Breves considerações sobre liquidação de sinistros com cobertura de morte, a propósito de acidentes como o da aeronave da Air France, no caso de não identificação de cadáver

RICARDO BECHARA SANTOS

 

A propósito do trágico e lamentável acidente recém ocorrido com aeronave da Air France na rota Rio – Paris, com o vôo 447, do qual se presume tenham falecido todas as 248 pessoas que estavam a bordo, sem que fosse possível, até o momento, pelas características da tragédia, se resgatar nada além do pouco mais de dez por cento dos corpos das vítimas, nem todos ainda identificados, permitimo-nos aqui comentar alguns aspectos jurídicos reservados à liquidação de sinistros relacionados à cobertura por morte, inclusive daqueles que, independentemente dos seguros da aeronave, possuíam seguros de vida e ou de acidentes pessoais, especialmente em seguradoras brasileiras.

Tais seguros privados de pessoa, que por óbvio não se confunde com seguridade social, têm por objeto cobrir a morte real mediante a exibição da certidão de registro de óbito, com ou sem cadáver, sendo que, nesta última hipótese, será preciso uma justificativa judicial se ocorrida a morte em acidente no qual se possa demonstrar a presença da vítima, por isso não iremos aqui tratar da morte presumida por ausência, de interesse do direito sucessório que, para ser declarada, demandaria muito tempo diante das formalidades que a lei determina para abertura da sucessão provisória até a declaração da morte presumida do ausente, esta que, na verdade, por ilação da lei, se trata de morte fictícia, haja vista que o próprio legislador admite, expressamente, o reaparecimento do ausente, mesmo após a declaração da morte presumida, justo porque se trata de uma ficção legal, com interesses voltados mais ao direito sucessório, e, não, ao seguro privado, para que os bens do ausente não pereçam, à deriva.

Mas com o mesmo interesse do direito sucessório, a lei é expressa quanto ao benefício da previdência social, eis que, para requerer a pensão paga pelo INSS nos casos de desaparecimento do segurado em catástrofe, acidente ou desastre, os dependentes do desaparecido não precisam apresentar, de imediato, a declaração da morte presumida. A Previdência Social aceita como prova do desaparecimento o boletim de ocorrência da Polícia – documento confirmando a presença do segurado no local do desastre -, noticiário dos meios de comunicação, entre outros, mas, enquanto não finalizar o processo que decretará a morte presumida, a cada seis meses os beneficiários terão de fornecer posição atualizada do processo à autoridade competente.

Ainda com referência ao direito previdenciário, para efeito de pensão previdenciária, o STJ já se manifestou no sentido de que a concessão do benefício por morte presumida começa a contar desde a data do desaparecimento do segurado. Assim, no caso do acidente com o vôo 447 da Air France, por exemplo, a data da morte, em tese, deverá ser o dia 31 de maio deste ano, quando houve o último contato da aeronave com o controle de vôo.

Para esse fim, o artigo 78 da Lei n. 8.213/91, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social, determina que, “por morte presumida do segurado declarada pela autoridade judicial competente, depois de seis meses de ausência, será concedida pensão provisória”. Mas seu parágrafo 1º prevê que, mediante prova do desaparecimento do segurado em conseqüência de acidente, desastre ou catástrofe, seus dependentes farão jus à pensão provisória independentemente da declaração e do prazo deste artigo.

Fechado esse parêntesis, recordemos que a existência da pessoa natural termina com a morte, presumindo-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.

A morte real justificável (caso da grande maioria dos citados passageiros e tripulantes da aeronave da Air France, da qual se excluem as vítimas cujos corpos foram identificados, cujos óbitos poderiam ser lavrados mediante declaração do médico legista, independente de justificativa judicial), que mais de perto interessa a este estudo, vem tratada no art. 7º do Código Civil, e pode ser declarada, sem decretação de ausência: a uma, se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; a duas, se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, que não for encontrado até dois anos após o término da guerra; a três (diferentemente das duas situações precedentes, em que a declaração da morte presumida somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações e a sentença fixar a data provável do falecimento), tendo em vista igualmente a falta de cadáver, que não se confunde com as hipóteses de ausência tratadas no art. 22 e referida no art. 6º do CC, que, como dito, são situações em regra não geradoras de pagamento nos seguros de pessoa, considerando a inexistência de certidão de óbito que ateste uma morte real, ainda que justificada, e porque de interesse mais do direito sucessório, onde se abre primeiramente uma sucessão provisória para que os bens do ausente entrem logo na administração dos herdeiros, vindo para esse efeito a se declarar a morte presumida muito tempo depois, não sem lembrar que foram incorporadas ao Código Civil de 2002 situações já previstas na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).

Realmente, a morte real se desdobra em duas circunstâncias: com e sem a presença do cadáver. Com o cadáver, certamente dificuldades não terão os interessados em obter a certidão de óbito, com a qual poderão receber o capital segurado, sem embargo. Enquanto que, sem o cadáver, algumas providências haverão de tomar os interessados, indo a juízo para justificar a morte e obter do magistrado, com base em preceitos da Lei de Registros Públicos e do Próprio Código de Processo Civil, e já agora em face do art. 7º do novo Código Civil, a autorização para que o oficial do cartório de Registros Civil possa lavrar o óbito, tão necessário aos beneficiários no recebimento do capital segurado. É o caso, por exemplo, justamente de um segurado passageiro de uma aeronave que, comprovadamente constou da sua lista de vôo e nela também comprovadamente haja embarcado, mas falecera em função de catástrofe que não fora possível localizar ou identificar o corpo.  Diante dessas evidências, os beneficiários não terão dificuldades em justificar a morte e obter a respectiva certidão para o seguro ser pago.

Cumpre acrescentar, cum granum salis, que com a morte real também termina a personalidade jurídica, vindo à baila o aforismo mors omnia solvit, segundo o qual a morte tudo resolve. Imperioso, todavia, fazer prova do momento da morte, visando os efeitos a ela inerentes, dentre os muitos, os da transmissão da herança e os do recebimento de seguro.

Como já visto, a regra é a de que a morte se prova com a certidão extraída do assento de óbito. Em sua falta, recorre-se aos meios indiretos de prova, que de modo algum se confunde com o instituto da ausência, em que existe apenas a certeza do desaparecimento, sem que ocorra presunção de morte. Por isso o artigo 88 da já citada Lei dos Registros Públicos permite justificação judicial de morte “para assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame“.

Como bem assinala SILVIO DE SALVO VENOSA, num de seus inúmeros escritos sobre o Código Civil, “não temos a denominada morte civil, embora haja resquício dela, como, por exemplo, no artigo 1.599 do Código Civil de 1916 (novo, artigo 1816). Por esse dispositivo, os excluídos da herança por indignidade são considerados como se mortos fossem: seus descendentes herdam normalmente. Nas legislações antigas, a morte civil atingia, como pena acessória, os delinqüentes condenados por determinados crimes graves. Eram reputados como civilmente mortos. Como conseqüência, podia ser aberta a sucessão do condenado como se morto fosse; perdia ele os direitos civis e políticos e dissolvia-se seu vínculo matrimonial. O direito moderno repudia unanimemente esse tipo de pena, embora permaneçam traços como os apontados, mais como uma solução técnica do que como pena.”

Tudo isso em que pese seguro não seja herança para todos os efeitos de direito, nos exatos termos do art. 794 do Código Civil.

Ao contrário da morte real, com ou sem cadáver, o instituto da morte presumida por ausência, criado para os casos de sucessão provisória e definitiva, não importa em extinção da personalidade, pois neste caso é permitida a abertura da sucessão provisória ou definitiva do desaparecido, para proteção de seu patrimônio, vale sempre repetir.

Ainda com as preleções do ilustre Civilista SILVIO VENOSA, “devemos entender de forma clara as situações de desaparecimento da pessoa e suas conseqüências jurídicas. A morte de uma pessoa pode ser incerta quando não houver notícia de seu paradeiro e houver motivo para acreditar que tenha falecido. Por outro lado, mesmo que haja certeza da morte, pode haver dúvida sobre o momento do passamento, a data da morte, a qual gera importantes conseqüências jurídicas, mormente no campo sucessório (por conseguinte, também no securitário). A data da morte deve ser fixada na sentença. Não se apontam presunções para o juiz estabelecer essa data como ocorre no direito comparado: o critério caberá à prudente decisão do magistrado, cujo cuidado deve ser extremo.” O que consta do parêntesis é arranjo nosso.

Noutro giro, também é provável que a liquidação dos sinistros por morte daqueles passageiros que hajam deixado seguro de pessoa, venha a se deparar com questões relacionadas à COMORIÊNCIA, tratada no art. 8º do Código, bastando que tenham falecido, no mesmo acidente, segurado e beneficiário, que serão considerados simultaneamente mortos.

Nesse tópico, o Código de 2002 permaneceu fiel à corrente doutrinária do Código revogado, que adotou a teoria da presunção de simultaneidade das mortes acontecidas num mesmo evento sem que seja possível verificar qual das pessoas faleceu primeiro, caso em que, em relação ao direito sucessório e também aos seguros que demandem pagamento por morte, como, por exemplo, segurado e beneficiário falecerem em comoriência, será como que o beneficiário comoriente não tivesse adquirido o direito ao capital, como se fora premoriente, ou beneficiário não designado.

O tema está abordado, com mais detalhes, como também o da morte real justificada e da morte presumida por ausência, em nossos livros “Direito de Seguro no Cotidiano” e “Direito do Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria”, ambos Editora Forense Rio.

Seriam estas, em apertada síntese, algumas considerações que julgamos de interesse da liquidação de sinistros com cobertura de morte, nos casos, como o do acidente com o avião da Air France, em que não é possível resgatar ou identificar o cadáver.

Sub censura dos doutos.

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