Contrato de seguro. Aleatório ou comutativo?

Penso que o contrato de seguro seja o mais típico dos contratos aleatórios, em que pese as opiniões de alguns, respeitáveis diga-se desde pronto, que o qualificam como comutativo.

Assim entendo porquanto o elemento considerável para qualificar a natureza jurídica de um contrato aleatório, distinguindo-o de um contrato comutativo, está na equivalência entre as prestações, eis que, enquanto os contratos tipicamente comutativos são timbrados pela equivalência real das prestações, nos contratos tipicamente aleatórios essa equivalência em regra não existe, justo em razão do risco que o caracteriza como seu elemento nuclear, razão pela qual ouso divergir do entendimento de que o fato de o segurador garantir o risco de que se ocupa o contrato seria o quantun satis para qualificá-lo como comutativo. O simples fato de o risco ser elemento essencial para a existência do contrato de seguro o afasta de qualquer natureza comutativa, até em função da mutualidade e dos cálculos de probabilidades que o regem, chamando para si a estatística e a ciência atuarial para orientarem a sua operação, dispensadas nos contratos comutativos.

É que a garantia conferida pelo contrato de seguro, desde a sua conclusão, embora represente uma das suas tônicas, não é ela, por si só, o elemento caracterizador de sua natureza jurídica, embora se possa vislumbrar, à primeira vista, algum matiz de comutatividade em alguma modalidade de contrato de seguro (a discutir, no seguro dotal puro, por exemplo). Enfim, a garantia fornecida desde a conclusão do contrato não retira a índole aleatória do contrato de seguro, a ponto de destroná-lo da sua sempre reconhecida natureza aleatória, conferindo-lhe uma tipicidade comutativa que ele efetivamente não tem. Realmente, o principal dever do segurador é o de prestar a garantia de que, havendo o sinistro, irá pagar um valor ao segurado ou beneficiário, porém, se não tiver que pagar esse valor em caso de não ocorrer sinistro, não retira do contrato a bilateralidade, nem a onerosidade, tampouco seu caráter aleatório, do contrário haveria somente a obrigação unilateral do segurado em pagar o prêmio.

De fato, conquanto no contrato de seguro o segurador oferece, ab initio, a garantia contra o risco assumido, que representa a sensação de conforto ao segurado de que a prestação financeira será dada em caso de sinistro coberto, as partes não sabem, de antemão, quem ao final terá vantagem ou prejuízo, pois a efetiva prestação do segurador é a entrega da indenização (nos seguros de dano) ou do capital segurado (nos seguros de pessoa), que sempre dependerá de um acontecimento futuro e incerto. Isto é, as partes, embora conheçam previamente o objeto (interesse legítimo do segurado) e o preço (prêmio), não sabem se e quando a efetiva prestação do segurador será dada, pois a álea ainda é a sua aba essencial. A garantia não representa, por si só, a efetiva prestação/obrigação do segurador como elemento diferenciador de sua natureza jurídica para os fins aqui colimados.

Demais disso, também não colhe bons frutos, permita-me vênia, o argumento daqueles que enxergam o contrato de seguro como comutativo pelo fato de a seguradora exercer, sistematicamente, a sua atividade como gestora da mutualidade e assim estabelecendo um sistema tal de provisionamento técnico, margem de solvência, capital mínimo, fundo garantidor, cosseguro, resseguro, retrocessão etc., que tornaria remota a sua insolvência e permitiria a ela conhecer e domar o risco nas suas entranhas. Não seria por isso, definitivamente, que o contrato de seguro se libertaria de seu caráter aleatório. Não há confundir a natureza do contrato com a da indústria a que pertence.

A propósito, RUBÉN S. STIGLITZ, jurista argentino de nomeada e que se destaca mundo afora como estudioso do tema, seguindo as pegadas de outros grandes mestres, replica, respaldado por VIVANTE, afirmando não haver dúvidas de que a indústria de seguros tende a fazer-se cada dia mais equilibrada e prudente, mediante uma apreciação estatística dos riscos e dos prêmios e um bem ordenado sistema de resseguro. Mas este ordenamento – acrescenta – muito longe está de excluir a vocação aleatória de cada um dos contratos de seguro. Os que pensam em contrário, diz ele, cometem o erro de confundir o contrato com as características da indústria a que pertence. Com efeito, prossegue o mestre, qualquer que seja o ordenamento industrial da empresa, o fato é que nenhum dos contratantes pode saber se sacará do contrato um ganho ou uma perda até que se verifique o evento, que é quantum satis, o que caracteriza o contrato aleatório (STIGLITZ, Derecho de Seguros, editora Abeledo Perrot, Vol. I, pag. 126/127, edição 1996, Buenos Aires).

No mesmo sentido se pronuncia o não menos acatado IZAAK HALPERIN, lembrando para aqueles que alegam que a exploração por uma empresa seguradora elimina a álea, perde de vista o contrato, confundindo-o com a organização para sua exploração industrial por uma das partes. Afirma o ilustre Professor que, pelo contrário, essa organização supõe a álea, posto que se constitui para contratar em massa e minimizar por este sistema a álea. Ora, toda essa organização se dá exatamente em função do caráter aleatório do contrato de seguro. Não o fosse, toda essa preparação sistemática não seria necessária. O segurador, pois, para absorver o risco da indenização, estabelece uma mutualidade especialmente preparada.

Não seria pelo fato de o seguro consistir em uma mutualidade, especialmente organizada segundo a lei da estatística, que deveria receber o epíteto de contrato comutativo, muito pelo contrário, é justamente por ser o seguro a compensação dos efeitos do acaso pela mutualidade preparada segundo a lei dos grandes números (Albert Choufton), que faz dele um contrato tipicamente aleatório.

Aliás, o fatídico 11 de setembro, em que o terrorismo destruiu as torres Gêmeas em Nova York, reforçou, para a indústria de seguro mundial, o conceito de risco e a natureza aleatória do contrato de seguro.

A própria lei evidencia a índole aleatória do contrato de seguro, principalmente no Código Civil de 2002 – já era assim no revogado Código de 1916 – por diversos de seus dispositivos (artigos 763 e 764 para não citar outros), isto porque os ganhos e perdas das partes, por mais atuarial que seja a atividade da seguradora, por mais que ela estabeleça, compulsoriamente, um sistema de reservas e provisões técnicas, cosseguro, resseguro, retrocessão etc., estarão sempre na dependência de circunstâncias futuras e incertas do risco, este que por si só dá o tom dessa aleatoriedade, dada a inexistência de uma real e absoluta equivalência das prestações como soe acontecer nos contratos de risco, ainda que a prestação do segurado (prêmio) seja certa e a do segurador (indenização ou capital segurado) incerta, suficiente para afastar do contrato de seguro a suposta índole comutativa.

Pondera STIGLITZ, na mesma obra antes citada, que a álea, para o segurador, consiste precisamente em sua ignorância sobre sua prestação, encarada como preço de uma eventual contraprestação, se verá, por império de uma ameaça, justificada. Daí que o segurado se envolve num contrato aleatório como remédio contra a álea para se proteger contra o risco temido.

Seguro, temos dito, é por isso mesmo o triunfo da ideia humana sobre as forças cegas da natureza, uma vitória da lógica sobre os problemas ilógicos com que o homem tem de lutar diante da álea.

Quando a álea não mais estiver presente no contrato de seguro como elemento caracterizador de sua natureza jurídica, aí sim, não mais estaremos lidando com a instituição de seguro, mas sim com um contrato qualquer.

Nem se diga que se trata de uma discussão meramente acadêmica. Longe disso. Tampouco se argumente com o fato de que, na condição de contrato aleatório o seguro, o segurador teria que devolver o prêmio recebido se o risco não se realizar em sinistro. Muito ao contrário, se comutativo, aí sim, haveria a ideia de devolução de prêmio em caso de não haver sinistro (comutativo se origina da expressão latina “comutare”, isto é, trocar, por isso há de haver entre os contratantes equivalência exata entre prestação e contraprestação, dando assim o sentido de troca de obrigações, como, por exemplo, se dá no contrato de compra e venda, pois se uma das partes entrega a coisa comprada, a outra se obriga a pagar o preço equivalente à coisa vendida, sujeito, portanto à rescisão por lesão ou excessiva onerosidade, se a venda se fizer por preço notoriamente inferior ao valor do bem – in Vocabulário Jurídico DE PLACIDO E SILVA). É claro que, se desde a conclusão do contrato o risco não existir, ou já tiver passado, a devolução do prêmio se impõe, por falta de objeto, no último caso a devolução seria até em dobro (art. 773 do CCb), seja comutativo ou aleatório o contrato.

Dá boa mostra disso o acórdão a seguir ementado:

“EMENTA: Seguro Vida. Impossibilidade de devolução de prêmio por encerramento do contrato. Improcede pedido de devolução de valores pagos em virtude de encerramento de contrato de seguro, porque este tem natureza aleatória. Ou seja, aquele que contrata um seguro, o faz visando ser assistido na hipótese de um sinistro; logo, não possui a mesma finalidade da caderneta de poupança, ou de plano de previdência privada, pois a seguradora assume o risco de pagar o segurado tão só se o evento futuro e incerto ocorrer” (TJDF. Ac. Nº 293970. Rel. Lecir Manoel da Luz. Revisor Des. Dácio Vieira).

Com efeito, o risco consiste exatamente na eventualidade de ocorrer um evento futuro desfavorável ao segurado, capaz de alterar, para pior, o seu status quo ante, por isso, sabemos todos, o risco é o sinistro em potência, enquanto o sinistro é o risco em ato. Como é possível ver em um contrato com tais características, uma índole tipicamente comutativa? Não vejo como. O segurador é credor firme do prêmio, porém, devedor condicional da indenização ou capital segurado, sabido que a sua prestação, como dito, está sempre na dependência de um acontecimento possível, mas futuro e incerto.

Mesmo na conhecida modalidade de seguro de sobrevivência (seguro dotal), pelo qual se ajusta uma data certa para o pagamento do capital ao próprio segurado, baseada em uma sobrevida média, para a hipótese de o mesmo sobreviver a essa data, a sua índole aleatória se manifesta, mesmo a despeito de se conhecer de antemão a data da prestação no caso de sobrevivência. É que, caso o segurado não sobreviva a essa data, o capital, por óbvio a ele não será pago.

Tampouco se diga que os contratos de seguro de vida com cobertura de morte tenham natureza comutativa pelo fato de a morte ser sempre certa. Realmente, a morte, de todas as certezas, é a mais evidente, e disso se sabe desde o momento em que nascemos. Todavia, enquanto certa na ocorrência é incerta quanto à data, como já diziam os romanos desde priscas eras, “certus an incertus quando”.

Não deixa margem a dúvidas quanto à natureza aleatória do contato de seguro, o antes citado artigo 764 do CCb, ao assim dispor: “Salvo disposição especial, o fato de se não ter verificado o risco, em previsão do qual se faz o seguro, não exime o segurado de pagar o prêmio”.

Realmente, não é a “garantia de tranquilidade” que define a natureza do contrato, ela não decorre da álea, mas da bilateralidade onde residem as obrigações das partes. Se tal decorresse da álea (ou da comutatividade), a interdependência entre as prestações se daria na execução do contrato (no seguro a inexecução da prestação do segurador é possível). A álea está no evento futuro gerador da prestação (sinistro), senão haveria apenas obrigação unilateral do segurado pagar o prêmio. A incerteza do risco é a característica do seguro, que difere da bilateralidade, sabido que a prestação pecuniária do segurador depende do sinistro.

Extrai-se da obra de NELSON NERY JUNIOR, Código Civil Comentado, 8ª edição, atualizada até 12/07/2011, páginas 576 a 580, nos comentários aos artigos 458 e seguintes do CCb, que tratam dos “Contratos Aleatórios”, lições irrepreensíveis acerca da natureza jurídica dessa modalidade contratual, a começar pelo conceito ali expendido, segundo o qual contrato aleatório, ou contrato de sorte, é aquele – causado por um risco equivalente – segundo o qual o valor concreto da prestação e da contraprestação depende de um fator exterior de incerteza que pode endereçar a vantagem do negócio em favor de uma parte ou de outra. Em outras palavras, o contrato é aleatório quando a determinação da prestação ou da contraprestação depende de um fator de incerteza, que pode implicar a vantagem do contrato para uma ou outra parte.

E acrescenta que a incerteza pode ser da prestação de uma só das partes (v.g. seguro), ou de ambas as prestações (v.g. aposta). Em qualquer caso o risco é bilateral, porque mesmo a parte que recebeu prestação certa (segurador) não sabe, ao final, se obterá vantagem ou desvantagem. Embora em todo contrato possa existir, ínsita, a ideia de algum risco (álea ordinária, por exemplo, o risco, em um contrato de locação, tipicamente comutativo, de o locatário não pagar o aluguel; ou a álea extraordinária, medida pela teoria da imprevisão, ou cláusula rebus sic stantibus, que exime ou atenua a obrigação de uma das partes em face de algum acontecimento econômico não previsível, que torne impossível o cumprimento da obrigação inicialmente considerada, maxidesvalorização do Real, por exemplo), nos contratos aleatórios é a incerteza do conteúdo que se tem presente quando da conclusão do contrato (álea operacional, que faz do seguro contrato aleatório por natureza).

Com tais premissas, extrai-se da mesma obra logo acima citada, pág. 577, o enquadramento do contrato de seguro como o mais típico dos contratos aleatórios, assim classificado o seguro como contrato aleatório por natureza, enquanto os contratos de compra e venda de coisa futura (emptio spei, compra de safra, por exemplo), dentre os contratos aleatórios por vontade das partes. Em ambos, seja por natureza ou por vontade das partes, o contrato aleatório tem como característica que o preço deve ser pago mesmo se o risco não se realizar, ou se a coisa não vier a existir na qualidade ou quantidade esperada, não havendo se falar em devolução do preço.

Nesse mesmo sentido, se expressam, entre nós, PONTES DE MIRANDA, MARIA HELENA DINIZ, DE PLÁCIDO E SILVA, SERPA LOPES, SERGIO CAVALIERI, ORLANDO GOMES, SILVIO DE SALVO VENOSA, JOÃO MARCOS BRITO, J.J. CALMON DE PASSOS, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ARNOLD WALD, SILVIO RODRIGUES, CARVALHO SANTOS, CLOVIS BEVILÁQUA, PEDRO ALVIM, AMILCAR SANTOS, JOSÉ AUGUSTO DELGADO, CANDIDO RANGEL DINAMARCO, dentre muitos outros tantos acatados juristas, que engrossam a enorme legião, verdadeira miríade, dos que não trepidam em afirmar a natureza aleatória do contrato de seguro, podendo-se dizer que os que pensam em contrário, sem desmerecer a qualidade de seus argumentos e ao seu inegável talento na arte de convencer, ainda representam apertada minoria.

Consta ainda da referida obra, que se reconhece um contrato como aleatório toda vez que o risco for sua causa, risco que tem de ser recíproco, portanto bilateral, além de oneroso. Justo porque o risco compromete, exatamente, o aspecto da equivalência objetiva das prestações. Enquanto no contrato comutativo a equivalência é das prestações, objetivamente consideradas, no contrato aleatório a equivalência é justamente do risco da desigualdade das prestações, razão pela qual nele pode ocorrer a desigualdade objetiva das prestações, porque a ideia de risco compõe a noção de álea. Enfim, a obra do insigne Professor NELSON NERY, ensina, com maestria, que “a distinção entre contrato aleatório e contrato comutativo se refere à relação (de proporcionalidade) entre a prestação e a contraprestação”.

JOSÉ AUGUSTO DELGADO, em “Comentários ao Novo Código Civil”, Forense Rio, Volume XI, Tomo I, pag. 183, deixa aqui também a sua qualificada contribuição, ao comentar o artigo 764 do Código, afirmando, sem rebuços de dúvidas:

“O pagamento do prêmio não está subordinado a qualquer condição. Ele deve ser consumado no vencimento ajustado na apólice… A razão do conteúdo do artigo é a de que o seguro é contrato aleatório. Assim sendo, o ganho está vinculado à verificação do risco, pouco importando que ele se concretize ou não. O mesmo acontece em caso de perda.” (nosso o grifo).

Da mesma forma, citada por DELGADO na obra antes referida, o ensinamento de MARIA HELENA DINIZ comentando o assunto, ao lembrar que “o contrato de seguro é aleatório por não haver equivalência entre as prestações. A vantagem do segurador dependia de não ocorrer o sinistro, hipótese em que receberá o prêmio sem nada desembolsar. Se advier o sinistro deverá pagar uma indenização, que poderá se muito maior do que o valor recebido. Por isso, o fato de o risco, previsto no contrato não ter se verificado, não libera o segurado de pagar o prêmio…” (o grifo também aqui não é do original).

PONTES DE MIRANDA, nosso jurista maior, a pagina 286 de seu célebre “Tratado de Direito Privado”, Volume 45, não sem antes afirmar à página 283 que a “natureza do contrato de seguro é uma só para todas as espécies, seja privado seja público”, é categórico ao pontificar a aleatoriedade de que se reveste:

“Se nos restringirmos ao exame do contrato de seguro, temos de considerá-lo contrato bilateral, ou plurilateral; oneroso e ALEATÓRIO”. (mais uma vez, o grifo é proposital).

E as razões ali ditadas são as mesmas proferidas pelos demais doutrinadores de estofo, nacionais e estrangeiros.

Por tudo isso se conclui, mostrando não se tratar de discussão meramente acadêmica o esforço de qualificar um contrato como aleatório ou comutativo, que nos contratos aleatórios, como soe ser em regra o de seguro, é inadmissível a sua rescisão por lesão, bem como a sua resolução por onerosidade excessiva, considerando que tais rescindibilidades só se aplicam aos contratos de prestações correspectivas, isto é, aos contratos comutativos. Só mesmo excepcionalmente poderão ocorrer nos contratos aleatórios, nos casos em que a desproporção não é resultado da álea, mas já se encontrava presente no momento da conclusão do contrato (obra citada, pág. 579).

São estas, em apertada síntese, as considerações com as quais me permito expressar o meu entendimento sobre o tema proposto.

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