Jurisprudência comentada. Impenhorabilidade do seguro de vida. Decisão do TJ-RS que segue a esteira de orientação do STJ

Por RICARDO BECHARA SANTOS

 

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO CAUTELAR DE ARRESTO. ART. 649, ix, cpc/73. SEGURO DE VIDA. IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA. Por meio do arresto busca-se tornar indisponíveis bens que possam se sujeitar à penhora em execução futura. Conforme art. 649, IX, do CPC/73, o seguro de vida é absolutamente impenhorável, impondo-se a manutenção da ação cautelar de arresto. APELAÇÃO DESPROVIDA (APELAÇÃO Nº 70071415335. DÉCIMA CÂMARA CÍVEL. RELATOR DESEMBARGADOR TULIO DE OLIVEIRA MARTINS. Julgado em 3/11/16).

 

Trata-se de decisão unânime do TJRGS, que manteve sentença de primeiro grau que julgou improcedente ação cautelar de arresto cujo requerente objetivava a penhora de capital segurado em contrato de seguro de vida, refutando arguição da apelante de que tal seguro não teria natureza alimentar sob o pálido argumento de que os réus são pessoas plenamente capazes, como que se a capacidade da pessoa pudesse descaracterizar a função alimentar de um bem ou de um provento seu. Fosse assim, até o salário, ou proventos de aposentadoria dentre outros listados na lei processual como impenhoráveis, perderia o caráter alimentar para o trabalhador só pelo fato de o mesmo possuir outros rendimentos, ganhar bem e gozar de capacidade plena, não sem lembrar de que o seguro de vida, consoante a melhor doutrina e jurisprudência prestigiosa dos tribunais, tem sim natureza alimentar e, mesmo que não a tivesse, aduza-se apenas para argumentar, a lei determinou que assim o fosse e de forma cogente. A impenhorabilidade, pois, incide sobre a natureza do bem (bem de família, por exemplo), quantia, valor ou rendimento, presente ou futuro, independentemente de quem os aufira.

No caso julgado, a apelante pretendia arrestar capital segurado deixado pela genitora dos réus em face de sua morte e coberto por seguro de vida, tendo o Tribunal rejeitado tal pretensão com espeque no artigo 649, IX do CPC de 73, reproduzido pelo correspondente dispositivo do NCPC de 2015 (art. 833, VI), segundo o qual o seguro de vida é absolutamente impenhorável, por isso que, cuidando-se de restrição absoluta, cogente e proveniente de lei, inadmite relativização.

Diga-se de passagem, que mesmo a despeito de o correspondente dispositivo do NCPC/15 não haver reproduzido no caput do artigo 833 a expressão “absolutamente”, antes cunhada no caput do artigo 649 do CPC revogado, não significa dizer que a impenhorabilidade dos interesses, bens e valores listados no dispositivo, possa de algum modo ser relativizada, por isso a plêiade de cultos juristas que redigiram o NCPC assim o fez por reconhecer tratar-se de uma redundância, considerando que tais valores são ou não são penhoráveis. Assim como não existe “mulher mais ou menos grávida”, inexistem bens ou valores mais ou menos, ou relativamente impenhoráveis, razão pela qual basta estarem como tais listados na lei para terem o selo da impenhorabilidade. O que fizeram os autores do NCPC mais não foi do que corrigir um vício de linguagem, excretando, assim, um excesso do texto do dispositivo legal em causa.

E para deixar estreme de qualquer dúvida a posição adotada pela decisão em comento, o seu ilustre Relator trouxe à colação outros tantos julgados que espelharam o mesmo entendimento, tais como revelam os seguintes precedentes do mesmo Tribunal de Justiça, mostrando inclusive não ser taxativa a lista dos impenhoráveis, tanto que pode alcançar verba indenizatória de seguro de dano, como a do DPVAT:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. EXECUÇÃO. PENHORA NO ROSTO DOS AUTOS. SEGURO DE VIDA. IMPENHORABILIDADE. DECISÃO RECORRIDA REFORMADA. PRECEDENTES. Muito embora possível a penhora no rosto dos autos para resguardar eventual direito creditício, ainda que em discussão, nos termos do art. 860 do CPC/2015, por outro lado, o art. 833, VI, do mesmo diploma legal, arrola entre os bens absolutamente impenhoráveis “o seguro de vida”. Logo, impositiva a reforma do entendimento questionado com a consequente cassação do deferimento do pedido formulado pela parte agravada, eis tratar-se de seguro de vida o bem cuja constrição é pretendida. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70069395960, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Guinther Spode, Julgado em 18/07/2016).

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EMBARGOS À PENHORA. IMPENHORABILIDADE DAS VERBAS ORIUNDAS DE SEGURO DE VIDA. Inovação recursal. Em atendimento ao princípio da eventualidade, competia ao réu, quando da apresentação da contestação, ter suscitado todas as matérias relativas à sua defesa e que pudessem conduzir à improcedência do pedido inicial. Mérito. As verbas provenientes de reembolso de diárias hospitalares oriundas de seguro de vida contratado pelo executado incluem-se no conceito de legal de seguro de vida, já que se originaram de uma das cláusulas da contratação, não se sujeitando, portanto, à penhora. Assim, inarredável a incidência do artigo 649, inciso VI, do Código de Processo Civil, pois absolutamente impenhoráveis os valores em discussão, por expressa disposição legal. APELAÇÃO PARCIALMENTE CONHECIDA E DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70069228526, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Heleno Tregnago Saraiva, Julgado em 16/06/2016).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. PENHORA NO ROSTO DOS AUTOS. CRÉDITO PROVENIENTE DE SEGURO DE VIDA. IMPENHORABILIDADE. A indenização decorrente de seguro de vida é absolutamente impenhorável. RECURSO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70068784354, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Sérgio Scarparo, Julgado em 19/05/2016).

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À PENHORA. VERBA INDENIZATÓRIA ORIUNDA DO SEGURO DPVAT. IMPENHORABILIDADE. I. A jurisprudência deste e. Tribunal é assente no sentido de que os valores oriundos de indenização do DPVAT se assemelham àqueles atinentes a seguro de vida, nos termos do art. 649, VI, do CPC. II. Com base em tal consideração, imperativa a manutenção da decisão recorrida, a qual determinou a desconstituição da penhora realizada no rosto dos autos do processo n° 1120091429-6-. III. Sucumbência mantida. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70062520440, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ergio Roque Menine, Julgado em 12/02/2015).

 

Com efeito, o próprio STJ assim já decidiu em relação à impenhorabilidade do PGBL e, a fortiori, em relação ao seguro de vida, seja na modalidade tradicional seja na do VGBL, como se verá passos mais adiante.

E diga-se de logo, que não é o fato de o segurado ou participante ter direito ao resgate, nos casos admitidos por lei, que esse direito, personalíssimo, possa por si só alforriar terceiros para um resgate forçado por meio de penhora, avançando em ativos gravados e vinculados, lastros que são de um plano de aposentadoria no caso da previdência privada, ou de seguro de vida para prover a subsistência do segurado ou participante, seu beneficiário ou dependente. Assim como inadmissível ao credor avançar em valores já recebidos pelos beneficiários com vistas a penhorá-los. Seja, portanto, o regime adotado de repartição simples seja de acumulação, para o seguro de vida ou plano de previdência privada, a impenhorabilidade e inalienabilidade dos valores, dos capitais segurados e dos ativos se impõem, ipso facto e ipso jure. Sejam os benefícios do seguro presentes, próximos ou futuros, ou quer se encontre o segurado ou participante em fase de acumulação ou de benefício no plano traçado de aposentadoria ou de capital segurado.

Por que razões também o legislador, ao editar o Código de Processo Civil, tanto o velho quanto o novo, respectivamente em seus artigos 649 (Código de 73) e 833 (Código de 2015), teria incluído na relação dos bens absolutamente impenhoráveis, o SEGURO DE VIDA, os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os MONTEPIOS (leia-se aqui que os montepios são ancestrais dos atuais planos de previdência privada complementar), e todos os demais destinados ao sustento e subsistência do devedor e de sua família etc.? Vê-se que no seu conjunto, a lei adjetiva intencionou proteger os benefícios e beneficiários dos seguros de vida e de planos de previdência, tanto em ato quanto em potência.

Dentre as razões para tal previsão legal, pode-se destacar, obviamente, o caráter prospectivo, alimentar, previdenciário e providenciário – prever para prover – tanto do seguro de vida quanto, pelas mesmas ou até maiores razões, dos planos de previdência privada. Ceifar, pois, os provisionamentos do seguro de vida e dos planos privados de aposentadoria, é retirar do homem previdente, a perspectiva alimentar, previdenciária, cujo objetivo é, sem dúvida, o sustento, inclusive o diferido, de sua própria subsistência e de sua família, justo nos momentos mais difíceis da vida, na velhice, por exemplo, quando o homem, já alquebrado pela vergasta do tempo, tem drasticamente diminuídas sua capacidade de trabalho, suas condições de saúde, e suas rendas enfim. Por isso é que a lei protege esses valores comprometidos, seja de acumulação seja de benefício, contra investidas de terceiros, ainda que credores, mas de dívidas exógenas, estranhas.

A impenhorabilidade, pois, no caso, tem tudo a ver com o direito fundamental e constitucional da dignidade da pessoa humana, este que por sua vez tem a ver com a interpretação dos direitos humanos, significando buscar equilíbrio entre o direito natural e o direito positivo, tendo-se como fundamento a dignidade da pessoa e, daí, se extrair a norma mais favorável à proteção da sua dignidade ao caso concreto, sendo óbvio que entre o direito de um terceiro credor e o direito do segurado ou participante de plano previdenciário, o deste há de prevalecer. O respeito à dignidade da pessoa humana se busca tendo em vista ser ela o valor fundamental da ordem jurídica, sendo, portanto, a fonte das fontes do direito, irrenunciável e cimeiro de todo modelo constitucional, pois o homem e sua dignidade são a razão de ser da sociedade, do Estado e do Direito.

Note-se que o legislador, ao editar a lei adjetiva, incluiu de forma explicita o seguro de vida incondicionalmente como impenhorável, sem qualquer ressalva sobre tal ou qual modalidade, regime ou variação desse seguro ou sobre em que estágio se encontre (acumulação ou benefício) e, implícita senão também explicitamente, os planos previdenciários de semelhante finalidade. Até porque, a operação do seguro de vida não raro é feita em conjunto, tanto assim que seguradoras de vida operam simultaneamente também planos de previdência privada complementar aberta. Assim é que, qualquer seguro de vida, seja constituído sob o regime de repartição simples, seja sob o regime de acumulação ou capitalização, é absolutamente impenhorável por força de norma legal expressa, assim como os planos de previdência privada, inclusive o PGBL, quanto mais os planos tradicionais, por sua inegável identidade com o seguro de vida.

A propósito, bem compreendendo a razão de tal impenhorabilidade, o TST, em data recente, proferiu decisão de grande valia, conforme noticiada em 1º/07/15, eis que, como instância máxima da justiça trabalhista, afastou a penhorabilidade de plano previdenciário em detrimento de crédito trabalhista. Senão vejamos o resumo da decisão noticiada, tomada por unanimidade dos Senhores Ministros com a seguinte manchete: “TST afasta penhora sobre plano de previdência privada para pagamento de dívida trabalhista.”

“A Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho cancelou a penhora sobre valores depositados em plano de previdência privada de um sócio da Dow Right Consultoria em RH Ltda., que haviam sido bloqueados para o pagamento de verbas trabalhistas devidas a um empregado da empresa…

Ao examinar o recurso ordinário do sócio, que pedia a liberação da verba bloqueada sustentando a impenhorabilidade absoluta do plano de previdência privada, a relatora, ministra Maria Helena Mallmann, observou que o inciso IV do artigo 649 do Código de Processo Civil (CPC) considera impenhoráveis os vencimentos, soldos, remunerações, pensões ou quantias destinadas ao sustento do devedor e de sua família. No mesmo sentido, a jurisprudência do TST (Orientação Jurisprudencial 153 da SDI-2) vem concedendo a segurança para sustar esse tipo de bloqueio.

A ministra esclareceu que o inciso VI do mesmo artigo do CPC, por sua vez, assegura impenhorabilidade ao seguro de vida, que visa à garantia de renda razoável no futuro, e não pode também, por isso, ser equiparado a aplicações financeiras comuns. Equiparar planos de previdência privada, para fins de impenhorabilidade absoluta, com proventos de aposentadoria, salários e seguro de vida prima pela observância do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma vez que a verba também possui o caráter de subsistência do devedor, afirmou…”

Quer me parecer, portanto, ante a natureza alimentar, previdenciária, prospectiva, do seguro de vida e, por mais forte razão ainda, dos planos de previdência privada, a penhora de seus valores e ativos, qualquer que seja a sua fase, atenta contra a letra e o espírito da lei, não só da lei processual, adjetiva, como também da lei substantiva (DL 73/66; LC 109/01, LC 126/07). Bem assim do Código Civil que, em seu artigo 794, por analogia aplicável ao contrato de previdência privada, estabelece que no seguro de vida o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito.

A intangibilidade do seguro de vida e dos planos de previdência privada é de tal modo forte no seu caráter previdenciário, que faz a diferença entre uma pessoa que faleça com dívidas sem realizar um seguro de vida e ou plano previdenciário, daquela outra que, embora com as mesmas dívidas, teve a previdência de substituir no todo ou em parte o seu patrimônio realizando o seguro e ou plano de previdência. O não previdente – lembra PEDRO ALVIM ao comentar o art. 794 em seu “O Seguro no Novo Código Civil”, Forense, Rio – terá seu patrimônio embargado pelos credores e os herdeiros só receberão o que restar depois de satisfeitas as obrigações do morto, enquanto que em relação ao que teve a previdência de substituir o seu patrimônio contratando um seguro de vida ou plano previdenciário, sua família receberá integralmente a soma segurada, sem que possam os credores reclamá-la para pagamento de seus créditos. Vale dizer, o seguro de vida, ou o plano previdenciário, pode e deve ser um remanso seguro contra os credores do segurado ou participante ou de seus beneficiários, quando se coteja, de um lado, o postulado segundo o qual a garantia dos credores é o patrimônio do devedor e, de outro, a premissa de que o seguro de vida ou plano de previdência não faz parte desse patrimônio, mas uma obrigação assumida pelo segurador, por exemplo, de pagar o capital a um terceiro, beneficiário do segurado, cuja condição era a morte do instituidor.

Vale trazer à colação, jurisprudência do STJ representada pela decisão tomada por sua 2ª Seção, em EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA no REsp nº 1.121.719-SP, em que foi Relatora a eminente Ministra NANCY ANDRIGHI, pela qual a Corte imprimiu como regra a natureza alimentar da verba do PGBL, quanto mais se se tratasse de um plano de previdência privada complementar tradicional, ou mesmo de um seguro de vida. Com tal decisão, o STJ, em sede de uniformização de jurisprudência, impede penhora de PGBL para pagamento de dívidas, manifestando-se no sentido de que o saldo de fundo de previdência privada complementar na modalidade Plano Gerador de Benefícios Livres (PGBL) não pode ser penhorado para o pagamento de dívidas. Os Ministros entenderam que o PGBL equivaleria a valores depositados a título de aposentadoria, elencada no artigo 649 do Código de Processo Civil como impenhorável. Reconheceram mais que na aplicação em PGBL, o participante realiza depósitos periódicos, que se transformam em uma reserva financeira. Esses valores podem ser resgatados de forma antecipada ou recebidos em data definida, em uma única parcela ou por depósitos mensais. Não obstante, ao analisar o funcionamento desse fundo de previdência, a Relatora, entendeu que “em qualquer hipótese, não se pode perder de vista que, em geral, o participante adere a esse tipo de contrato com o intuito de resguardar o próprio futuro ou de seus beneficiários”, concluindo que a penhora caracterizaria medida por demais grave, devendo por isso ser afastada. Para o STJ, o participante adere a esse tipo de contrato com o intuito, em regra planejado, de resguardar o próprio futuro ou o de seus beneficiários, garantindo o recebimento de certa quantia, que julga suficiente para a manutenção futura do padrão de vida.

 

Ressalte-se, por fim, a importância dessa jurisprudência que ora se comenta, já que a impenhorabilidade do seguro de vida é fator por demais importante e positivo para sua comercialização, porque, além de preservar os objetivos do seguro, prospectivo, alimentar e provedor, mostra ao segurado, enquanto consumidor e instituidor, que o capital por ele investido estará a salvo da sanha de terceiros credores, a não ser que, em sua outra vertente de finalidade o próprio segurado, deliberadamente, o destine à garantida de uma obrigação ou de uma dívida (CCb, artigos 791 e 794: recorde-se que o primeiro estabelece que o seguro de pessoa pode ser oferecido como garantia de uma obrigação; o segundo que, para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado).

O seguro de vida, afinal, não raro representa verdadeira “carta de amor”, escrita pelo segurado a um ente querido (beneficiário), para por este ser lida em ocasião da morte do pranteado “missivista” e instituidor.

É esta a síntese de meus comentários.

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