Cláusula de depreciação no seguro incêndio – decisões judiciais no Rio Grande do Sul que a consideram leonina ou abusiva – incompreensão sobre a matéria pelos ilustres magistrados. Novo Código Civil

RICARDO BECHARA SANTOS

 

Não é leonina, permissa maxima venia, a CLÁUSULA DE DEPRECIAÇÃO no Seguro Incêndio. Só na visão, que me parece equivocada, de alguns poucos magistrados, ou seja, aquela que, à vezes amante apaixonada do Código Consumerista, ignora a lei, inclusive o próprio Código do Consumidor se este não se ajustar ao seu entendimento, para decidir segundo seus próprios critérios de justiça, como se estivessem acima do direito positivado. Esses poucos magistrados, em verdade, retornam aos tempos remotos das aequitas cerebrinas, onde o jurisdicionado ia para um julgamento sem poder contar com a certeza do direito positivo, mas apenas submetido ao humor do dia do juiz, a seus “caprichos e boas intenções”. Por isso o direito positivo, a codificação portanto, foi um grande avanço da humanidade pois serviu para domar essa perigosa liberdade dos juízes, que pelo sistema jurídico brasileiro está vinculado à lei por mais abertas que sejam as cláusulas de um Código, só devendo julgar por equidade nos casos expressamente admitidos. A magistratura alternativa foi, portanto, um retrocesso e, sobretudo, uma antinomia com o sistema positivo mesmo em regime de civil low. Ainda que diante do novo Código Civil, com seu sistema de cláusulas abertas, que amplia é verdade, mas com maior responsabilidade, os poderes dos magistrados, porém não ao ponto de poderem negar o próprio direito positivo, ao qual data venia continuam vinculados, eis que, assim não fosse, nem preciso seriam os códigos, mas um sistema de direito não escrito guiado tão somente pela sabedoria dos juízes. Afinal, os princípios da sociabilidade, eticidade e operabilidade que nortearam a concepção desse novo Código Civil Brasileiro também não autorizam os magistrados a se libertarem totalmente da lei, a ponto de poderem estar acima do bem e do mal para julgarem apenas por seus critérios pessoais de justiça.

 

A cláusula de depreciação se concilia perfeitamente com o conceito indenitário do seguro de dano, que inadmite possa o segurado especular com o seguro recebendo indenização maior que o prejuízo que experimentou com o sinistro. Ora bem, se o imóvel já se encontrava depreciado pelo uso e idade, ou até mesmo por alguma avaria pré-existente, não pode o segurado receber indenização sem essa dedução, do contrário estaria recebendo mais do que o prejuízo sofrido e estimulado a torcer para que o sinistro aconteça. Demais, o segurado, proprietário do imóvel, já se beneficia junto ao Imposto de Renda com tal depreciação. Decisões como essas que reputam abusiva a cláusula de depreciação no contrato de seguro de dano, nesse ponto, fomentam o enriquecimento ilícito e sem causa do segurado, servindo de indutor para a fraude que tanto assola a instituição do seguro, na medida em que o segurado imbuído de má fé vislumbre o recebimento de indenização maior que o efetivo prejuízo, ostentando contra os limites intransponíveis estabelecidos no art. 781 do Novo Código Civil, que realça o caráter indenitário dos seguros de dano ou de coisas, com o qual não se coaduna qualquer possibilidade de alguém poder especular com o seguro, de dano vittando e não de lucro capiendo, muito menos, e por conseguinte, especular com a possibilidade de se indenizar um bem sinistrado por valor maior do que o prejuízo experimentado e, em qualquer hipótese, por valor superior ao limite ajustado na apólice, consoante os arts. 778 e 781, que assim estabelecem, verbis:

“Art. 778.  Nos seguros de dano, a garantia prometida não pode ultrapassar o valor do interesse segurado no momento da conclusão do contrato, sob pena do disposto no art. 766, e sem prejuízo da ação penal que no caso couber”.

“Art. 781.   A indenização não pode ultrapassar o valor do interesse segurado no momento do sinistro, e, em hipótese alguma, o limite máximo da garantia fixado na apólice, salvo em caso de mora do segurador”.

 

Note-se que a “garantia prometida”, a que alude o art. 778, é a importância  segurada nas apólices, ou em mais adequada terminologia, “limite máximo de garantia”, e o interesse segurado é o objeto da cobertura, que não se confunde com o bem, com a coisa segura, como já alhures mencionamos. Tão rigoroso foi o legislador que ameaça com ação penal qualquer tentativa de se ultrapassar esses limites.

O caráter indenitário dos seguros de danos, e daí esses rigorosos limites estabelecidos pelo legislador como intransponíveis, tem, pois, o efeito didático e moralizador de não permitir que o sinistro possa interessar, como no jogo e na aposta, ao segurado.

E para completar a ideia, o art. 781 cria dois limites: o do valor do interesse segurado no momento do sinistro (valor do próprio prejuízo) e, em hipótese alguma, o valor da importância segurada fixada na contratação conforme o art. 778, salvo em caso de mora do segurador, hipótese esta última em que, se ocorrente, aplicar-se-á o art. 772, segundo o qual, “a mora do segurador em pagar o sinistro obriga à atualização monetária da indenização devida segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, sem prejuízo dos juros moratórios”.

O ponto positivo dessas decisões que tivemos a oportunidade de analisar e referidas na ementa deste trabalho – tirante o pecado que data venia cometeram ao negar eficácia à “cláusula de depreciação” – foi o do reconhecimento, justo por  magistrados supostamente voltados para desatar querelas em prol do consumidor, da não aplicação do valor da Importância Segurada – IS (fixada no contrato  como limite máximo da indenização) e sim o do valor real do prejuízo apurado, embora distorcendo esse conceito de valor real do prejuízo, na medida em que, repita-se, não consideraram  a dedução da depreciação, que aliás é cláusula apenas restritiva ao direito do consumidor, permitida pelo próprio CDC, já que expressa no contrato com toda clareza, pois o Código de Consumo veda apenas as cláusulas abusivas, que não é o caso, pois a delimitação do risco é da própria natureza do contrato de seguro, com base na qual o segurador pode dimensionar sua responsabilidade e calcular atuarialmente a taxa do prêmio devida, que levou em conta inclusive a projeção de depreciação do bem segurado.

 

É mais uma desinformação desses ilustres e poucos magistrados, diante do seguro esse ilustre desconhecido, que insistem em confundir seguro com mercadoria mais comum e corriqueira. Porque fora do domínio de seu conhecimento específico, alguns por inconsciente preconceito, acabam não buscando, talvez por falta de tempo, os fundamentos do seguro, preferindo ficar no limbo do desconhecimento para irem continuando, alguns poucos, sob essa pecha, julgando pela maneira mais cômoda de distribuir justiça mais pela bondade que pela razão. Querer aumentar a responsabilidade das seguradoras por razões exclusivamente humanitárias poderia parecer até socialmente bom, mas não é justo, e o que não é justo jamais poderá ser socialmente bom.

CONDILAC, versando sobre a vaidade do ser humano, e apontando como virtude a arte de reconhecer com humildade o erro diante dos fatos, e que mudar de ideia é mais nobre no homem do que insistir no erro por simples capricho, afirma, sem rebuços de dúvida, que a pessoa, ao invés de atentar para as coisas que pretende conhecer, as imagina e, de suposição falsa em suposição falsa, extravia-se do caminho certo, entre uma infinidade de erros, os quais, com o tempo, se transformam em preconceitos. Aliada ao preconceito, a paixão faz respeitar mais o erro do que a verdade. Daí porque EISNTEIN, percebendo a origem crônica dessa enfermidade, chegou a afirmar que foi para ele mais fácil desintegrar um átomo do que remover um preconceito. Tudo isso também pode acontecer no judiciário, eis que de tanto repetir decisões equivocadas pode resultar em jurisprudência preconceituosa de difícil remoção. Quem sabe o Novo Código seja um momento oportuno para uma reflexão por aqueles que queiram rever os seus conceitos sobre o contrato de seguro e seus elementos e fundamentos essenciais tão bem hospedados em seus artigos 757 até 802.

 

Seja por comodidade, desconhecimento ou preconceito involuntário, a agenda dos juízes não facilita, por outro lado, buscar, como no caso deveriam, os conceitos próprios do seguro de incêndio com maior profundidade, no Brasil e em todo Mundo, do VALOR EM RISCO ATUAL, VALOR EM RISCO DE NOVO, DEPRECIAÇÃO ETC.

 

Se não faltasse tempo ao Magistrado para  consultar a literatura técnica e jurídica pertinente e se se despojasse do eventual preconceito inconsciente – temos procurado através dos Seminários Jurídicos esclarecer um pouco isso – , talvez se apercebesse da mais absoluta liceidade da cláusula de depreciação no contexto do seguro incêndio, e se conscientizasse de que a sua decisão contrária aos termos do estipulado acaba prejudicando toda uma legião de consumidores que integram o mutualismo face o princípio de que esses custos são repartidos entre todos.

 

Decerto iriam compreender que a DEPRECIAÇÃO nada mais é , no contexto do seguro incêndio, vis a vis  o Valor em Risco, do que o valor percentual matematicamente calculado (ex: fórmula de Ross) que, deduzido do Valor de Novo de um determinado bem, conduzirá ao Valor Atual desse  bem, ou seja, o valor do mesmo na data de eventual sinistro e que, para cálculo desse percentual utilizam-se os critérios de uso, idade e estado de conservação do bem a ser depreciado.

 

Perceberá por igual, que o segurado pode contratar o seguro de incêndio de seu imóvel por Valor de Novo, que nada mais é do que a contratação do seguro por valor ampliado, ou seja a importância é superior ao valor real – Valor Atual – que garante os bens pelo valor de reconstrução, reparação ou reposição, considerando-se para fins dessa cobertura o valor dos bens – edifícios, maquinismos, móveis e utensílios –  no estado de novo –  na data e local do sinistro e, como Valor Atual, o valor arbitrado para tais bens em estado de novo, descontando-se a depreciação, obviamente. Por isso o Valor Atual de todos os bens existentes no local do seguro na contratação ou no momento do sinistro, é calculado a partir do Valor de Novo desses mesmos bens menos, como se disse, e repita-se, uma parcela razoável à título de depreciação, pelo uso, idade e estado de conservação.

 

Com efeito, o  Valor em Risco, para fins do seguro incêndio,  é o valor material, intrínseco de custo de reposição,  embora muita vez, ante a falta de elementos para se determinar o custo de reposição, usa-se, na liquidação de sinistros, o valor de custo histórico, reservando-se para os casos de objetos de arte, cuja reposição é, de modo geral impossível,  o valor de mercado, como espécie de valor estimativo.

 

É sempre oportuno buscar o embasamento do eminente J. J. DE SOUZA MENDES, cujas lições, irrespondíveis, extraídas de sua obra “Bases Técnicas do Seguro”, páginas 112/113, devem ser incutidas no raciocínio de todos aqueles intérpretes que pretendam, com verdadeira justiça,   desatar querelas relacionadas ao tema aqui posto, que à certa altura de seus ensinamentos, enfatiza, verbis: “É PRECISO NÃO ESQUECER, JAMAIS, QUE OS BENS DE USO ESTÃO SUJEITOS A DEPRECIAÇÕES, AS QUAIS NA FIXAÇÃO DOS PREJUÍZOS, DEVEM SER LEVADAS EM CONSIDERAÇÃO. INICIALMENTE, A BASE DE CÁLCULO DA INDENIZAÇÃO SERÁ O VALOR DEPRECIADO DOS PREJUÍZOS. PREJUÍZO DEPRECIADO PODE PARECER UMA EXPRESSÃO ABSURDA. SE SE RACIOCINA, PORÉM, EM FUNÇÃO DA PERDA OU DIMINUIÇÃO DE PATRIMÔNIO SOFRIDAS PELO SEGURADO, CHEGA-SE À CONCLUSÃO DE QUE O QUE ELE DE FATO PERDEU FOI UM VALOR MENOR DO QUE O DO CUSTO DE REPOSIÇÃO, POIS SEUS BENS NÃO TINHAM POR FORÇA DO USO, DA IDADE, DO ESTADO EM QUE SE ENCONTRAVAM, ESTE ÚLTIMO VALOR, O QUAL SÓ PODERÁ SER INTEGRALMENTE INDENIZADO, EM FASE POSTERIOR, SE O VALOR DO SEGURO O COMPORTAR…” (nossos os grifos)

 

Diante da simplicidade da questão, após as claras explicações de SOUZA MENDES, perpetuadas na sua obra, creio que não seria difícil para um juiz bem intencionado, até mediano, compreender o alcance da cláusula de depreciação e perceber que ela nada tem de leonina ou de abusiva.

 

E se se der à tarefa de ultrapassar as fronteiras da doutrina brasileira, verificará que esse raciocínio lógico  prevalece em todo mundo, como se vê das lições abaixo resumidas, apenas à título de amostragem, extraídas de escólios do festejado jurista argentino e professor ISAAK HALAPERIN, conhecido nas paisagens jurídicas das Américas e da Europa, por isso que representando a melhor doutrina:  “O SEGURO DE INCÊNDIO OBJETIVA INDENIZAR OS DANOS MATERIAIS CAUSADOS POR FORÇA DE UM FOGO HOSTIL, DIRETA OU INDIRETAMENTE À COISA SOBRE A QUAL VERSA O INTERESSE SEGURADO… OS CRITÉRIOS PARA DETERMINAR OS DANOS E A FORMA DA INDENIZAÇÃO VISAM A APURAÇÃO DO VALOR À ÉPOCA DO SINISTRO, SALVO QUANDO SE CONVENCIONA A RECONSTRUÇÃO. ISTO PORQUE A REGRA É A DEDUÇÃO DA VETUSTEZ DO BEM. DEVE APRECIAR-SE SEGUNDO O ESTADO DEPOIS DO SINISTRO…”(HALPERIN, EM “LIÇÕES DE SEGURO”, EDITORA DEPALMA, EDIÇÃO 1997, PAGS. 76/77).

 

Logo se vê, também das lições claras de HALPERIN, que a depreciação é elemento natural dentre os critérios da indenização de bens consumidos pelo fogo, até em função da regra segundo a qual a indenização se mede pelo valor apurado na época do sinistro, e não o da contratação.

 

Finalmente,  permito-me mencionar que bem compreendeu a matéria o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, conforme se vê da decisão tomada por sua Décima Oitava Câmara Cível, em 17/12/2002, na Apelação nº 2002.001.26788, da lavra do ilustre Relator Desembargador JESSÉ TORRES, assim ementada, verbis: “SEGURO CONTRA INCÊNDIO. ALTERNATIVA NO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO, À ESCOLHA DO SEGURADO. DIFERENÇA QUE O SEGURADO SÓ FARIA JUS SE, NO PRAZO PACTUADO, DESSE INÍCIO À RECONSTRUÇÃO DO IMÓVEL, O QUE NÃO FEZ. OPTOU POR RECEBER O VALOR CORRESPONDENTE AO PRÉDIO NO ESTADO EM QUE SE ACHAVA ANTES DO SINISTRO. CLÁUSULA CONTRATUAL VÁLIDA, CUJO INTUITO É O DE IMPEDIR INDENIZAÇÃO POR UM BEM USADO, COMO SE FOSSE NOVO. REFORMA DA SENTENÇA QUE DECLAROU NULA A CLÁUSULA QUE ASSIM ESTIPULAVA, POR ABUSIVA. PROVIMENTO DO RECURSO, POR UNANIMIDADE”.

 

Esse, sub censura dos doutos, o resumo de meu entendimento sobre o tema posto.

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