O artigo 770 do Código Civil e a Covid-19. A precificação da garantia do risco no contrato de seguro

RICARDO BECHARA SANTOS

Não seria demasiado nem tardio lembrar que, em tempos de pandemia, passe pela cabeça de algum segurado, por exemplo no seguro de automóvel, que o seu risco sofrera considerável redução em ralação ao incialmente contratado, em decorrência de longo período de isolamento social – vertical ou horizontal – determinado pelas autoridades públicas (fato do príncipe), de modo que, nesse período, seu automóvel permaneça inerte em sua garagem. Fiado nisso, resolve pleitear a redução do prêmio ou a resolução do contrato, usando como motivo declarado o fato de enquanto isso, não irá circular com o veículo em via pública, palco principal de ocorrência de sinistros. Embora não ache seja essa uma boa ideia do segurado ante a natureza aleatória do contrato de seguro, não me furto em expor a minha opinião sobre o tema, como segue.

Penso que a norma do artigo 770[1] do CC tem duas vertentes independentes, a derrogação do contrato ou a redução do prêmio. A diminuição não considerável do risco só reduzirá o prêmio se assim for pactuado. Por redução do risco, deve-se entender como a diminuição da probabilidade de incidência ou do potencial danoso.  Já a diminuição considerável do risco, por motivo alheio à vontade do segurado ou mesmo por efeito de sua ação própria, o permitiria resolver unilateralmente o contrato ou, a seu juízo, postular a revisão do prêmio correspondente à atenuação.  Aqui não se tata de atrofia ou ablação do interesse legítimo do segurado, que é o objeto do contrato de seguro, por isso a solução só poderia resultar na redução do prêmio por resolução parcial do contrato, que perdera parte do objeto.

Assim como, de outro lado, em parcial simetria com o regime de agravamento do risco – em caso tal se intencional o agravamento – o segurado perde o direito à garantia, ou seja, ao próprio seguro (art.768[2]) e, se não intencional, é obrigado a comunicar ao segurador, tão logo saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia se provado que silenciou de má fé (art. 769[3]), tendo o segurador, em quinze dias do aviso de agravação sem culpa do segurado, que cientificá-lo de sua decisão sobre a resolução do contrato cuja eficácia – caso seja essa a opção do segurador – se dá após 30 dias, devendo no caso restituir a diferença do prêmio proporcional ao período restante de vigência. Vale ressaltar que não existe propriamente um regime simétrico, porque, segundo os artigos 768 e 769 do Código, a agravação do risco pelo segurado fulmina, tollitur quaestio,  seu direito à garantia, ainda que não seja considerável, enquanto o artigo 770 impõe essa condição em caso de redução do risco, sendo que a igualdade de tratamento só aparece quando a alteração, para mais ou para menos, for estranha à vontade do segurado.

Todavia, caberia ao segurado demonstrar que a hipótese seja mesmo de “redução considerável do risco”, não bastando alegar o fato da epidemia na medida em que  os seus impactos não se dão com a mesma intensidade em todas as pessoas, e, se lograr êxito nessa comprovação e conseguir a redução do prêmio mantendo o contrato em vigor, decerto poderá perder o direito  à indenização se, por exemplo, houver sinistro no período da pandemia relacionado com a redução do prêmio.

Mas é claro, que as situações excepcionais devem ser examinadas caso a caso, por exemplo, em caso de sinistro ocorrido no interior da garagem. Todavia, se houver um sinistro em via pública e sendo o motivo da redução do prêmio o alegado fato de o segurado não sair com o carro em função do isolamento imposto, salvo em comprovado estado de necessidade, o sinistro a nosso ver, legal e juridicamente, não encontrará cobertura.

Não seria demasiado lembrar que as observações aqui postas, por óbvio, não se aplicam aos seguros contratados durante ou após o período da pandemia declarada pelo Decreto Legislativo nº 6/2020, em que as novas subscrições serão submetidas a um novo Questionário de Avaliação de Risco.

A PRECIFICAÇÃO DO SEGURO E A NATUREZA JURIDICA DE CONTRATO ALEATÓRIO

 

Vale aqui, neste contexto, fazer um paralelo entre a hipótese de redução do prêmio resultante do artigo 770 do CC, ou seja, em função da modificação do risco de cada segurado na sua individualidade, com a redução do prêmio em relação a toda a careteira do seguro.

Realmente o Código de Defesa do Consumidor brasileiro – CDC tipifica como prática abusiva a de se exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Todavia, conforme é de nosso entendimento, ao seguro, justo por sua qualidade de contrato tipicamente aleatório embora de execução continuada, em regra não se aplicaria nem o instituto da “lesão” prevista no artigo 157 do Código Civil brasileiro – CC[4], tampouco o da “onerosidade excessiva” prevista no próprio CDC e no artigo 478 do CC[5], eis que tais princípios teriam aplicabilidade mais adequada nos contratos comutativos quando caso, em que se exige uma equivalência real específica.

A propósito, vale aqui lembrar excertos do Ministro e jurista CÉLIO BORJA[6], em Parecer que emitiu sobre o tema e que se ajusta ao entendimento segundo o qual a precificação do seguro, por exemplo, não se conecta com o princípio da Resolução Por Excessiva Onerosidade, trazido à baila pelo Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, pelo Código Civil brasileiro de 2002. Muito menos sujeitar-se aos efeitos da Lesão prevista no CC.

Como bem pondera o Ministro e jurista citado, o princípio da excessiva onerosidade para o consumidor em regra, não tangencia com a pactuação de um prêmio cujo valor, nas palavras de NICOLA GASPERONI[7], é calculado exatamente “em relação às probabilidades de o sinistro vir a ocorrer, quando se tem em vista uma ampla massa de riscos homogêneos”.

Mesmo conceitualmente, essas estipulações não se ajustam ao que a doutrina nacional e estrangeira entende ser uma obrigação excessivamente onerosa. Tampouco o fato de o sinistro não ocorrer ou a sinistralidade diminuir na vigência do contrato poderia caracterizar onerosidade excessiva ou lesão. E prossegue lecionando que a resolução por excessiva onerosidade da obrigação tem em mira, sobretudo, os contratos nos quais as condições existentes, na época da celebração, estão sujeitas a modificações tais que impossibilitam ou tornam economicamente desastroso cumprir aquilo que se prometeu. Isso se resolve com a teoria da imprevisão (cláusula rebus sic stantibus) e não com os princípios da excessiva onerosidade ou da lesão. A fim de evitar ou obviar o risco de injustificadas inexecuções contratuais, adiciona-se a imprevisibilidade aos demais requisitos de validade da cláusula rebus sic stantibus. Não é possível, portanto, assimilar ou correlacionar a excessiva onerosidade que resulta da imprevisibilidade de um fato futuro à previsibilidade que determina os valores do prêmio do seguro e o da indenização do sinistro, adverte o Ministro. Afinal o ganho ou a perda na operação de seguro é creditado ou debitado, conforme o caso, na conta da mutualidade ou do fundo garantidor, se diluindo entre os integrantes da coletividade.

Demais disso, não se pode dizer que a situação – não ocorrência de sinistro ou redução da sinistralidade – se amolde ao conceito de excessiva onerosidade estabelecida no artigo 51, § 1º do CDC[8] que trata das cláusulas abusivas (o contrato de seguro de automóveis não costuma hospedar cláusula prevendo redução ou aumento do prêmio por sinistralidade). Por isso a não redução do prêmio do seguro, ainda que o sinistro não ocorra ou que a sinistralidade se reduza, não ofende, de modo algum, os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence o contrato do seguro, muito ao contrário, pois a álea que o caracteriza o afasta da aplicação do princípio da onerosidade excessiva, justo em função de sua natureza jurídica, jamais ofensiva ao princípio jurídico a que pertence – o da aleatoriedade -, segundo o qual não se há falar em restrição a direitos e obrigações fundamentais ou ameaça do equilíbrio contratual, eis que, como dito, a equivalência real não pode nem deve ser exigida nos contratos aleatórios.

A propósito, as seguradoras no Brasil, costumam sofrer pressões dos Poderes Políticos municipais e estaduais para reduzirem os preços dos seguros de automóveis logo após os primeiros resultados da alegada queda dos índices de crimes de furto e roubo veiculada nos jornais locais, dita como atribuída à ação das forças de segurança do Poder Público local. E o fazem sob a ameaça de serem as seguradoras processadas administrativamente, pelo respectivo Sistema de Proteção ao Consumidor, por estarem incidindo em alegada prática abusiva de exigência de vantagem exagerada em detrimento do consumidor prevista no CDC.

A leitura de infringência, no entanto, a nosso ver não procede por vários motivos, primeiramente porque sendo o seguro contrato tipicamente aleatório, em regra não se aplica como dito, o princípio da onerosidade excessiva ou da lesão, segundo porque, mesmo aplicável fosse, diga-se apenas para argumentar, a redução do prêmio não se faz de imediato, mas somente no futuro, em novos riscos subscritos, mediante comprovada e efetiva consistência na queda da criminalidade e consequente diminuição considerável da sinistralidade, mas de acordo com os parâmetros estatísticos próprios de cada seguradora consoante suas Notas Técnicas e Atuariais. Realmente, o segurador só poderia mesmo tentar recuperar ou minimizar os efeitos negativos de desvios ocorridos na vigência dos contratos (fraude, aumento de sinistralidade dentre o mais), ou adotar as medidas decorrentes de um efeito positivo (redução de sinistralidade, por exemplo), somente no futuro, ou seja, para os novos segurados e, jamais, com relação aos riscos já antes subscritos, ou seja, somente quando a alegada redução puder produzir os seus efeitos nos cálculos atuariais para períodos futuros. Mas de toda sorte, não cabe a qualquer dos poderes públicos o controle prévio de preços praticados no setor de seguros privados.

Cada seguradora segue seus parâmetros estatísticos próprios segundo normas da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, fiéis aos termos de suas Notas Técnicas e Atuariais, não cabendo também por isso aos serviços de Proteção ao Consumidor questionar as seguradoras nesse tema, exigindo delas redução nos preços do seguro em função de supostas e alegadas reduções inespecíficas de roubo e furto ocorridas em dado momento ou lugar – máxime no seguro de automóvel em que o risco é itinerante, com cobertura em todo território nacional -, muito menos estabelecer sanções por conta disso ou que as mesmas exibam uma abertura de seus cálculos, números e de seus segredos industriais, sabido que o critério é o da livre concorrência e livre iniciativa, ainda que vigiada. Assim como não faria sentido, por exemplo, que mandassem uma indústria de calçados exibir cada custo na sua formação de preço, desde o tratamento do couro nos curtumes e demais insumos até a comercialização, já que também aí o regime é o da livre concorrência, livre iniciativa e liberdade de mercado. Muito menos das seguradoras, que possuem seus órgãos próprios de controle e ante o fato de lidarem com contratos tipicamente aleatórios.

Nem se diga, voltando ao primeiro tópico destes comentários, que a previsão de redução de prêmio prevista no já citado artigo 770 do CC possa se aplicar à situação aqui descrita a desfavor da seguradora, ou retirar a natureza aleatória do contrato de seguro. É que tal redução, primeiro, não é automática eis que depende de prévio ajuste entre as partes, segundo, ela não tem a ver com índice de sinistralidade, mas efetivamente com a mudança do estado do risco no curso do contrato, como seria o caso, por exemplo, de um seguro contratado para o transporte de material inflamável, e que o segurado modifica o seu interesse segurável, digamos, para transporte de água ou derivados de leite. Ou, também à guisa de exemplo, de um seguro de incêndio celebrado com estabelecimento comercial que explora a venda de fogos de artifício e ou material inflamável e que, no curso do contrato, altera o objeto de seu negócio para comércio de produtos alimentícios. O mesmo se dá no sentido inverso, em que o estado do risco é agravado e por isso, se ajustado previamente, pode ensejar aumento do prêmio.

[1] “Artigo 770. Salvo disposição em contrário, a diminuição do risco no curso do contrato não acarreta a redução do prêmio estipulado; mas, se a redução do risco for considerável, o segurado poderá exigir a revisão do prêmio, ou a resolução do contrato”. (grifamos).

[2] “Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.

[3] Art. 769. O segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé. §1º O segurador, desde que o faça nos quinze dias seguintes ao recebimento do aviso da agravação do risco sem culpa do segurado, poderá dar-lhe ciência, por escrito, de sua decisão de resolver o contrato. §2º A resolução só será eficaz trinta dias após a notificação, devendo ser restituída pelo segurador a diferença do prêmio.

 

[4] “Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. § 1o Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.”

[5] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

[6] Borja, Célio – Apud Santos, Ricardo Bechara, em Direito do Seguro no Novo Código Civil, 2ª edição revista e ampliada, editora Forense, pág. 192.

[7] Gasperoni, Nicola – Apud Borja, Célio em Parecer publicado na Revista Jurídica de Seguros da CNseg edição nº 8, Rio, maio 2008, páginas 103/104.

[8] “Art. 51… § 1º, Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual; III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso”.

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