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Função socieconômica do contrato de seguro
Ricardo Bechara Santos.
É supina a honra de poder compartilhar desta edição da Revista de Direito de Seguro de nossa querida AIDA-Brasil, dividindo o seu precioso espaço com articulistas tão ilustres, contribuindo com este modesto texto sobre tema tão recorrente, a função socioeconômica do contrato de seguro, aliás, uma de suas marcas mais salientes.
Diante dos novos paradigmas ditados pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Código Civil, este no seu sistema de cláusulas abertas e na sua vocação de diálogo entre fontes, está dito que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (CC art. 421), assim como “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos pelo Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos” (CC, art. 2035).
Vê-se da letra e do espírito da lei, que o exercício da liberdade de contratar resta preservado, ainda que demarcado pela função social do contrato e da propriedade e pelos preceitos de ordem pública. Resta então sobrevivo, porém mitigado, o velho pacta sunt servanda. Mas não seja por isso que as pessoas estejam alforriadas a invadir propriedades e descumprir contratos de forma inconsequente. Na preleção de NELSON ROSENVALD, “a função social não coíbe a liberdade de contratar, podendo, portanto, se cogitar uma função social interna e uma função social externa do contrato”.
Complementa HUMBERTO THEODORO, que “a função social do contrato consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre os contratantes.” De há muito que os contratantes, embora livres para contratar, tiveram o dever de agir dentro dos limites necessários para evitar que sua atuação se torne fonte de prejuízos injustos para terceiros. Nos contratos de massa, como os de seguro em algumas de suas modalidades, não são eles restritos às partes, por isso repercutem em toda a sociedade. Antes, porém, há de repercutir na coletividade interna que integra a mutualidade.
A função social dos contratos onerosos e bilaterais, portanto, não significa simplesmente a anulação dos pactos, benemerência para uns em detrimento de outros.
Sem se perder de vista que a socialidade – que significa a passagem corajosa de um modelo individualista para um modelo comprometido com a função social do contrato – imbricada com a eticidade – que representa o resgate do princípio da boa-fé objetiva – e com a operabilidade – de modo que os magistrados se libertem da velha função de simples aplicadores da lei alçando à função complementar de dinamizadores do direito, sem abusos nem arbitrariedades é claro, sem comprometer a segurança jurídica – são os princípios básicos que permearam no Código Civil de 2002.
O princípio da socialidade, sabemos todos, atua sobre o direito de contratar complementarmente ao da eticidade, cuja matriz é a boa-fé, nas suas duas vertentes, objetiva e subjetiva.
Na ciência do seguro, atividade complexa, cuja lógica é de uma racionalidade cristalina, porque se move no cálculo das probabilidades para a superação dos riscos, há uma natural convergência dos interesses individuais com os coletivos, importando a todos individualmente e à sociedade global que possíveis infortúnios não se transformem em prejuízos incompensáveis.
A função socioeconômica do contrato, que sempre acompanhou o seguro, não serve de pretexto ao paternalismo, pois o interesse coletivo da comunidade de segurados – mutualismo – se sobrepõe ao interesse daquele que se mostre vulnerável na sua individualidade, mandando a prudência que o equilíbrio seja preservado, mormente no sistema de cláusulas abertas e gerais do Código Civil, pois a generosidade para com aqueles que individualmente não tem direito contratual pode se transformar em perversidade para com a universalidade de segurados que integram o fundo gerido pelo segurador. Agir diferente disso importaria em contrariedade ao princípio da função socioeconômica do contrato.
Mormente no seguro, que é solidariedade, coletividade, mas que só alcançaria a plenitude de sua tão eminente função socioeconômica, se organizada com técnica, com a gestão competente da seguradora, sem a qual teríamos uma solidariedade lúdica, ineficaz. Daí a técnica da lei dos grandes números, dos cálculos atuariais, das provisões, da estatística, do sistema organizado de cosseguro, resseguro, retrocessão, podendo se dizer que o seguro, essa criação genial do homem, na sua expressão mais simples, é a transferência dos efeitos econômicos do risco do segurado para o segurador, este que há de estabelecer uma mutualidade especialmente organizada para suportar os riscos da reposição, da satisfação da necessidade eventual dos segurados, embora não tenha o seguro a função de evitar que adversidades aconteçam, mas permite que suas consequências sejam minimizadas.
As empresas de seguro estão atentas a isso, seus objetivos não estão voltados apenas ao lucro, integrando seu patrimônio global também a credibilidade, a imagem, dentre outros valores, tanto que não mais editam somente balanços financeiros, mas também BALANÇOS SOCIAIS.
Embora o seguro seja um negócio jurídico individual entre segurado e segurador, não poderá ser assim tratado em função da cadeia de que o mesmo faz parte e em decorrência dos efeitos econômicos daquele pacto. Há entre os segurados uma solidariedade implícita, muita vez não consciente. Ao aderir ao contrato cada segurado há de perceber que esse seu ato individual encontrará consonância com a coletividade onde cada qual, junto com ele, irá sustentar o fundo mútuo do seguro, de onde o segurador, como seu gestor, vai haurir as forças para cumprir a função socioeconômica do seguro, pagando as indenizações e capitais segurados nas ocorrências dos sinistros.
Não é incomum se ver confusão entre a possível fragilidade de uma parte com a debilidade de sua pretensão jurídica, valendo lembrar as palavras do eminente Desembargador CÂNDIDO DINAMARCO: “poderia até parecer socialmente bom querer aumentar a responsabilidade das seguradoras por razões exclusivamente humanitárias, mas seria injusto. E o que é injusto nunca será socialmente bom”.
Oportuno lembrar visão madura de uma das mais influentes Ministras do STJ, a gaúcha NANCY ANDRIGHI, em um de seus votos versando a função social do contrato, refreando tendências que esfumaçam a lógica e a razão que devem presidir os julgamentos serenos e justos, no campo da humanização das relações econômicas. Assim ponderou a Ministra, não sem lembrar de que há escolhas e arbítrios nos riscos a que estamos expostos:
“a função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de riquezas”.
Necessário enfatizar preocupação com eventuais desvios do verdadeiro sentido da função social do contrato, como observou MIGUEL REALE:
“Essa colocação das avenças, em um plano transindividual, tem levado alguns intérpretes a temer que, com isso, haja uma diminuição de garantia para os que firmam contratos baseados na crença de que os direitos e deveres neles ajustados serão respeitados por ambas as partes”.
Mas é ele mesmo quem responde, ao assegurar que
“Esse receio, todavia, não tem cabimento, pois a nova lei civil não conflita com o princípio de que o pactuado deve ser adimplido, ou seja, com a idéia tradicional, de fonte romanista, de que “pacta sunt servanda” continua a ser o fundamento primeiro das obrigações contratuais. Pode-se dizer que o NCC veio reforçar ainda mais essa obrigação, ao estabelecer, no art. 422, que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.
Diz o mestre: “o que o imperativo da função social do contrato estatui é que este não pode ser transformado em instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros, uma vez que, nos termos do art. 187 do Código Civil, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede, manifestamente, os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Acresce que “o ato de contratar corresponde ao valor da livre iniciativa, erigida pela CF de 88 a um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, de caráter manifestamente preambular”.
Com efeito, a atribuição de função social do contrato não impede que as pessoas, naturais ou jurídicas, livremente o concluam, tendo em vista a realização dos mais diversos valores. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, seja externa (sociedade) ou interna (mutualidade, em se tratando de seguro).
Conclui MIGUEL REALE, nesse tema, que na elaboração do Código de 2002, o legislador adotou posição intermédia, nem a do individualismo do Código de 16, nem a da corrente que prega maior relevância aos valores coletivos a ponto de promover a “socialização dos contratos”, por isso o resultado foi a combinação do individual com o social de maneira complementar.
Em suma, é a essa luz que deve ser interpretado o dispositivo que consagra a “função social do contrato”, a qual não colide com os livres acordos exigidos pela sociedade. Como ponderou a 3ª T. do STJ, REsp nº 803.481, tendo como Relatora Ministra Nancy, DJU de 1/8/07, “A FUNÇÃO SOCIAL INFLIGIDA AO CONTRATO NÃO PODE DESCONSIDERAR SEU PAPEL PRIMÁRIO E NATURAL, QUE É O ECONÔMICO”.
Assim como assinalou NELSON NERY JUNIOR em sua conhecida obra, não sem negar a importância da função social, “A FUNÇÃO MAIS DESTACADA DO CONTRATO É A ECONÔMICA”. Sem esta a função social do contrato de seguro jamais seria eficazmente alcançada. Função social sem função econômica não tem sustentabilidade. E vice-versa. Porque não?
Ressalta o mestre RUBENS GOMES DE SOUZA, principal autor do anteprojeto do CTN, que as pessoas que infringem as leis econômicas não costumam sofrer penalidades administrativas ou criminais, mas sofrem a sanção do fracasso na sua própria atividade econômica.
Se o aplicador distorcer a lei a ponto de transformar a função social do contrato em assistência social, disto poderá resultar o fracasso da atividade econômica, mormente da seguradora, nem sendo preciso lembrar a grave repercussão social que decorre da insolvência de uma seguradora, não só interna como externa.
Finalizando, o que diria ORLANDO GOMES sobre tudo isso?
Pude colher de sua obra “CONTRATOS”, 12ª edição/3ª tiragem, Forense Rio de Janeiro, 1990, boas lições do mestre Orlando Gomes sobre o tema “Função Socioeconômica do Contrato”, em que pese proferidas no século passado, se mostram bem atualizadas. Senão, vejamos.
“A vida econômica desdobra-se através de imensa rede dos contratos que a ordem jurídica oferece aos sujeitos de direito para que regulem com segurança seus interesses. Todo contrato tem uma função econômica, que é, afinal, segundo corrente doutrinária, a sua função básica …
Considerada a variedade de funções econômicas que desempenham, classificam em contratos: a) para promover a circulação de riquezas; b) de colaboração; c) para prevenção de risco; d) de conservação e acautelatórios; e) para prevenir e dirimir uma controvérsia; f) para a concessão de crédito; g) constitutivos de diretos reais de gozo, ou de garanti …
Tamanha é a importância dos contratos como fato econômico, que sua disciplina jurídica constitui a estereotipação do regime a que se subordina a economia de qualquer comunidade.
A função econômico-social do contrato foi reconhecida, ultimamente, como a razão determinante de sua proteção jurídica. Sustenta-se que o Direito intervém, tutelando determinado contrato, devido à sua função econômico-social. Em consequência, os contratos que regulam interesses sem utilidade social, fúteis ou improdutivos, não merecem proteção jurídica. Merecem-na apenas os que têm função econômico-social reconhecidamente útil. A teoria foi consagrada no Código civil italiano, conquanto encontre opositores.
Na afirmação de que o contrato exerce uma função social, o que se quer significar, em suma, é que deve ser socialmente útil, de modo que haja interesse público na sua tutela. Entretanto, o reconhecimento de que todo contrato tem função econômico-social é feito por alguns de modo diverso, os quais destacam a “função típica de cada contrato”, isto é, a função que serve para “determinar o tipo ou os caracteres típicos de cada contrato”. A essa função típica dos contratos liga-se a moderna doutrina objetiva da causa”.
Posto assim, com base em tais premissas, o contrato de seguro, também na visão abalizada de ORLANDO GOMES, mestre dos mestres da teoria dos contratos, é daqueles que, em face da sua inegável utilidade para a sociedade, tanto que regido pela tutela do dirigismo estatal, tem a sua marca timbrada pelo selo da função socioeconômica.