Breve comentário sobre a súmula nº 575 do STJ. Condução de veículo sem habilitação ou embriagado

RICARDO BECHARA SANTOS

 

A Súmula em referência trata de crime de trânsito, de interesse, portanto, para o seguro de automóvel dentre outros. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou no dia 22/06/16, dentre outras a sóbria Súmula 575, com base em propostas apresentadas pelos ministros Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz. No enunciado aprovado, ficou definido que “constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo”.

 

A Corte, assim, caracterizou como crime de perigo o simples fato de permitir, confiar ou entregar veículo a pessoa não habilitada, decisão que reforça, sobremaneira, a excludente prevista nos contratos de seguro de automóvel, cuja cláusula costuma hoje ser redigida de modo a simplesmente excluir da cobertura o fato de o veículo estar sendo conduzido por pessoa inabilitada, embriagada ou drogada no momento do sinistro, reforçando também a tese do agravamento intencional do risco conforme o artigo 768 do CC e a presunção do nexo causal.

 

Pondero, portanto, que o verbo “permitir”, dentre outros conjugados no verbete da Súmula, alcança a hipótese de veículos em “furto de uso”, conduzidos por pessoas inabilitadas, embriagadas ou drogadas que residem ou frequentam o círculo familiar do segurado, com facilitado acesso às chaves do veículo, é dizer, mesmo que não haja a “entrega” do mesmo, bastando que ocorra alguma forma de permissão, mormente em relação a filhos menores do segurado, como é comum ocorrer, até porque os pais  respondem objetivamente pelos atos dos mesmos, consoante artigos 932 e 933 do CC.

 

Posto assim resta claro, à luz da Súmula 575 da mais alta Corte de Justiça Infraconstitucional do País, o STJ, que entregar seu veículo a pessoa não habilitada, embriagada ou drogada é CRIME, independente de acidente ou perigo de dano, é dizer, com dispensa do nexo de causalidade! Isso porque, a entrega de direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, embriagada ou drogada é crime de perigo abstrato. Melhor dizendo, é de perigo ABSTRATO o crime previsto no art. 310 do CTB. Assim, não é exigível, para o aperfeiçoamento ou consumação do crime, a ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na conduta de quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou ainda a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, por embriaguez ou uso de droga, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.

 

O citado art. 310 estabelece um dever, mais que isso uma obrigação, de não permitir, confiar ou entregar a direção de um automóvel a determinadas pessoas, indicadas no tipo penal, com ou sem habilitação, com problemas psíquicos ou físicos, embriagadas ou drogadas, ante o perigo geral que encerra a condução de um veículo nessas condições.

 

Para melhor visualização, vale transcrever, por suas conexidades, não só o artigo 310 do CTB, como também os seus artigos 309 e 306, os quais não deixam margem a dúvida quanto à gravidade da infração penal e suas consequências:

 

“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

 

Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”

 

Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

Nesse sentido: (1) STJ. 3ª Seção. REsp 1.485.830-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. Para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 11/3/2015 (recurso repetitivo) (Info 563); (2) STJ. 6ª Turma. REsp 1.468.099-MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 19/3/2015 (Info 559).

Ora bem, se o simples fato de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa inabilitada, a ponto de caracterizar o agravamento intencional do risco, que nos termos do artigo 768 do CC determina a perda da garantia, ou seja, do próprio seguro e não apenas da indenização, por mais forte razão ainda se o proprietário segurado não for habilitado ou estiver embriagado ou drogado. Nessas condições, se o veículo estiver sendo conduzido por pessoa inabilitada, embriagada ou drogada, a cláusula excludente de sinistros assim ocorridos ganha ainda mais robustez nos contratos de seguro de automóvel.

É que, extrapolar a delimitação objetiva ou subjetiva do risco, traduz, por si só, o conceito de agravamento. Agravamento do risco e agravamento do sinistro (neste último caso, na embriaguez, por exemplo), que são tratados em dispositivos diferentes do CC: o primeiro nos artigos 768 e 769; o segundo nos artigos 771 e 779. Realmente, o segurado, além de agravar o risco ao conduzir o veículo embriagado, também estará agravando o sinistro porque, neste estado, de confusão mental, é capaz de potencializar os danos de uma colisão e de não reunir as condições para salvar ou proteger o bem sinistrado. Risco vale lembrar, é a possibilidade do evento futuro, incerto, temido e capaz de alterar, para pior, situação pessoal (seguros de pessoa) ou material (seguros de dano). Sinistro é a materialização da expectativa do evento, que pode ou não ocorrer, daí a natureza aleatória do contrato de seguro. Em resumo, risco é o sinistro em potência; enquanto sinistro é o risco em ato. Tanto a embriaguez quanto a condução de veículo sem habilitação é de regra intencional (dolosa), ou voluntária, caracterizando, assim, a perda da garantia nos termos do artigo 768 do CC.

Aquele que se sujeita de forma voluntária à perda ou redução de sua capacidade de discernimento, já sinalizou, potencializou, a intencionalidade de produzir danos, de criar todos os riscos, exatamente porque já se encontra em situação que não mais lhe será possível administrá-los. Não só o ato doloso, pois, mas também o culposo traduz a intencionalidade referida no citado artigo 768, sendo indiferente que o segurado embriagado ou legalmente inabilitado não pretenda causar dano.

A propósito, os ministros da 2ª T. do STF, em recentes e repetidos julgamentos (ex: HC 127774, em dezembro de 2015), também reforçam a legitimidade da excludente do dolo eventual, culpa grave, ou culpa consciente, nos seguros de automóvel e RCF. Isto porque dirigir embriagado ou drogado (actio liberae in causa) caracteriza dolo eventual ou culpa grave.

A propósito, escreveu o eminente Desembargador SYLVIO CAPANEMA, em artigo sobre embriaguez na revista jurídica da CNSG – no contexto em que a culpa simples do segurado, por ele confessada, não exonera a seguradora nos seguros de RCF – que “(…) Há situações, entretanto, em que a culpa do autor do dano é de tal maneira grave (culpa grave) que se torna irmã siamesa do dolo, com ele se confundindo. É o que a doutrina penal chama de dolo eventual ou culpa consciente. Daí a razão de estabelecer o artigo 768 do Código Civil, lembra o Desembargador, que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.

Nunca é demasiado reiterar a gravidade do crime, que põe em perigo a incolumidade das pessoas e das coisas. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência é crime, consoante o contido no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, da mesma forma a condução de veículo sem a devida habilitação (artigos 309 e 310 do CTB), referendado pela Súmula 575 em comento.

A embriaguez por si só, independentemente de o motorista oferecer risco efetivo para os usuários da via pública, é passível de severa punição, inclusive com a perda da garantia do seguro em face do agravamento intencional do risco caracterizando dolo e culpa grave (CC, artigo 768).

Esse entendimento foi reafirmado pela sexta turma do STJ (REsp n° 1582413). Tanto para o STJ quanto para o STF o crime de embriaguez ao volante é um crime de perigo abstrato, ou seja, não se faz necessário demonstrar o efetivo risco de dano.

Segundo o relator do caso (Ministro Rogério Schietti Cruz) “a simples condução de automóvel, em via pública, com a concentração de álcool igual ou superior a 6 dg por litro de sangue, aferida por meio de etilômetro, configura o delito previsto no artigo 306 do CTB”.

Agora também, com a Súmula 375, o fato de conduzir, permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada.

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