O direito fundamental da personalidade. Seguro DPVAT. Feto natimorto em acidente de trânsito. Artigo 2º do Código Civil de 2002. O direito não se acha na rua, nem na mídia, mas na lei. Recente decisão do TJ/RS

RICARDO BECHARA SANTOS

 

Em data recente, o 3º Grupo Cível do TJ/RS, em sede de Embargos Infringentes montado em um único voto da decisão recorrida, por apertada maioria (maioria a nosso ver equivocada diga-se desde pronto), deu ganho de causa a uma mãe que perdera o feto (natimorto) em aborto provocado por acidente de trânsito, na sua pretensão indenizatória contra o seguro obrigatório de DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIA TERRESTRE, OU POR SUA CARGA, A PESSOAS TRANSPORTADAS OU NÃO, conhecido simplesmente pela sigla DPVAT. (nosso o grifo)

A jurisprudência predominante no resto do País trafega em sentido inverso, pois consoante o art. 2º do Código Civil o feto, para se tornar pessoa e como tal adquirir direitos e obrigações, precisa nascer com vida, respirar o ar de fora, o ar comum. O mesmo dispositivo confere uma expectativa de direito do feto desde a concepção, é verdade, mas se não nascer com vida essa expectativa não se transforma em direito adquirido, não faz do nascituro um sujeito de direitos e obrigações.

O referido acórdão do tribunal gaúcho, portanto, desafia não só a letra e o espírito da lei, como a melhor doutrina e jurisprudência sobre o tema, além de conspirar contra princípio maior constitucional da Segurança Jurídica.

Por quatro votos contra três (estes três se somados aos votos da decisão recorrida da Câmara ad quem, talvez representasse maior número de Desembargadores com entendimento oposto ao dos quatro votos do Grupo Cível), aquele tribunal determinou que o seguro DPVAT devesse cobrir a morte do feto, mesmo a despeito de ter ocorrido no recôndito do útero materno, abraçando a teoria conceptualista em detrimento da teoria nativista, esta última adotada tanto pelo Código Civil de 1916 quanto pelo de 2002. É claro, assim decidindo, aquela pequena maioria o fez em indisfarçável afronta à lei.

É óbvio que a ordem jurídica, por mais aberto que seja o sistema do Código, não se compadece com a decisão daquela ousada maioria, admissível tão somente em sede de discussão doutrinária e de lege lata, isto é, segundo uma lei ainda a ser criada, jamais de lege ferenda, diante da lei vigente, eis que, do contrário, estariam abertas as comportas de um perigoso ativismo judicial, reduzindo a lei a oblívio, a simples folhas de papel em branco, como se de nada valesse todo o trabalho legislativo de sua elaboração, além de verdadeiro menoscabo ao direito fundamental constitucional da separação dos poderes da República.

É falsa a premissa adotada por aquela apertada maioria vencedora naquele julgamento, ao pressupor já ser pessoa o que ainda não nasceu, olvidando que o fato de a lei garantir o direito do nascituro desde a concepção não lhe dá direitos adquiridos, estes somente alcançados se nascer com vida, isto é, confundindo expectativa com direito adquirido, negando também aí vigência à Lei de Introdução ao Código Civil. E chega ao ponto de adotar como paradigma a lei de alimentos gravídicos, que reconheceu o direito do nascituro à pensão alimentícia. Aí se vê outro manifesto equívoco dessa pequena maioria, na medida em que, a uma, trata-se de lei específica para alimentos gravídicos, por isso sem aplicação ampla, irrestrita e genérica; a duas, esses alimentos gravídicos são recebidos pela mãe, não pelo feto, tanto que, se nascer sem vida os alimentos gravídicos são estancados. Os alimentos que o feto recebe, no interior do útero, são os nutrientes naturais que a mãe lhe transmite pelo cordão umbilical. Infeliz, portanto, se nos parece, o fundamento utilizado a pretexto de rasgar o Código Civil.

Acertada quer nos parecer a fulgente decisão representada pelos votos divergentes, estes que, aplicando corretamente o art. 2º do Código, em sua meridiana clareza, decidiram no exato sentido da lei, qual o de que não tem personalidade jurídica o nascituro, embora tenha assegurado determinados direitos, pois é indubitável, sem quaisquer esquivanças, que a personalidade civil da pessoa começa mesmo do nascimento com vida, cabendo àquele que ainda não nasceu mera expectativa de direitos, como, aliás, é o entendimento do STF, ao julgar a autorização do uso de célula tronco.

Já dizia CÍCERO, que “o magistrado é a lei falada, a lei é o magistrado mudo”. É claro que novos paradigmas foram quebrados e aos magistrados concedidos poderes mais amplos de julgamento, mas onde a lei é omissa, imprecisa, obscura. Quando a lei é clara, precisa, comissiva, como no caso, ostentar contra ela não pode o magistrado, valendo lembrar que ainda vige o art. 127 do CPC, que só autoriza o juiz a julgar por equidade nos casos previstos em lei. E este não é o caso, por isso aquela mal imbricada decisão gadanha a lei na letra e no espírito.

Em lição ministrada pelo eminente Professor SERGIO BERMUDES, “o juiz não pode escravizar-se aos passageiros desígnios do homem comum, honestos ou viciosos, cabendo-lhe isto sim aplicar o direito, que ele não cria, mas descobre, identificando as leis incidentes sobre situações sociais diversas para logo aplicá-las”, não lhe sendo vedada, entretanto, a interpretação das leis, que pode variar em consonância com realidades mutantes, sem, contudo conferir-lhe o direito de, “em vez de interpretar a lei, a substitua, revogando-a e editando outra, no lugar dela, como se legislador fosse”.

Aliás, bem oportuno artigo recente do citado Professor SERGIO BERMUDES, publicado no primeiro caderno do jornal O GLOBO, do dia 25/06/2009, intitulado “Direito da rua”, pelo qual, referindo-se a também recente entrevista do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, mostra que o direito se acha na lei não na rua, tampouco na mídia. E pondera que “A criação da lei não é função do juiz, preso ao “dever formal de obrar, que está à base de sua função específica”, como ensina Pontes de Miranda, o maior jurista do Brasil, acentuando, em comentário ao art. 126 do CPC, que “o juiz é o funcionário que… não tem o direito de duvidar ou de, ainda diante da mais monstruosa incorreção do texto legal, escusar-se de despachar ou sentenciar no processo”. Eis porque, atuando fora da lei ou contra ela, para cortejar a opinião pública, o juiz a desobedece, fazendo ilícita a função jurisdicional. Não se concebe possa ele, no estado democrático, desobedecer à lei, regularmente elaborada segundo as regras de criação da norma, para sobrepor-lhe a opinião da rua. A compreensão disso dará razão à máxima romana: “Somos servos da lei para que possamos ser livres”.

Com efeito, a cobertura do seguro em causa condiciona-se à existência de vida extra-uterina, ainda que o nascituro já conte com mais de sete meses de gestação, ou seja, que já reúna as condições necessárias para vir à luz. Assim é que, se o nascituro teve sequer um instante, um estalo de vida, fora do ventre materno, e havendo um nexo de causalidade entre a sua morte e o acidente, aí sim, restará aos seus beneficiários o direito inconcusso à indenização pela sua morte. Se não, não. Restando cobertas apenas as despesas médicas incorridas pela mãe, no caso vítima do acidente de trânsito.

E para que haja vida, necessário se torna que a criança tenha respirado.  “Considera-se nascido vivo todo aquele que foi expulso ou extraído do ventre materno e respirou o ar atmosférico” (in J. M. de Carvalho Santos).

No dizer de filósofos e pensadores como do estofo de BRAZ FLORENZANO NETTO, “nascer não é o inicio da vida, é o início da morte. Antes de nascer, já era a vida”.

Assim é que, filosoficamente, apenas filosoficamente, a cobertura poderia ter lugar, ainda que o feto falecesse no recôndito do útero.  Ocorre, porém, que a cobertura do seguro, apesar da sua incontestável finalidade social, não pode ser abalizada preferentemente sob a ótica da filosofia ou da metafísica, mas, essencialmente, sob o prisma do direito positivo, da lei específica que o rege, ao qual o poder judiciário dos homens está vinculado e dele não pode se arredar. Só que o nosso Código adotou, para fins da personalidade da pessoa humana, a teoria nativista, não a conceptualista.

E há uma razão para isso, lógica, irretorquível. O Poder Judiciário, atrelado que está à lei, só pode decidir por eqüidade quando expressamente autorizado.  Assim não fosse, voltaríamos a incidir nas chamadas aequitas cerebrinas, condenadas que foram pelo Direito, por que são decisões judiciais contrariando texto expresso da lei. É que a segurança do direito exclui a eqüidade nos casos não autorizados especificamente.  Admitir, pois, pudesse o julgador decidir por equidade nos casos não expressamente autorizados, seria substituir a certeza do Direito pelas intuições, caprichos e boas intenções do julgador.

Ressai do Livro dos Livros os seguintes escólios, bem pertinentes ao tema que estamos a analisar, sem a pretensão é claro, de fazê-lo transcendental ou metafisicamente, mas, tão só, sob a baliza do nosso direito positivo:

“Também eu por certo sou um homem mortal, semelhante a todos, e da descendência daquele terreno que foi primeiro feito, e no ventre da minha mãe fui formado carne, dentro do espaço de dez meses fui coalhado em sangue do sêmen, do homem, e concorrendo o deleite do sono. E eu, tendo nascido, respirei o ar comum, e caí na terra feito do mesmo modo, e dei a primeira voz semelhante a todos, chorando, envolto em faixas fui criado, e isto com grandes cuidados, porque nenhum dos reis teve outro princípio de nascimento. Logo, é para todos uma mesma a entrada na vida e semelhante a saída dela”.(o grifo não é original – BÍBLIA, Sabedoria, 7-1, 2, 3, 4, 5, 6).

Como se vê, conforme acima sublinhado, até mesmo o texto bíblico informa que o homem, para considerar-se nascido, há de ter respirado o ar de fora, o ar comum.

Com efeito, se o feto nasce com vida, a indenização por sua morte será devida aos seus beneficiários, nos termos da legislação específica, desde que em conseqüência de acidente coberto.

Não importa que o parto tenha sido natural, ou por cirurgia médica, ou tenha sido a termo ou prematuramente.  O que não basta, contudo, é o simples fato do nascimento.  É, pois, imperioso, que o neonato haja dado sinais inexoráveis de vida, como vagidos e outras manifestações sintomáticas de vida.

Também a respiração, acusada pela Docimásia Hidrostática de Galeno, é concludente de que a criança nasceu ou não com vida. Baseia-se essa prova no princípio de que o feto, depois de haver respirado, tem os pulmões cheios de ar. Assim, mergulhados em água, eles flutuam, o que não sucede com os pulmões que não respiraram (Nuevo Digesto Italiano, in “Docimásia“).

A Docimásia Respiratória se inspira na lição prelecionada pelos doutos, segundo a qual “viver é respirar; não ter respirado é não ter vivido“.

Ademais, entenda-se que, para que haja nascimento, pressuposto inicial da personalidade, imprescindível que a criança se desagregue, plenamente, do útero da mãe, e com vida. O nascituro não terá nascido enquanto permanecer em conexão com o ventre materno pelo cordão umbilical.

Em suma, diz claramente a lei, a personalidade do homem começa do nascimento com vida, requerendo, assim, dê o infante sinais inquestionáveis de vida após o nascimento, para que se lhe reconheça personalidade civil e se torne sujeito de direitos, embora venha a falecer momentos após, pouco importando a maneira com que se manifestou a vida.

Se o feto nascer morto, não chega a adquirir personalidade, não recebe nem transmite direitos.  Ao passo que, se nascer com vida, ainda que precária, reveste-se de personalidade, adquire e transfere direitos. Cumprindo mais notar que, ainda que a medicina o condene ao óbito, pela precariedade de suas condições de sobrevida, isto é, viável ou não, o recém-nascido se personifica, torna-se pessoa, se nascer com vida.

Correntes doutrinárias existem das mais divergentes, no sentido de ser ou não o nascituro pessoa virtual, cidadão em germe, homem in spen.  Seja qual for a conceituação, há para o feto uma expectativa de vida extra-uterina, uma pessoa em formação.  Por isso a lei não pode ignorá-lo e, portanto, lhe salvaguarda os eventuais direitos, quando, verbis, assim dispõe: “… a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (Código Civil, art. 2º, parte final).  Mas não se diga que esse fato atribua direitos aos seus beneficiários no seguro DPVAT.  Pois que, para que estes adquiram qualquer direito do feto, preciso que ocorra, repita-se, o nascimento do mesmo com vida.

Sobre o início da existência da pessoa natural, há pelo menos duas escolas principais que procuram deslindar a questão: uma, que entende deva se contar o início da personalidade civil a partir do nascimento, reservando para o infante uma expectativa de direito, a qual, como vimos, pela leitura do artigo 2º do Código Civil, se filiou o legislador pátrio; outra, albergada por legislações de outros povos, sufragando o entendimento segundo o qual a vida jurídica há de coincidir com a vida física, dando por extremos a concepção e a morte.

Está-se pois a ver que, pela corrente a que se filiou o nosso Código, quem nasce morto é como se não nascesse. O Código Civil Brasileiro não considera o nascituro como pessoa, podendo-se assim dizer, legal e juridicamente, com BAUDRY et  FOURCADE, “que o nascituro nada mais é que pars viscerum matris, ou seja, uma parte, uma víscera da mãe”.

Consoante nos informa, em suas “Preleções, JOSÉ AUGUSTO CESAR, secundado por Washington de Barros Monteiro, “a palavra pessoa advém do latim persona emprestada à linguagem teatral na antigüidade romana.  Primitivamente, significava máscara.  Os atores adaptavam no rosto uma máscara, provida de disposição especial, destinada a dar eco às suas palavras. Personare queria dizer, pois, ecoar, fazer ressoar. A máscara era uma persona, porque fazia ressoar a voz de uma pessoa.

Por curiosa transformação no sentido, o vocábulo passou a significar o papel que cada ator representava e, mais tarde, exprimiu a atuação de cada indivíduo no cenário jurídico.  Por fim, completando a evolução, a palavra passou a expressar o próprio indivíduo que representa esses papéis. Nesse sentido é que a empregamos atualmente”.

Com efeito, na expressão pessoas emprestada pela Lei 6.194/74 e atos normativos regulamentares ulteriores, com o sentido jurídico empregado pelo legislador, não se encarta, inapelavelmente, o feto natimorto, nascido sem vida extra-uterina.  Não tem, pois, a cobertura do seguro DPVAT, os danos pessoais a ele causados pelo veículo automotor de via terrestre ou por sua carga, visto que, no sistema jurídico adotado pelo Direito Brasileiro, não é considerado como pessoa o nascituro, cuja personalidade civil só começará a partir do nascimento com vida, após tornar-se um feto autônomo, destacando-se do útero materno.  Só assim o homem se torna sujeito de direitos, só mesmo assim, poderá ele adquiri-los e transmiti-los.

Realmente, já aqui desaguando no estuário da conclusão final e nos permitindo uma metáfora, na bela construção literária de JOSÉ SARAMAGO, “os rios, mesmo os que já proclamam sua ambição atlântica, assim como os homens, só perto do fim vêm a saber para que nasceram…

De fato, se as “nascentes” secam antes disso, sem ganhar curso, são natimortas, não adquirem sua personalidade fluvial, não são rios, meras tentativas, apenas expectativa.

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