Brevíssimas considerações sobre a prescrição, notadamente no seguro de Responsabilidade Civil

RICARDO BECHARA SANTOS

 

 

Palavras chave: seguro de responsabilidade civil; prazo de prescrição e seu início; fato gerador da pretensão; citação da ação do terceiro prejudicado; comunicação do segurado ao segurador; litisdenunciação; violação do direito; reembolso; prescritibilidade; imprescritibilidade; suspensão e interrupção da prescrição; segurança jurídica; livre acesso ao judiciário; Súmulas do STJ; interpretação da lei.

 

Ao ensejo de consulta a mim dirigida sobre tema específico versando o termo inicial da prescrição em seguro de responsabilidade civil, pela importância do tema, me pareceu oportuno transformar as considerações ali postas em artigo e, para melhor visualização e compreensão, iniciar com o resumo da dúvida expressada pelo Consulente, nos seguintes termos:

 

“Embora o art. 206, §1º, II, letra a do Código Civil estabeleça como termo inicial a “data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado”, em muitos casos a denunciação é incabível/indeferida e até o trânsito em julgado da ação proposta pelo terceiro o prazo de um ano a partir da citação já transcorreu (e muito). A princípio, não faria sentido que o segurado ajuizasse uma ação de cobrança contra a seguradora antes de ter sua responsabilidade civil reconhecida em definitivo (condenação transitada em julgado) ou, melhor, antes do pagamento da indenização pelo segurado ao terceiro prejudicado. Isto porque, ao não ter feito qualquer desembolso o segurado não teria (ainda) pretensão de reembolso contra a seguradora. E sem pretensão, não há fluência de prescrição (princípio da actio nata). Em suma, como interpretar o dispositivo legal num cenário em que a denunciação é incabível/indeferida? Indo mais além, se a única forma de exercer a pretensão contra o segurador dentro do prazo de um ano a contar da citação na ação ajuizada pelo terceiro prejudicado seria a denunciação da lide, então na realidade o prazo não seria de um ano e sim o prazo previsto no CPC para apresentar a denunciação da lide?”

 

Feita assim a consulta, me permitiria sobre o tema ensaiar o seguinte entendimento, ainda que em síntese apertada, cabendo de pronto, ponderar que o segurado, para não perder o direito ao reembolso coberto pelo seguro de responsabilidade civil, deve avisar o segurador pelo menos em duas oportunidades, não só por ocasião do sinistro tão logo dele tome conhecimento (artigo 771 do CC), como também tão logo seja citado para responder a demanda do terceiro (artigo 206, § 1º, II, letra a, do CC).

 

Não sem lembrar, do disposto no artigo 189 do Código, segundo o qual a pretensão do titular do direito, para fins do dies a quo da prescrição, nasceria da violação do seu direito (no caso do direito ao reembolso), a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206 do mesmo Código.

 

Assim é que, a princípio, não seria possível cogitar de prescrição sem que o segurado tivesse adquirido a pretensão contra o segurador, ou seja, antes que o direito ao reembolso, no caso, se tornasse exigível e, por conseguinte, antes que tal direito pudesse ser violado pelo inadimplemento. Todavia, para o seguro de responsabilidade civil especificamente, o legislador deu tratamento próprio e claro para o termo inicial da prescrição ânua do segurado contra o segurador, in litteris: “para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador.” (CC art. 206, § 1º item II, letra a).

 

Realmente, pelo novo conceito legal de prescrição trazido pelo Código Civil de 2002, conjugado à ideia de extinção não da ação, mas da pretensão (CC art. 189), criou-se, por conseguinte, novo critério do termo inicial do prazo prescricional, fixado não mais do fato autorizador da ação, mas do fato gerador da pretensão, a princípio, da violação do direito do titular da pretensão. É dizer, para alguns, da negativa ao pedido de indenização ou capital segurado nos seguros que não seja o de responsabilidade civil, por se considerar que o sinistro a princípio não violaria direitos do segurado, posto que fato aleatório não praticado pelo prescribente, no caso o segurador. Para outros, da ciência do sinistro este como fato gerador da pretensão, pois o artigo 189 do Código, que apenas estabelece regra geral (que não exclui as regras específicas, válida a máxima de que toda regra tem exceção) não diz de que forma e por quem o direito do segurado é violado, e o sinistro pode perfeitamente representar uma forma de violação de direitos, seja pelo próprio segurado (seguro de responsabilidade civil) ou por terceiros, podendo perfeitamente dar início, de sua ciência, ao prazo prescricional contra o segurador, sendo este o entendimento que não nos parece destituído da melhor lógica, eis que, do contrário, estar-se-ia admitindo a imprescritibilidade, que seria o mesmo que negar a própria prescrição e também as regras de hermenêutica, pois o segurador ficaria mercê de um prazo infinito de prescrição, afetando inclusive as suas reservas e provisões técnicas a dano da mutualidade, na medida em que esse prazo não pudesse fluir enquanto não houvesse uma reclamação do sinistro, ao talante do segurado, vez que, quanto mais demorada seja a reclamação mais vão se apagando os vestígios para uma boa regulação, favorecendo, assim, ao segurado emulativo, de má fé, daí a razão de ainda vigorar a Súmula 229 do STJ, da qual falaremos passos mais adiante, e também de o legislador, no artigo 771 do CC, haver imposto ao segurado a obrigação de avisar o sinistro tão logo saiba, e não tão logo queira, sob pena de perder o direito à indenização.

 

E tudo quanto se cumplicia com a imprescritibilidade ou que de alguma forma negue a prescrição, não se coaduna com o bom direito, muito menos com o direito constitucional, valendo aqui relembrar a lição de FÁBIO MEDINA OSÓRIO: “Sem embargo, a justificação constitucional para o instituto da prescrição é, sem dúvida, o princípio da segurança jurídica. Ninguém pode ficar à mercê de ações judiciais por tempos e prazos indefinidos ou, o que é pior, perpétuos. Trata-se de uma garantia individual, porém com intensa transcendência social. As relações sociais necessitam de segurança e o direito busca, em um dos seus fins, assegurar a estabilidade na vida e relações…” (em “Direito Administrativo Sancionador”, RT, SP).

Pode-se daí afirmar, sem rebuços de dúvidas, já que em qualquer dos campos do direito a prescrição tem como fundamento lógico o principio geral e constitucional da segurança das relações jurídicas, que é ela uma regra absoluta, enquanto a imprescritibilidade situação excepcionalíssima, valendo a propósito conferir com os magistérios, respectivamente, de PONTES DE MIRANDA e CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: (I) “A prescrição, em princípio, atinge a todas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional” (Tratado de Direito Privado, Vol. 6, §§ 666, p. 127). (II) “A prescritibilidade é a regra, a imprescritibilidade a exceção” (“Instituições de Direito Civil”, Vol. 1, p.147).

O instituto da prescrição está presente no direito e na legislação de todos os povos, desde os primeiros tempos de Roma, como nos informa CÂMARA LEAL (“Da Prescrição e Decadência”, Forense-Rio), sendo inegável a sua transcendente importância, notadamente para a instituição do seguro que, por seus sistemas próprios de constituição de reservas e provisões técnicas, necessita contar, sobremaneira, com certa limitação temporal para as demandas e pretensões dos segurados, de modo a que a mutualidade gerida pelo segurador não fique à mercê de uma infinita e dispendiosa manutenção, por isso a prescrição é, como dito e redito, instituto criado como medida de ordem pública, visando a que a estabilidade do direito, das instituições e das relações, seja assegurada, liberando as pessoas, físicas e jurídicas, de seus compromissos para que não fiquem eternizadas pelo guante, pela vergasta do tempo.

 

Com efeito, fechado o parêntesis dentro do qual se inserem os três parágrafos acima, cabe ponderar que o titular do benefício poderia, desde a ciência do sinistro, querendo, ingressar em juízo contra a seguradora independentemente de reclamá-lo administrativamente (caso em que segundo o princípio da causalidade previsto no artigo 85, § 10 do NCPC, o segurador se livraria do ônus da sucumbência por não haver dado causa à demanda, já que não lhe fora dada a oportunidade de regular o sinistro), em se considerando que o aviso de sinistro, em tese, não seria condição da ação, que uma vez intentada determinaria nos termos da lei a interrupção da prescrição. Se já podia o segurado, teoricamente, pretender em juízo a indenização fiado no principio constitucional fundamental de livre acesso ao Judiciário – embora não seja essa a melhor postura – desde a ciência do sinistro, sua pretensão já de aí começa a ficar ameaçada de extinção pela prescrição, ainda que arcando com as consequências do descumprimento do disposto no artigo 771 do CC, qual a da perda do direito a indenização se não avisar de pronto o sinistro ao segurador.

 

Em que pese o artigo 189 do CC estabelecer, como regra geral, que a violação do direito faz nascer a pretensão, que irá se extinguir pelo decurso dos respectivos prazos prescricionais, no contrato de seguro, particularmente, o fato gerador da pretensão seria a ocorrência do sinistro (salvo no seguro de RC), pois é ele que gera a indenização ou o pagamento do capital segurado, por isso da sua ciência é que há de começar, em regra, a fluir o prazo prescricional, que pode inclusive ser interrompido ou suspenso, até pelo aviso de sinistro e retomado com a formal negativa do segurador, na conformidade da ainda vigente Súmula 229 do STJ.

 

Esse novo conceito, todavia, qualquer que seja a vertente de entendimento sobre o alcance do artigo 189 do CC, de qualquer sorte não se aplicaria ao seguro de responsabilidade civil – apenas aos demais seguros, tal como disposto no artigo 206, § 1º inciso II, letra b , mesmo se indeferida ou não cabível a litisdenunciação.

 

Mas o segurado, nas hipóteses de descabimento ou indeferimento da litisdenunciação requerida, obriga-se a comunicar o fato ao segurador, para que este, querendo, ingresse no feito, digamos como assistente. Problema inexistirá se o terceiro promover a ação não só contra o segurado como também contra o segurador, estribado na Súmula 529 do STJ, segundo a qual, “no seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano.”

 

Entrementes, duas opções poderiam se vislumbrar ao segurado: uma, a interrupção da prescrição conforme procedimento previsto no NCPC (Protesto Judicial Interruptivo de Prescrição), mas que, consoante o artigo 202 do CC, só pode se dar uma única vez, insuficiente ainda para competir com o tempo médio provável de duração de um processo nas varas cíveis; duas, argumentar com o fato de que a citação válida (por extensão do artigo 240 do NCPC) interrompe a prescrição até o trânsito em julgado da ação que assegure o direito ao reembolso junto ao segurador, nascendo a pretensão do segurado se aquele negar o direito ao reembolso do valor já definido na sentença transitada em julgado.

 

Conquanto seja certo que a interrupção da prescrição, pela citação a que alude o artigo 240 do NCPC, diga respeito à pretensão do terceiro prejudicado contra o segurado causador do dano, certo também é que a pretensão do segurado contra o segurador, sendo aquele réu na ação do terceiro, é intrinsecamente dependente dessa demanda principal do terceiro, tanto que se esta inexistir inexistirá a pretensão do segurado contra o segurador por não operar a garantia do seguro de responsabilidade civil. Tão relacionadas as duas pretensões que o terceiro pode incluir o segurador no polo passivo, em litisconsórcio com o segurado, consoante a citada Súmula 529 do STJ.

 

De fato, mesmo a despeito do citado artigo 189 do CC, ainda vige a Súmula 229 do STJ (“o pedido do pagamento da indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”), embora erigida sob a égide do Código de 1916. A súmula expressa o inequívoco entendimento da Corte de que o prazo de prescrição já fluía, desde o momento em que o segurado tomou conhecimento do sinistro, portanto, desde antes da reclamação, até porque só se suspende ou interrompe prazo que já tinha curso. Daí também a importância de que o segurado esteja em dia com sua obrigação de comunicar o segurador. Se não o fizer, aí sim, sua pretensão poderá ser irremediavelmente extinta pela prescrição ao cabo de um ano.

 

Posto assim, aquela mencionada interrupção, pela citação, do artigo 240 do NCPC repercute na pretensão do segurado contra o segurador, desde que, se acaso impossível a litisdenunciação, o segurado como dito proceda às comunicações ao segurador, dentre as quais a de que está sendo citado para responder a demanda do terceiro, possibilitando ao segurador, querendo, ingressar no feito e acompanha-lo até final, ao menos como assistente. Afinal, tanto o segurado quanto o segurador têm um mesmo interesse, qual o de que a demanda do terceiro seja julgada improcedente.

 

Se o segurador negar ou contestar a pretensão do segurado no curso da demanda (e isso pode mesmo acontecer, por exemplo, se o dano que causar ao terceiro decorrer da condução do veículo segurado estando o condutor em estado de embriaguez, consoante jurisprudência recente do STJ, no julgamento do REsp nº 1441620, de relatoria da Ministra NANCY ANDRIGHI, que reconheceu a validade da cláusula excludente na garantia no RCF- Responsabilidade Civil Facultava – e por agravamento de risco consoante o artigo 768 do CC), o prazo de prescrição em tese continuará suspenso, até o trânsito em julgado da sentença que daí advier. A decisão do segurador, pois, por si só não tem o poder de paralisar a ação, só a do juiz.

 

Cumprindo o segurado a sentença, indenizando o terceiro exequente, recomeçaria a fluir daí a prescrição ânua contra o segurador pelo prazo restante, inclusive segundo a citada Súmula 229 do STJ.

 

Dependendo do teor da sentença, o próprio terceiro teria um título executivo judicial para executar direta e solidariamente o segurador, podendo entrar em cena a Súmula nº 537 do STJ se o segurador contestar o pedido. Afinal, não seria justo o segurador se aproveitar, digamos, da eventual inidoneidade econômico-financeira do segurado para responder a execução, quando existe uma sentença transitada em julgado, líquida e certa, sem mais o que se discutir. A não ser, obviamente, que a sentença seja omissa em relação ao segurador ou que não reconheça direito do segurado ao reembolso, hipótese em que o segurador poderá embargar a execução, até por não figurar no título executivo. Assim como poderá contestar a própria demanda do segurado se este cumpriu a sentença. Seja nos embargos seja na contestação, o segurador aduzirá as razões da recusa, pela não cobertura do seguro, se caso.

 

A lei, afinal, seja para essa ou aquela parte, precisa ser tocada pela interpretação, máxime diante de um Código principiológico como o é o CC de 2002, construído com base no sistema de cláusulas abertas, dando força à jurisprudência dos tribunais para solução de situações lacunosas da lei, pois já estamos vivendo, não o sistema do common law, praticado nos países de origem saxônica, mas o do civil law, mais apropriado aos países de origem latina, do direito codificado, como o nosso. Demais, assim como a partitura não esgota a música, a lei não esgota o direito.

 

Este, em sínese, o resumo de meu entendimento, sub censura dos doutos.

 

 

REFERÊNCIAS:

– Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, Vol. 1, p.147).

– Câmara Leal (Da Prescrição e Decadência”, Forense- Rio).

– Fábio Media Osório (Direito Administrativo Sancionador, RT, SP).

– Nancy Andrighi (Ministra relatora no REsp nº nº 1441620).

– Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, Vol. 6, §§ 666, p. 127).

 

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