelo jus resceptum, este que tem a obrigação de conduzir incólume os bens transportados ao seu destino, conservando-os e entregando-os no lugar convencionado e nas condições em que os recebeu, conforme declarou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, enorme é o benefício à sociedade seguradora na medida em que se desonera dos desgastantes procedimentos judiciais para a interrupção do prazo de prescrição extintiva, no caso dos direitos do segurador sub-rogado, que, consoante o artigo 202 do Código Civil, somente poderia ocorrer uma única vez (I – por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; II – por protesto, nas condições do inciso antecedente; III – por protesto cambial; IV – pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; V – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; VI – por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor).

Sabido mais que na grande maioria das vezes o tempo de conclusão da complexa regulação dos sinistros ocorridos nos transportes marítimos, costuma superar em muito esse prazo ânuo de prescrição, pressionando, por isso mesmo, o processo regulatório e comprometendo a sua perfectibilidade, muita vez a dano do segurador e de seu direito sub-rogatório, por conseguinte da mutualidade, não sem lembrar de que o direito do segurador de recuperar a indenização paga ao segurado tem importante reflexo no cálculo atuarial do prêmio, na precificação do seguro, além de sua outra importante função de não deixar o causador do dano impune, alforriado de sua obrigação de indenizar. Com a nova orientação do STJ, medida pela decisão em comento, o direito de regresso do segurador poderá fluir livre de tal pressão e liberto de tais amarras.

Realmente, a seguradora tem prazo prescricional de um ano para propor a ação de regresso contra o transportador marítimo pelos danos causados à carga, segundo a Súmula 151 do STF (Prescreve em um ano a ação do segurador sub-rogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio) e o artigo 8º do Decreto-Lei nº 116/67. Sabido mais que consoante a Súmula 154 do mesmo STF Simples vistoria não interrompe a prescrição”. E já que estamos invocando a jurisprudência sumulada da mais alta Corte de Justiça do País, não poderia passar despercebida a sua Súmula nº 188, segundo a qual, literis,O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro”.

Tal entendimento dos ministros do STJ foi manifestado no julgamento de processo que envolve o seguro contratado por uma fabricante brasileira de aeronaves para cobrir os riscos do transporte de um contêiner contendo 45 partes e peças para avião e filmes adesivos.

A remessa foi acondicionada em um contêiner refrigerado no porto de Miami, nos Estados Unidos, para ser transportado até o porto de Santos (SP), tendo a viagem transcorrido normalmente sem maiores sobressaltos. Após o desembarque, no entanto, constatou-se que as mercadorias encontravam-se avariadas, porque não foi observada a temperatura ideal durante o transporte.

A seguradora ajuizou ação de regresso contra a agenciadora de cargas e a empresa transportadora. Ambas foram condenadas a pagar a quantia de R$ 162.004,29 pela 10ª Vara Cível da comarca de Santos. A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Inconformadas, as empresas demandadas recorreram ao STJ, cabendo a relatoria do recurso ao Ínclito ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. As empresas alegaram, dentre o mais, que o termo inicial do prazo de prescrição para o ajuizamento de uma ação de regresso é a data do término da descarga do navio transportador, fiadas no entendimento baseado no que literalmente dispõe o artigo 8º do DL nº 116/67: “Prescrevem ao fim de um ano, contado da data do término da descarga do navio transportador, as ações por extravio de carga, bem como as ações por falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias ou danos à carga”. (grifo intencional)

No voto, o relator desacolheu os argumentos das recorrentes e manteve a decisão da Justiça paulista, reconhecendo a data do pagamento da indenização como marco inaugural do prazo prescricional da ação de regresso, mesmo a despeito do disposto no citado Decreto-Lei.

Saliente-se que, pela nova orientação emanada do Código Civil de 2002, que com seu sistema de cláusulas abertas permite ao julgador adotar a orientação que melhor se adeque à evolução do direito, não pode passar despercebido que o fato gerador da pretensão se dá com a violação do direito (artigo 189 do CC) e só daí de regra devendo começar a fluir o prazo de prescrição para o segurador sub-rogado, sabido que o simples término da descarga do navio, previsto no supratranscrito art. 8º do vetusto DL 116/67, de modo algum pode, por si só, determinar uma violação de direito para o start do prazo prescricional segundo a regra geral fincada no Código Civil, razão pela qual deve de qualquer sorte restar superada a orientação contida no referido dispositivo do DL de 1967, ao menos para fins de determinação do início do prazo prescricional nas ações de ressarcimento do segurador sub-rogado.

Debateu-se no julgamento, quanto ao termo inicial do prazo prescricional, a tese de que “na presente hipótese deveria ser observada a data da vistoria, oportunidade em que foi definida a exata extensão dos danos causados pelo inadequado acondicionamento da mercadoria transportada”.

 

Todavia, asseverou-se, no bojo do decisum, que “muito embora a vistoria seja relevante no que se refere à constatação dos efetivos danos causados, não pode ser entendido como o termo inicial do prazo prescricional da ação regressiva a ser proposta pela seguradora”.

 

De outra parte, dentre as razões de decidir, salientou o ilustre relator que “menos plausível se mostra a tese veiculada nas razões recursais, perfilhada pelo acórdão apontado como paradigma, qual seja, a de que o prazo prescricional deve ser contado do desembarque da mercadoria no porto” e, lembrando CARLOS MAXIMILIANO, o papa da hermenêutica, pondera que “o intérprete não deve se apegar simplesmente à letra da lei, mas deve perseguir o espírito da norma a partir de outras, inserindo-a no sistema como um todo, para extrair, assim, o seu sentido mais harmônico e coerente com o ordenamento jurídico. Além disso, nunca se pode perder de vista a finalidade da lei, ou seja, a razão pela qual foi elaborada e o bem jurídico que visa proteger”.

 

Em verdadeiro “cheque mate”, o ilustre relator fecha o seu raciocínio, não sem invocar precedentes da Corte, para concluir que “a sub-rogação não deve ser interpretada na extensão dimensionada pela recorrente, de modo a fazer com que, por força da transferência legal dos direitos e das ações do credor ao sub-rogado, imponha-se a observância, inclusive, do termo inicial do prazo prescricional previsto para a relação jurídica originária”. E pontifica a decisão com o seguinte argumento: “Com efeito, a sub-rogação se concretiza com o pagamento da indenização securitária. Tão somente a partir desse momento pode-se atribuir ao segurador o direito de propor ação regressiva contra o autor do dano causado ao seu segurado”.

 

Por essa razão, outro não poderia ser o início do prazo prescricional para o segurador ajuizar sua ação regressiva, se antes disso ele ainda não estaria autorizado a fazê-lo, sob pena de ver sua pretensão liminarmente julgada extinta.

 

Do contrário, diante de uma única oportunidade que o segurador dispõe para interromper a prescrição consoante o citado artigo 202 do Código Civil e da complexidade da regulação dos sinistros de transporte internacional, que costuma durar tempo maior que um ano, seria o mesmo que reconhecer a extinção sumária de um direito substantivo, ao se negar a pretensão do segurador em casos tais diante da impossibilidade de exercê-lo apesar de seu esforço, antípoda da inércia, máxime em relação aos sinistros relacionados a armazéns alfandegados, cuja prescrição é de apenas três meses.

 

Inegável que o instituto da prescrição está presente no direito e na legislação de todos os povos, desde os primeiros tempos de Roma, como nos informa CÂMARA LEAL, sendo inegável a sua transcendente importância, notadamente para a instituição do seguro. Realmente, a inércia é fenômeno subjetivo e muitas vezes voluntário, enquanto o tempo é fenômeno objetivo, porém ambos, como fenômenos extintivos, ou aquisitivos, de direitos, ganham o caráter de fatos jurídicos que, na definição de SAVIGNY, mostrada por CÂMARA LEAL (“Da Prescrição e Decadência”, Forense, pág. 22), são os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem e se extinguem, neste último caso por inércia.

 

Cabe recordar que o instituto da prescrição deve incidir em todos os campos do direito, pois a prescrição é o modo pelo qual um direito se extingue em face da inércia de seu titular, durante certo tempo, como de há muito já ensinava ORLANDO GOMES, em sua “Introdução ao Direito Civil”, Forense, Rio, ou, consoante NELSON NERY JÚNIOR, uma causa extintiva da pretensão de direito material pelo seu não exercício no prazo estipulado em lei, conforme escólios que se extraem de seu “Código Civil Anotado”, RT, SP. Jamais, portanto, quando o credor quer exercê-lo mas não tenha como fazê-lo.

 

Não é o que ocorre no caso examinado, pois ali jamais poderia se atribuir ao segurador a pecha da inercia a justificar a perda do prazo para ajuizar sua ação de regresso, pois o que se dá, ao contrário, é justamente a impossibilidade do exercício tempestivo desse direito se o marco inaugural da prescrição ficasse adstrito à data do término da descarga do navio e não à data do pagamento da indenização. É que o segurador, por mais que envide os seus esforços para concluir a regulação do sinistro, que depende de variáveis fora de seu controle, acabaria, pela exiguidade dos prazos extintivos versus a natural complexidade da regulação e diante da possibilidade de interromper a prescrição por uma única vez apenas, acabaria sucumbindo no seu direito de regresso, não por inércia, mas diante de uma impossibilidade a que não deveria estar obrigado, valendo aqui o aforisma “ad impossibilia nemo tenetur”, ou, traduzindo, ninguém é obrigado ao impossível.

 

 

Realmente, onde não há inércia, não pode se consumar a prescrição, como bem acentua SAN TIAGO DANTAS, com densa simplicidade: “Esta influência do tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais…” (Programa de Direito Civil, Parte Geral, 1977, p. 397/8).

 

Cabe lembrar que, consoante a lei (Código Civil art.786: “Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”. Código Comercial art. 728: “Pagando o segurador um dano acontecido à coisa segura, ficará sub-rogado em todos os direitos e ações que ao segurado competirem contra terceiro, e o segurado não pode praticar ato algum em prejuízo do direito adquirido dos seguradores) e a jurisprudência dominante nos tribunais superiores, inclusive no STF (a já citada Súmula 188), ao efetuar o pagamento da indenização ao segurado em razão de danos causados por terceiros, a seguradora sub-roga-se nos direitos daquele, podendo, dentro do prazo prescricional aplicável à relação jurídica originária, buscar o ressarcimento do que despendeu, nos mesmos termos e limites que assistiam ao segurado salvo quanto ao termo inicial da prescrição, conforme assinalou o Ministro relator em seu voto condutor, acompanhado pela unanimidade dos demais ministros da Terceira Turma, especializada no desate de questões relacionadas ao direito privado.

 

Este o resumo de meus comentários.

 

REFERÊNCIAS:

Câmara Leal (Da Prescrição e Decadência).

Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito).

Nelson Nery (Código Civil Anotado).

Orlando Gomes (Introdução ao Direito Civil).

Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator no REsp comentado).

San Tiago Dantas (Programa de Direito Civil).

Savigny (Apud Câmara Leal).

Súmulas do STF (151, 154 e 188).

 

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