ICMS na alienação de bens salvados de sinistros. Do início da batalha judicial nos anos 70, até a edição da súmula vinculante nº 32 do STF em 2011

RICARDO BECHARA SANTOS     

Esta talvez seja a mais longa e debatida batalha judicial tributária envolvendo as sociedades seguradoras e secretarias de estado de fazenda, deflagrada nos anos setenta, portanto há quatro décadas, pelas sociedades seguradoras que operam com seguros de dano, especialmente com seguros de automóvel, que sempre sustentaram, com muita firmeza e segurança, a não incidência do ICM/ICMS na alienação de bens salvados de sinistros por “indenização integral”, antes denominada “perda total”, tendo como argumento central o fato de que tais bens não se enquadram no conceito de mercadoria, até porque as seguradoras não os adquirem com o objetivo de revendê-los, mas sim por abandono sub-rogatório em face do segurado indenizado, sendo que, por força de norma legal, as seguradoras são obrigadas a ficar com esses bens e, por conseguinte, a se desfazerem dos mesmos (reza o artigo 12 da Circular SUSEP nº 269/04, que “Deverá ser previsto contratualmente que, uma vez efetuado o pagamento da indenização integral, os salvados passam a ser de inteira responsabilidade da sociedade seguradora”). E o fazem como forma de ressarcimento, nos termos do Plano de Contas da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP.

 

É claro – cabe desde pronto realçar – que se não há mercadoria, como adiante se verá, tampouco sua circulação, é dizer, o movimento dos bens por quem os compra para revenda, não haverá se falar de incidência do “Imposto de Circulação de Mercadoria…”, mas da mais absoluta ausência de fato gerador.

 

As demandas travadas em torno da matéria, no âmbito judicial e administrativo, percorrendo todas as instâncias, de primeiro ao último grau, foram tão instigantes, ricas e fecundas jurídica e tecnicamente, que a elas acorreram pronunciamentos, não só dos próprios membros do Judiciário, envolvendo magistrados do mais alto quilate e representantes do Ministério Público, como também a melhor doutrina, mediante pareceres com ensinamentos em prol da não incidência do tributo, de juristas dos mais renomados e acatados, dentre os quais podem ser citados: OSVALDO TRIGUEIRO (Parecer de 25/02/86); JOÃO LEITÃO DE ABREU (Parecer de 03/11/89), ALCIDES JORGE COSTA (Parecer de 12/07/89), HAMILTON DIAS DE SOUZA/MARCO AURÉLIO GRECO (Parecer de 10/08/89), CÉLIO BORJA (Parecer de 17/07/95). Todos concluindo pela “impossibilidade de serem tributados, pelo ICM/ICMS, salvados sub-rogatórios, que não constituem mercadorias”.

 

ALCIDES JORGE COSTA, o jurista tributário que mais estudou a disciplina jurídica do ICM/ICMS, em seu Parecer, ensina lapidarmente, que (…) Instituições financeiras e seguradoras, por sua natureza, não tem por objeto realizar operações relativas à circulação de mercadorias. Pode dizer-se que estes tipos de empresa (a) vendem bens apenas em caráter excepcional: bens de seu ativo caídos em obsolescência ou desuso ou bens recebidos em garantia ou salvados de sinistros; (b) quanto melhor vão seus negócios, menos bens vendem. A situação ideal de um banco é não ter devedores inadimplentes e a de uma companhia de seguros é a de não ter que cobrir perdas resultantes de sinistros. Desta maneira, está ausente da vida destas instituições a prática habitual e intencional de operações relativas à circulação de mercadorias, quando vendem bens móveis recebidos em garantia, ou salvados de sinistros cobertos por seguros (…)”.

 

JOÃO LEITÃO DE ABREU deixa claro em seu Parecer, que “a venda de salvados é inseparável das operações de seguro, pois ligados a esta por vínculo de complementaridade”.

 

HAMILTON DIAS DE SOUZA e MARCO AURELIO GRECO, no tema que estamos a tratar, assim se pronunciaram em trechos de seu Parecer: “Exige o constituinte que para haver incidência do ICMS, ocorra não apenas uma operação relativa à circulação, mas que esta tenha por objeto uma “mercadoria”… À falta dessa qualidade, deixará de se verificar o fato gerador do tributoPara se identificar algo como mercadoria é preciso proceder a algumas distinções. Primeiramente, cumpre não confundi-la com os bens em geral. De fato, o próprio constituinte separa a tributação do bem, da tributação das mercadorias, pois aquele é gênero do qual esta é espécie. Estas são bens móveis, objeto da mercancia exercida pelo contribuinte e que, como tal, tenham sido adquiridos para serem revendidos… Daí decorre a conclusão de que todos os bens móveis podem se caracterizar como mercadorias desde que, da ótica do vendedor, eles sejam o resultado de sua aquisição com intuito de revenda, ou que sejam objeto de negociação no mercado do qual o alienante faça parte como agente integrante… Citando HENRI CAPITANT, no seu “vocabulaire juridique”, “mercadorias são objetos móveis compreendidos em um fundo de comércio e destinados a ser revendidos”. Este conceito sublinha a circunstância de o bem dever estar integrado no acervo da empresa, compondo, portanto, o objeto da atividade empresarial do sujeito… Sendo assim, os bancos comerciais (assim como as seguradoras), não tem por objeto social a comercialização de bens recebidos em pagamento. Aliás, por força da legislação estão obrigatoriamente vinculados a atividade empresarial distinta do comércio (a de natureza bancária ou securitária)… A atividade específica do recebimento dos bens não é a revenda em si, mas a quitação do empréstimo feito ou financiamento concedido (no caso das seguradoras a indenização de sinistros). A venda subsequente é evento futuro que decorre de imposições da legislação específica, mas não compõe a natureza da atividade bancária…” (O mesmíssimo sucede com relação ao recebimento de bens salvados de sinistro por abandono sub-rogatório, pela sociedade seguradora). Os entre parêntesis são nossos e intencionais.

 

No mesmo sentido conclui OSWALDO TRIGUEIRO em seu Parecer, lecionando que “… Os textos legais, ao definirem o fato gerador do ICM, impõem ao contribuinte a condição de comerciante, industrial ou produtor, profissões que o segurador não exerce, ex vi de impedimento legal… Por conseguinte, se pela constituição e pela lei federal, o ICM é inaplicável em relação a salvados sub-rogatórios, parece inteiramente inadmissível que o Estado legisle em sentido contrário, ou diverso, criando caso novo de tributação, o que restabelece a balbúrdia no sistema tributário, que a constituição vigente quer evitar…”.

 

Colhe-se do Parecer de CÉLIO BORJA, in literis: “(…) Esclarece que o thema decidendum da ação de inconstitucionalidade foi examinado nos pareceres dos saudosos Colegas, Ministro Oswaldo Trigueiro e Ministro João Leitão de Abreu, e por último, no do Professor Alcides Jorge Costa, concluindo todos pela não configuração do fato gerador do ICMS, na hipótese de alienação pelo segurador, de salvados de sinistros… Registre-se, ainda, que o tributo não é, também, um instrumento de política econômica. Por isso, sobre a política de seguros legisla, privativamente, a União, excluídos os Estados. Sob a ordem constitucional vigente estes só legislam sobre pontos específicos dessa matéria, se autorizados expressamente por lei federal (Const., Art. 22,§ único). Tal autorização não existe, contudo… Penso que os pareceres aludidos na consulta demonstram cabalmente que o fato gerador do ICMS não se configura na hipótese de alienação de salvados de sinistros pelo segurador. Tais coisas não são mercadorias, a atividade própria do segurador não é a venda de veículos ou de qualquer outro bem corpóreo; nem é operação de circulação de mercadorias a compra e venda dos salvados, mas, simplesmente, um ato de liquidação do sinistro (…)”.

 

Com efeito, as sociedades seguradoras venceram praticamente todas as batalhas judiciais e administrativas, em que pese alguns incidentes de percurso, do que foi exemplo a Súmula nº 152 do E. Superior Tribunal de Justiça que, revertendo decisões até então favoráveis às seguradoras, uniformizara temporariamente a sua jurisprudência no sentido de que deveria haver incidência de tal tributo na alienação desses bens. Todavia, as seguradoras obtiveram decisão favorável no plenário do STF, não sem antes obterem antecipação de tutela justamente utilizando como argumento para tanto a própria existência de tal súmula do STJ, já que a mesma deflagraria uma torrente de decisões de outros juízos e tribunais e do próprio STJ determinando o recolhimento do tributo, fato que configuraria, sem sombra de dúvida, o requisito do periculum in mora que, aliado ao bom direito das seguradoras, como que demonstrando também o fumus boni juris, formado estava o binômio necessário para a concessão da medida cautelar, posteriormente confirmada pela Suprema Corte Constitucional e, finalmente, culminando com a sua Súmula Vinculante nº 32/11, uniformizando, aí sim, o entendimento da mais alta corte de justiça do País de que o ICMS não incide na alienação de bens salvados de sinistros. E sobre a Súmula Vinculante do STF falaremos passos mais adiante.

 

Feito assim, as sociedades seguradoras, firmes na sua bateria de fundamentos jurídicos, em feito inédito, conseguiram ver derrubada a citada Súmula 152 do STJ, este que, rendido pela força do direito sustentado pelos patronos das seguradoras, reconhecera que aquela súmula não poderia nem deveria jamais prosperar, até porque, fiadas nela, as secretarias de estado de fazenda perseveravam com intermitentes autuações contra as sociedades seguradoras, muita vez até mesmo – desavisadamente é bem verdade – contra aquelas que sequer operavam com seguros de dano, mas unicamente com seguros de pessoa, sabido que em tal modalidade de seguro, salvados de sinistros jamais poderiam existir, até em face da natureza não indenitária de tais seguros, e, por conseguinte, da mais absoluta impossibilidade jurídica do abandono sub-rogatório de bens materiais, apenas possível, obviamente, nos seguros de dano já que nos seguros de pessoa a garantia e a prestação do segurador se constituem na cobertura e no pagamento de um capital segurado, quer seja por morte ou por invalidez, sem qualquer natureza indenizatória.

 

E na sua “gula pantagruélica”, as secretarias de fazenda deixavam de analisar outros fundamentos que, com a máxima vênia, evidenciavam de forma cabal a não incidência do tributo na alienação de salvados de sinistros, inclusive por não se caracterizar como mercadoria esses bens adquiridos sub-rogatoriamente e como tais alienados pelas seguradoras, conforme iterado entendimento do E. Supremo Tribunal Federal, por isso a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP firmou entendimento, como se verá mais adiante, de que a alienação de salvados, adquiridos obrigatoriamente por abandono sub-rogatório, é qualificada dentro da operação de seguro como de ressarcimento de sinistros indenizados e, como tal, levado em conta na Nota Técnica Atuarial como redutor do cálculo do prêmio, sem a incidência do imposto.

 

A tese do fisco estadual para que pudesse prevalecer, teria que contrariar frontalmente a natureza jurídica da operação e considerar como receita os valores recebidos pela seguradora na alienação de salvados.

 

Com efeito, as sociedades seguradoras são obrigadas por lei a pagar 100% de indenização quando as perdas decorrentes do sinistro ultrapassar 75% do valor segurado. É pacificamente admitido em direito do seguro que a indenização deve corresponder ao dano (princípio indenitário estabelecido nos artigos 778 e 781 do Código Civil). Por esta razão, a lei determina que para receber 100% do valor segurado o cliente da seguradora terá de fazer o abandono sub-rogatório do bem segurado sob pena de incidir na pecha do enriquecimento sem causa, já que plenamente ressarcido pela indenização securitária do bem perdido.

 

Sendo assim, integra a atividade inerente da seguradora receber em decorrência de ato unilateral da vontade do segurado o bem, denominado salvado nos casos de pagamento de indenização integral. Este é o entendimento consagrado nos atos normativos dos órgãos técnicos de seguro: o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, cuja competência está prevista no Decreto-Lei 73, de 1966.

 

O art. 73, do referido Decreto Lei n° 73, de 1966, determina que a seguradora não poderá exercer nenhum ato de comércio ou indústria só podendo operar com seguros. De outra parte, o art. 153, V da Constituição Federal, atribui competência privativa da União para criar impostos sobre operação de crédito, câmbio e seguros.

 

A competência dos Estados para tributar operações de circulação de mercadorias e serviços prevista no art. 152, II, da Constituição Federal, tem por pressuposto que o objeto da operação de que se tratar seja mercadoria.

 

Mercadoria, no dizer da doutrina (cf J. X. Carvalho de Mendonça), é algo que se fabrica ou se compra para revender com intuito de lucro. Quanto maior número de mercadorias o comerciante vende, maior o seu lucro (por causa dos ganhos de escala).

 

Na situação em exame, quanto maior numero de casos houver de indenização integral nos quais a seguradora só recupera no máximo 25% do que pagou, tanto menor o lucro ou maior o prejuízo da seguradora.

 

Acresce que a seguradora não compra o bem salvado, o adquire em face de um direito do segurado. Sendo assim, o salvado não configura mercadoria.

 

Esta questão foi exaustivamente analisada pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1332/RJ – MC. Como se verifica na RTJ 164 (p.73, n°14), o Ministro Sydney Sanches adotou a petição inicial nas suas razões de decidir o voto vencedor da ADI. Foi julgada procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1332 para excluir as seguradoras da relação dos contribuintes do ICMS da legislação do Estado do Rio de Janeiro.

 

Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal confirmou este entendimento ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°s. 1.390/SP – MC e 1.448/MG – MC.

 

Realmente, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n° 72.204, afastou-se do entendimento contrário ao contribuinte sobre a matéria que constava da sua súmula 152 e, como dito, no julgamento do REsp n° 73.552, revogou a mencionada Súmula.

 

Cumpre destacar que a decisão revogadora da referida súmula, se dera por unanimidade na Primeira Seção do STJ, e por uma questão de ordem levantada pelo Ministro José Delgado, em razão de julgamento realizado pela Seção no qual se decidiu que a operação de venda de bens sinistrados, por compor o contrato de seguro, não pode ser objeto de tributação por lei estadual, estando, por conseguinte, fora do alcance de incidência do ICMS. Até porque, repita-se à exaustão, a alienação de salvados de sinistros é apenas a liquidação de uma operação de seguro, fazendo parte dela, por isso não é mercadoria, tampouco é uma atividade habitual isolada das seguradoras que, por força legal, estão impedidas de exercer atividade industrial ou comercial, sujeitando a atividade de seguros à incidência do Imposto sobre Operações Crédito, Câmbio e Seguros (IOF), de competência privativa da União (CF, art. 153, V).

 

Posteriormente o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.648. Foram proferidos seis votos. Em cinco votos se deu provimento a Ação Direta de Inconstitucionalidade. No voto do Ministro Gilmar Mendes considerou-se inconstitucional a norma que incluía a seguradora como contribuinte do ICMS. O Ministro Nelson Jobim votou em sentido contrário. Os quatro demais votos proferidos consideraram inconstitucional a Lei mineira atacada na Ação Direta de Inconstitucionalidade e que incluía as seguradoras como contribuintes do ICMS, sem redução de texto, para afastar a interpretação que tribute a alienação de salvados pelas seguradoras.

 

As sociedades seguradoras, ao longo de toda essa demorada batalha judicial, ainda tiveram que se submeter a estratégias de alguns estados da federação que, na medida em que iam sendo derrotados, revogavam as suas leis objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, tornando assim prejudicadas as respectivas ADIs, editando outras semelhantes e, com isso, forçando as seguradoras ao ingresso de outras e sucessivas ações, mas nem por isso as mesmas esmoreceram na sua luta, tão certas que estavam e sempre estiveram quanto ao seu bom direito.

 

São essas, em apertada síntese, apenas algumas pitadas dos fundamentos introdutórios com os quais se pode concluir de imediato pela não incidência do ICMS na alienação de bens salvados de sinistros indenizados pelas sociedades seguradoras, não sem lembrar de que as mesmas, em diversos pleitos patrocinados pelo ESCRITÓRIO MIGUEZ DE MELLO ADVOGADOS e com especial e extraordinário empenho do admirável tributarista e advogado GUSTAVO MIGUEZ DE MELLO, estiveram beneficiadas por decisões que lhes garantem a não incidência do referido tributo, e, considerando o reflexo dessa não incidência no custo de seus seguros, a seguradora que não resistisse à cobrança de tal tributo estaria em situação competitiva desfavorável em relação às demais seguradoras.

 

Quando o STF editou sua já citada Súmula Vinculante nº 32/11, tudo levava a crer que não só as batalhas, mas a própria guerra teria, tolitur questio, terminado, quando, então, as sociedades seguradoras ainda tiveram que ingressar no STF, em data recente, com Reclamação tendo em vista algumas trincheiras que ainda resistiam dificultando o levantamento dos depósitos judiciais realizados ao longo do tempo das demandas processuais, pondo em dúvida o verdadeiro conceito de salvados de sinistros, como que se apenas as sucatas pudessem como tal ser assim consideradas, sobre o que permitimo-nos tecer as observações que seguem. Senão, vejamos.

O salvado de sinistro, e sua alienação por valor justo de mercado, há de ser interpretado como fator positivo na operação de seguros de dano e, por conseguinte, para o consumidor, porque, na ciência e na lógica, inclusive atuarial, do direito do seguro e da mutualidade que o caracteriza, quanto mais se restrinja o seu valor, maior será o preço do seguro, este que leva em conta para o seu cálculo atuarial a alienação dos salvados e por consequência o valor econômico dessa operação, que, pelo “Plano de Contas da Superintendência de Seguros Privados” é contabilizada como ressarcimento sub-rogatório, sem qualificação de receita.

Com efeito, no que tange aos salvados de sinistros de veículos automotores de via terrestre, o artigo 126 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, de redação simples, clara e objetiva, determina a baixa do registro de veículo irrecuperável ou definitivamente desmontado. Ocorre que os salvados de sinistros não são apenas os irrecuperáveis ou definitivamente desmontados, por isso nem todos suscetíveis de baixa do registro.

Não há confundir salvado de sinistro com sucata, sendo aquele gênero do qual esta é espécie. Nesta última hipótese sim, é que o artigo 126 do CTB determina a baixa no registro competente. Um exemplo de salvado de sinistro não sucateado é o dos veículos furtados ou roubados não encontrados no prazo contratual (em regra de trinta dias) contados da data em que o fato delituoso ocorreu e desde que comunicado às autoridades policiais, situação em que os mesmos são indenizados pelo valor integral segurado. Encontrados esses veículos depois do referido prazo em bom estado, eles são recuperados e, estando em condições de circulação, não carecem de baixa no órgão de trânsito. A toda evidência, não são eles ”irrecuperáveis ou definitivamente desmontados”, como revelam, à saciedade, as normas e práticas vigentes sobre a matéria (ver a Resolução CONTRAN nº 11/98).

Outro exemplo, bastante eloquente, é o dos salvados de sinistros cobertos por seguros no transporte de veículos zero quilômetro, pois basta uma mossa na lataria, ou leve arranhão, ocorrida no manejo do transporte, na carga ou na descarga, para se ter, contratualmente, uma “indenização integral” (antes denominada, impropriamente, de “perda total”), da qual o segurador se sub-rogará nos direitos desses salvados “zero quilômetro” e, nem por isso, terão sua baixa decretada ou perderão sua condição de veículo, já que, por óbvio, sucatas não são. E também aí, nos termos da referida Súmula Vinculante, deverão ser alienados pelo segurador sem a incidência do ICMS.

Mesmo os veículos sinistrados por colisão e que tenham sido objeto de indenização integral não são, necessariamente, irrecuperáveis, pois se trata de critério puramente contratual autorizado pelas normas da SUSEP (ver Circular SUSEP nº 269/2004), por isso o veículo indenizado por tal critério contratual, desde que não se transforme em sucata, é passível de recuperação com a segurança necessária, desde que tomadas as medidas que a legislação assim determina.

Ocorre que a perda financeira de mais de 75% do valor segurado, embora implique em obrigação de a Seguradora pagar a indenização integral prevista no contrato de seguro, não significa que o veículo sinistrado tenha se tornado, necessariamente, irrecuperável.

Em verdade, duas são as hipóteses possíveis, inconfundíveis entre si: 1ª) o sinistro pode causar a irrecuperabilidade do veículo, que então não mais será vendido como veículo, mas sim como sucata; ou 2ª) o sinistro não acarreta a irrecuperabilidade do veículo, que pode, então, ser como tal alienado.

Quando o veículo for irrecuperável sob o aspecto mecânico, o mesmo é vendido como sucata e não como veículo, sendo procedida à baixa definitiva no Departamento de Trânsito Estadual (DETRAN) mediante a entrega de toda a documentação original e das placas respectivas, bem como recorte do chassi. Com este procedimento, é impossível que um veículo indenizado como irrecuperável pela seguradora volte a circular.

Quando o veículo for recuperável do ponto de vista mecânico ou mesmo se não apresentar danos mecânicos de quaisquer espécies (por exemplo, veículo recuperado de roubo ou furto), a Seguradora comunica a transferência da propriedade ao DETRAN e procede à venda do mesmo no estado em que se encontra. Tal venda é realizada em leilões públicos ou por meio de revendedores especializados em veículos sinistrados, sendo totalmente transparente ao futuro comprador o estado físico do veículo sinistrado que está sendo comercializado. Para que o veículo sinistrado seja legalizado e possa voltar a circular, deve o comprador, após reparar – por sua conta – os danos eventualmente existentes, submeter o veículo a uma inspeção em órgão autorizado pelo INMETRO, que atestará a sua capacidade técnica de circulação e emitirá o competente Certificado de Segurança Veicular.

É exatamente o que determinam as normas vigentes, originadas do parágrafo único do artigo 10 da Resolução CONTRAN n.º 25, de 21 de maio de 1998:

“Em caso de danos de média e grande monta, o órgão fiscalizador responsável pela ocorrência, deverá comunicar o fato ao órgão executivo de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal, onde o veículo for licenciado para que seja providenciado o bloqueio no cadastro do veiculo.

Parágrafo único – Em caso de danos de média monta, o veiculo só poderá retornar à circulação, após a emissão do Certificado de Segurança Veicular – CSV, emitido por entidade credenciada pelo INMETRO.”

Portanto, verdade é que as seguradoras agem em consonância com o que determina o artigo 126 do CTB e demais normas legais aplicáveis, não havendo o mínimo de sustento na alegação de que as seguradoras procedem à venda de veículos recuperados de “perda total” (leia-se indenização integral), a preço de mercado, como se fossem novos.

Referidas disposições legais determinam tão somente que o proprietário de ”veículo irrecuperável” ou “definitivamente desmontado” requeira a baixa do registro, no prazo e na forma estabelecidos pelo CONTRAN, sendo vedada a remontagem do veículo sobre o mesmo chassi, de forma a manter o registro anterior.

Relevante frisar que tal se dá também no interesse dos consumidores, já que a alienação de veículos sinistrados é fator de redução do prêmio de seguro pago pelo segurado, pois o ressarcimento com a alienação dos salvados integra o cálculo atuarial do prêmio, tornando menos oneroso, em prol do grupo segurado, o custo do seguro, não sem lembrar de que seguro é coletividade, é mutualidade em que o coletivo predomina sobre o individual. Esta é a razão pela qual “o produto da venda dos salvados é contabilizado como recuperação de indenização da seguradora”, como diz, com acerto, a SUSEP (PARECER/GEACO/DECON/Nº9/18.05.1993), sabido que as indenizações integram o cálculo dos prêmios de seguro.

Em face da grande relevância do referido PARECER da SUSEP, vale transcrever o seu trecho que segue:

 “2. O eventual lucro obtido com a venda dos salvados é contabilizado como lucro operacional?

Resposta:

– O produto da venda dos salvados é contabilizado como recuperação de indenizações a segurados, conforme determina a Circular nº 027 de 28 de dezembro de 1988 do Superintendente da SUSEP.

– O lucro operacional não e divisível. Uma operação isolada de seguros envolveria risco insuportável. A rentabilidade da seguradora requer operação em determinada escala o que torna indivisível o lucro operacional. Se se quiser avaliar a rentabilidade (positiva ou negativa) de determinada operação de seguros, onde ocorreram sinistros com perda de mais 75% do valor segurado (são estas as perdas das quais resultam salvados), abstraindo-se o que foi acima dito, têm-se de somar os prêmios recebidos na operação de seguros de que se tratar, deduzir-se a parcela das despesas gerais correspondentes à operação, deduzir também o valor da indenização paga depois de reduzida do valor recuperado com venda do salvado. Com a indenização supera, em geral, de muito o valor dos prêmios em operações em que haja perda de mais de 75% do valor segurado, é evidente que a operação, isoladamente considerada, contém redução do lucro ou aumento do prejuízo da seguradora.

  1. Poderia ser contabilizado como lucro não operacional?

– Não poderia ser contabilizado como lucro não operacional por se tratar de ressarcimento de despesa relativa à operação de seguros que é a própria e única (Decreto-Lei nº 73, de 21.11.66, artigo 73) da seguradora.

…………………..

  1. A realização do objeto social da seguradora pressupõe a venda dos salvados? Não seria essa uma atividade correlata e imprescindível ao seu fim social? Seria economicamente viável a seguradora deixar de vender os salvados?

– A resposta a esta questão pressupõe uma análise sumária das operações de seguros em que surgem salvados. A regulamentação da atividade de seguro, fiscalizada pela SUSEP, atribui ao segurado o direito de receber, em certos casos, indenização superior ao dano ocorrido. Efetivamente, se, em decorrência de sinistro, determinado bem perde mais de 75% do valor segurado, a companhia de seguros é obrigada a pagar ao segurado 100% do valor segurado caso este, por ato unilateral que passa, assim, à propriedade da seguradora. Com a alienação do bem segurado, a companhia de seguros, em tese, recupera a parcela de indenização que haja superado o dano ocorrido.

– A alienação de salvados não representa uma atividade correlata da seguradora. A proibição legal do artigo 73 do Decreto-Lei nº 73 de 1966 tornou a exploração de atividade correlata pela seguradora juridicamente impossível. Com o objetivo de supervisionar o cumprimento desta disposição, e de favorecer a fiscalização da SUSEP, da alienação de salvados como elemento inerente à operação de seguros, a permitir à Fiscalização, aos credores e acionistas minoritários uma precisa apreciação do vulto dos negócios operacionais da Seguradora, a SUSEP determinou que elas contabilizassem da forma acima, os valores recebidos a titulo de ressarcimento como é o caso dos salvados. Para esclarecer a questão, diremos que quanto maior o número de fatos que gerem as verbas contabilizadas, como receitas decorrentes de prêmios de seguros, quanto maior o número de sinistros que gerem perdas de que resulte salvados, menor o lucro das seguradoras. Como o fim social da seguradora é a realização de operação de seguros, a alienação de salvados, justamente por ser imprescindível à referida operação, é que a integra.   

 

– Se a seguradora deixasse de alienar salvados, reduziria, sem dúvida, a liquidez da rentabilidade de seu patrimônio. Administrador prudente algum favoreceria este resultado. No caso das seguradoras, cujo patrimônio garante a segurança de bens do patrimônio público (e, em muitos casos garantem o patrimônio público), este desvio dos objetivos da empresa deve ser combatido.

 

A venda de salvados miniminiza o custo do seguro, na medida em que reduz o valor (vide item 02) das indenizações pagas.

  1. os salvados constituem mercadorias? Tem valor comercial?

 

– Os salvados não são produzidos nem comprados pelas seguradoras, pelo contrário, são adquiridos sub-rogatoriamente ato unilateral da vontade do segurado, portanto não são mercadorias, até porque, não podem constituir objeto do comércio das seguradoras (Decreto-lei nº 73, de 1996, artigo 73).

 

  1. Qual o intuito da seguradora ao vender o salvado?

 

Resposta:

 

Conforme resposta do item 05, o intuito da seguradora, ao vender o salvado, é se ressarcir das despesas de indenização, o que atuarialmente é considerado para efeito do cálculo do prêmio do seguro (…)”. São nossos os grifos.

 

Realmente, aqui e acolá, em qualquer parte do mundo, toda quebra de padrão ao equilíbrio que há de presidir o contrato de seguro e sua operação como um todo, tanto no caso de condenação da seguradora a pagar indenização não prevista ou em desacordo com os riscos cobertos e com as condições contratuais, como também na alienação de salvados esperada, fatalmente terá ela que despender quantia não provisionada, gerando desequilíbrio na sua malha operacional e obrigando-a, como gestora da mutualidade, a aumentar o custo da garantia. E o impacto inevitável é o de repassar esses custos aos segurados.

Por outro giro, caberia aqui também registrar que nenhuma abusividade existe na cláusula de alienação de salvados muito pelo contrário, tem sido entendimento copioso do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que a abusividade não basta ser alegada, há de ser cabalmente comprovada. Basta, para não citar outras, conferir com a decisão unânime proferida no REsp nº 1.216.673-SP (2010/0184273-9) de junho de 2011, de relatoria do eminente Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA que julgou improcedente ação civil pública em que se pretendia taxar de abusiva cláusula de contrato regulado pela SUSEP sem se dar ao trabalho de demonstrar a ilicitude. E dentre os fundamentos da decisão, um deles foi justamente o de que “não pode o juiz, com base no CDC determinar a anulação de cláusula contratual expressamente admitida pelo ordenamento jurídico pátrio se não houver evidência de que o consumidor tenha sido levado a erro quanto ao seu conteúdo. No caso concreto, não há nenhuma alegação de que a recorrente tenha omitido informações aos consumidores ou agido de maneira a neles incutir falsas expectativas. Deve ser utilizada a técnica do “diálogo das fontes” para harmonizar a aplicação concomitante de dois diplomas legais ao mesmo negócio jurídico…

Acresça-se que o próprio CDC admite cláusulas restritivas ao direito do consumidor (art. 54, § 4º), salvo se abusivas.  E abusiva não é, absolutamente, a prática decorrente da “cláusula de indenização integral” e consequente alienação dos salvados de sinistros pelo valor econômico que representa, jamais sempre como sucata, porque, consoante o seu artigo 51: (I) não coloca o consumidor em desvantagem exagerada; (II) não é incompatível com a boa-fé ou a equidade; (III) não ofende princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; (IV) não restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato de tal modo a ameaçar o seu objeto ou o equilíbrio contratual; (V) não é excessivamente onerosa para o consumidor considerando a natureza e conteúdo do contrato ou o interesse das partes e da operação securitária. Pelo contrário, protege os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence.

 

Verdade inconcussa, portanto, é a de que os veículos alienados pelas Seguradoras não são por elas recondicionados, mas transferidos aos adquirentes no estado em que se encontram (estado em que o veículo é adquirido, obrigatoriamente, pela Seguradora, por abandono sub-rogatório, já com perda financeira de mais de 75% do valor segurado), indenizando-o pelo valor integral estabelecido no contrato de seguro, mas não significando que todo o veículo com danos acima de 75% se encontre ou se mostre irrecuperável, pois se trata de uma “perda total convencional” (vale repetir, hoje mais apropriadamente denominada “indenização integral”), apenas para fins de indenização do sinistro, jamais como corolário da baixa dos veículos sinistrados.

A alienação de salvados, como dito, é simplesmente um ato de liquidação de sinistros, pensada e praticada também em benefício dos consumidores de seguro porque, adrede, levada à conta do prêmio, por isso os desvios indevidos do seu valor, de veículo automotor para sucata, refletirão, como se viu ampla e repetidamente, no custo do seguro a dano do consumidor.

Em fundamento a essa afirmação basta atentar para a leitura do que já dizia, exemplarmente, o Código Comercial, quer quanto ao abandono (título XII), como à liquidação da coisa avariada:

“Art. 753 – É lícito ao segurado fazer abandono dos objetos seguros, e pedir ao segurador a indenização da perda total nos seguintes casos:

……………………….

III – perda total do objeto seguro, ou deterioração que importe pelo menos três quartos do valor da coisa segurada.

Art. 773 – Os efeitos avariados serão sempre vendidos em público leilão a quem mais der, e pagos no ato da arrematação; e o mesmo se praticará com o navio, quando ele tenha que ser vendido segundo as disposições deste Código; em tais casos o juiz, se assim lhe parecer conveniente, ou se algum interessado o requerer, poderá determinar que o casco e cada um dos seus pertences se vendam separadamente.”

A liquidação dos salvados, em se tratando de seguros terrestres, obedece a essa mesma sistemática, guardadas as peculiaridades de cada operação, que é adotada pela já antes citada Circular SUSEP nº 269/04.

De fato, se os danos que atingiram o veículo o tornam efetivamente imprestável à circulação, as Seguradoras, imediatamente, procedem à baixa junto aos órgãos de trânsito, declarando-o como veículo com “perda total real irrecuperável”, podendo ser alienadas somente suas peças. Por outro lado, veículos roubados ou furtados, mas recuperados pelas Seguradoras com perda financeira contratual de mais de 75%, são classificados também como “perda total” para fins de indenização integral, mas nem por isto sem condições de circulação no trânsito, não carecendo de baixa no órgão de trânsito.

Demais porque, transformar veículos recuperáveis em “bens fora de comércio”, é pretensão que viola o direto constitucional de propriedade das sociedades seguradoras e, por conseguinte, da mutualidade por elas gerida.

 

Oportuno sempre realçar, sem a pecha da repetitividade, que o direito ao ressarcimento sub-rogatório conferido ao segurador na alienação de salvados reflete positivamente no cálculo do prêmio, em benefício do consumidor de seguro. A alternativa de se deixar o salvado com o segurado seria sem dúvida para ele a solução menos vantajosa, como menos vantajoso seria igualmente o aumento no custo do prêmio acarretado por qualquer cerceamento ao segurador na alienação dos salvados, como, por exemplo, ter que transformar em sucata um veículo técnica e juridicamente recuperável.

 

Já determinava a legislação federal anterior (Lei 8.722/93 e Decreto 1.305/94), que não teria sido revogada pelo novo Código de Trânsito Brasileiro – posto que legislação mais específica sobre o tema e que imprime os conceitos de veículo irrecuperável a que o Código de Trânsito não desceu tanto aos detalhes para fazê-lo -, a obrigatoriedade de baixa dos veículos considerados pela seguradora como irrecuperáveis e que, como tais, deveriam ser comercializados como SUCATA.

 

A Lei n.º 8.722/93, ao tornar obrigatória a baixa de veículos, vendidos ou leiloados como sucata, já conferia ao Poder Executivo, ouvido o CONTRAN, a tarefa de regulamentar a matéria, da qual se desincumbiu através, primeiramente, do Decreto n.º 1.305, de 09/11/94, que logo no pórtico de seu artigo 1º assim preceituou, in verbis, para definir o veículo irrecuperável visando sua baixa obrigatória como sucata:

 

“Para efeito de aplicação deste decreto, considera-se irrecuperável todo veículo que em razão de sinistro, intempéries ou desuso, haja sofrido danos ou avarias em sua estrutura, capazes de inviabilizar recuperação que atenda aos requisitos de segurança veicular, necessária para circulação nas vias públicas.”            

 

O mesmo Decreto, também já elencava as pessoas ou entidades que devem requerer essa baixa, dentre elas, o proprietário, o segurador sub-rogado, o leiloeiro, a autoridade etc.

 

Realmente, na aplicação do vigente Código de Trânsito Brasileiro, ao referir-se a “perda total”, há de se buscar subsídios na lei especial por ele recepcionada, que imprime o conceito de veículo irrecuperável, por que só este será suscetível de ser retirado do mundo jurídico, sob pena de se estar violando o direito de propriedade fundamentalmente assegurado pela Constituição Federal.

 

Todo veículo, em princípio, pode ser considerado recuperável, por isso um bem tecnicamente recuperável não pode ser tisnado como bem fora de comércio, sofrendo uma drástica redução de sua condição de veículo automotor para simples sucata, como que a sofrer uma capitis deminutio máxima.

 

Por questões meramente negociais e comerciais, segurador e segurado podem, perfeitamente, ajustar no contrato de seguro, como ajustado está, o pagamento do sinistro pelo seu valor de mercado, ou pelo valor declarado no contrato, a título de indenização integral (perda total construtiva, hoje denominada mais corretamente indenização integral, que se contrapõe à perda total real – ver Circular SUSEP nº 269/04), cumprindo a função indenitária do contrato de seguro de dano, considerando a melhor comodidade do segurado já que o custo da recuperação de um veículo sinistrado poderia ser maior ou menor em função dos critérios de preço e condições adotados por diferentes oficinas recuperadoras de veículos.

 

Outro fosse o entendimento, estaria ele em frontal desrespeito a princípios fundamentais esculpidos na Carta Maior, além do direito de propriedade como dito, outros como o da isonomia, posto que se estaria tratando de forma diferenciada os proprietários sem seguro e as seguradoras enquanto proprietárias sub-rogadas (estas que são minoria em relação aos proprietários de veículos sem seguro), sem contar que tal outro entendimento, equivocado é bem verdade, também repercutiria a dano do consumidor, porque na medida em que os salvados de sinistros sejam considerados bens fora do comércio, o preço do seguro iria aumentar consideravelmente, já que a possibilidade de ressarcimento dos salvados, repita-se mais uma vez, integra o cálculo atuarial do prêmio.

 

Em se conjugando todos os dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, se terá o claro entendimento de que a “perda total” ali referida há de estar inexoravelmente associada ao conceito de veículo efetivamente irrecuperável, conforme a legislação especial por ele recepcionada, jamais nas condições contratuais e negociais estabelecidas entre segurado e segurador, no bojo de um contrato particular e sob o pálio das autoridades normatizadoras e de controle dessas atividades (CNSP e SUSEP).

 

Daí se permite entender que a “perda total” ali referida não pode nem deve ser aquela que determine a real irrecuperabilidade do veículo, segundo o conceito emprestado pela lei específica, conforme antes mencionado, razão pela qual não será o jargão, o dialeto do segures utilizado em um contrato particular de seguro – tampouco o critério previsto no contrato e autorizado pelas normas da SUSEP para fins de caracterização da indenização integral securitária – reservado entre as partes, que determinará a irrecuperabilidade do veículo segurado, independentemente da forma como o sinistro será liquidado, de comum acordo com o segurado.

 

Por isso a já conhecida perda total construtiva, ou perda total recuperável, ou ainda indenização integral, não pode, pelo fato de a seguradora indenizar o segurado pelo valor de mercado do veículo, ou pelo valor ajustado na apólice, definir que o salvado havido por abandono sub-rogatório possa, só por isso, ser considerado irrecuperável. Só mesmo uma vistoria técnica ou pericial poderia quebrar a presunção de recuperabilidade do veículo sinistrado.

 

Não se olvide, ademais, que a própria legislação que rege a operação de seguro, desde há muito considera a distinção entre perda total construtiva e perda total real, esta sim, determinante da baixa do veículo salvado como sucata, enquanto que aquela não necessariamente.

 

Com efeito, dispõe, in literis, a recente Súmula Vinculante nº 32/11 do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que

 

“O ICMS NÃO INCIDE SOBRE A ALIENAÇÃO DE SALVADOS DE SINISTROS PELAS SEGURADORAS”. (DOU de 24/02/11, página 1).

 

Posta assim a Súmula, de poder vinculante, importante para a sua eficácia que se pesquise o verdadeiro conceito de salvado de sinistro, tendo em vista não estar, por óbvio, inserido no seu verbete.

 

Realmente, como de outra forma não poderia ser, os salvados de sinistros adquiridos obrigatoriamente pela seguradora por abandono sub-rogatório (art. 12 da Circular SUSEP nº 269/04), assim se define independentemente do estado em que se encontrar em razão do sinistro, pois segundo a norma regente (Circular SUSEP nº 269/04), o conceito de “perda total”, ou “indenização integral” pela nova dicção em vigor, se caracteriza não necessariamente pelos danos materiais no próprio bem em si, mas pelos “prejuízos resultantes de um sinistro que atingirem ou ultrapassarem a quantia apurada a partir da aplicação de percentual (igual ou superior a 75%) determinado sobre o valor contratado” (art. 7º da Circular SUSEP nº 269/04). É dizer, o prejuízo patrimonial sofrido pelo segurado causado pelo sinistro, que no caso de roubo é de 100%, independentemente de o bem em si não ter sofrido dano material algum e por isso recuperado intacto.

 

Até porque, objeto do contrato de seguro de dano ou de coisa, nos exatos termos do artigo 757 do Código Civil brasileiro, não é a própria coisa (o veículo, por exemplo, no seguro de auto), mas o interesse legítimo do segurado sobre esse bem, que nada mais é do que a relação lícita, de valor econômico, sobre o bem (bem aqui considerado no seu sentido mais amplo) e, quando essa relação se encontra ameaçada por um risco, estaremos diante do interesse legítimo segurável. Daí por que o contrato de seguro não encerra obrigação de fazer, mas de dar ou de pagar quantia certa em dinheiro, nos termos do art. 776 do Código Civil, o que faz do seguro de dano um contrato que tem por apanágio o princípio indenitário, cuja satisfação da necessidade eventual do segurado é financeira e não a te ter o próprio bem de volta, isto é, uma indenização que lhe permita adquirir, querendo, outro bem equivalente.

 

Não é por outra que o Dicionário de Seguros da FUNENSEG, página 193 de sua última e recentíssima 3ª edição, de novembro de 2011, revista e ampliada, manteve a seguinte definição de SALVADOS DE SINISTROS:

 

“São os objetos que se consegue resgatar de um sinistro e que ainda possuem valor econômico. Assim são considerados tanto os bens que tenham ficado em perfeito estado como os que estejam parcialmente danificados pelos efeitos do sinistro”.

 

E esse conceito tem o aval do maior jurista de seguros do País, assim chamado de o nosso jurista maior do direito securitário. Refiro-me, obviamente, ao Dr. PEDRO ALVIM que, em escólios de sua multiconsagrada obra, “O Contrato de Seguro”, Forense Rio, 3ª edição, página 420, assim se expressou, sem nenhum rebuço de dúvidas:

 

“Dá-se o nome de salvados aos remanescentes de sinistro, que abrange todos os bens segurados que ficaram em perfeito estado e aqueles que sofrerem danos, mas tenham ainda algum valor econômico”.

 

Não sem repisar que a possibilidade de o segurador se sub-rogar nos direitos sobre os salvados é levada em conta no cálculo atuarial do prêmio, reduzindo o valor da prestação do segurado, portanto, em benefício da mutualidade, da coletividade da qual faz parte cada segurado. Razão pela qual tal conceito não passou despercebido do Dicionário de Seguros, de ALEXANDRE DEL FIORI, da editora Manual Técnico de Seguros, edição 1996, que, à página 149, assim se expressou:

 

“SALVADOS – Termo utilizado para definir bens com valor econômico que escapam, sobram ou se recuperam após um sinistro, pertencentes ao segurador mediante indenização paga ao segurado e que serão alienados para minimizar os valores pagos”.

 

Enfim, indubitavelmente, salvadas são as coisas com valor econômico que escapam ou sobram do sinistro, inteiros ou danificados, seja por colisão, incêndio ou roubo, que são formas de prejuízos causados pelo sinistro. Daí, a alienação desses bens salvados de sinistros e assim adquiridos por abandono sub-rogatório pelo segurador, por força da Súmula Vinculante nº 32 do STF, estejam eles em perfeito estado ou não, não poderão sofrer a incidência do ICMS, porque, em ambos os casos, não serão, para o segurador, considerados mercadoria.

É esse, em apertada síntese, o resumo de nosso entendimento, sub censura dos doutos.

 

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