O seguro e os danos por atos de vandalismo, depredações, saques e outras violências sobre veículos e estabelecimentos comerciais e residências, em decorrência dos últimos movimentos de rua

RICARDO BECHARA SANTOS

Palmatória quebra dedo,

 Chicote   deixa    vergão,

 Cacete  quebra   costela,

 Mas não quebra opinião”

 

Decerto que os versos acima, de RACHEL DE QUEIROZ, em “O QUINZE”, poderiam retratar os excessos policiais cometidos nos pacíficos e democráticos movimentos reivindicatórios que tomaram as ruas deste país, mas certamente não ilustram os excessos cometidos pelos oportunistas infiltrados, baderneiros, arruaceiros, criminosos, com seus inaceitáveis atos de vandalismo, saques, depredações e quejandos, até porque a estes faltaria aceitável opinião.

A propósito cabe indagar se, em tese, estariam ou não cobertos pelas diversas modalidades de seguro, os danos causados pelos atos de violência a veículos, estabelecimentos comerciais, residências e outros bens, e os simultâneos ou consequentes saques, seguidos ou antecedidos de incêndios, em decorrência das amplamente noticiadas movimentações de rua (as imagens por si só falam).

Oportuna a indagação sobre se, diante dos contratos de seguro firmados e do pagamento dos respectivos prêmios, tais situações, anômalas, encontrariam ou não, de ordinário, a cobertura dos respectivos contratos, considerando as seguintes hipóteses: (a) de não haver cobertura expressa; (b) de, havendo excludente expressa, poder ser ou não ela abusiva em face do CDC; (c) de como poderiam ser qualificados os saques e outros danos, indenizáveis ou não.

É claro que tais riscos, extraordinários, embora não comumente cobertos por não serem submetidos a uma regularidade estatística em face de sua anormalidade, podem ser objeto de cobertura específica com pagamento de prêmio à parte, e, se assim for, escapa da indagação acima, já que, uma vez aceito o risco, em regra não haveria de se questionar a cobertura, salvo se o segurado contribuir para o dano ou algum fato contratual ou legal que impeça a cobertura.

Agora mesmo, no dia 13 de julho, deu-se início no Centro Cultural do Banco do Brasil de São Paulo a mostra Mestres do Renascimento, com grandes obras vindas de museus europeus, por isso que, em razão dos recentes tumultos, foi exigida dos organizadores a contratação de cobertura de rebeliões populares, o que mostra não se tratar de nenhum risco ordinário.

De plano, cabe advertir de que não seria prudente opinião em tese, sem o conhecimento do clausulado de cada apólice, tão pouco das circunstâncias em que cada sinistro teria ocorrido, por isso a conclusão sobre cada item consultado dependeria, a rigor, do exame percuciente do texto do contrato e dos comemorativos do evento, é dizer, de uma boa regulação de sinistro, de modo a deles se poder verificar se se trata ou não de um risco expressamente excluído. Nada obstante, me permitiria, assim mesmo, arriscar a seguinte opinião.

Vale de pronto ressaltar que o só fato de não haver cobertura expressa para o saque e outros danos, se não forem riscos textualmente excluídos, poderia estar abrigada, por exemplo, na cobertura de roubo ou furto, porque, em síntese, o saque nada mais é do que uma modalidade de roubo, de assalto, desde que tal risco seja previsto e analisado juntamente com figuras do tipo “tumulto”, “atos de hostilidade ou de guerra, rebelião, greve, lock-out, vandalismo” etc, comumente plasmadas nas cláusulas e condições das diversas modalidades de seguro, como riscos excluídos, os atos e fatos que sejam delas consequentes, assim como o próprio saque, que também costuma figurar como risco expressamente excluído, em que pese haver alguma confusão na exata compreensão da cobertura oferecida pelas apólices de seguro das modalidades Tumultos, Vidros e Roubo. É que não há se confundir, em termos tarifários, o saque – que geralmente ocorre em meio a um tumulto com a subtração ou arrebatamento do bem, em meio a uma greve, a um motim, a uma guerra civil, a uma arruaça, dentre outras situações afins – com os riscos de tumulto e do próprio roubo, em que pese ser o saque uma modalidade de assalto coletivo, pois diferente é o espectro do risco de que se reveste o saque (mormente quando cometido em meio a um tumulto) do risco de um roubo isolado, ou com o risco mesmo de uma avaria, sem o desaparecimento do bem, de que cogita a cobertura de tumulto, sabido que, nos saques, a vítima tem menor condição de controle e vigilância da situação.

A apólice para cobertura de tumulto, frise-se, costuma não cobrir os danos ou prejuízos que envolvam a perda da posse dos bens ou mercadoria cobertos, logo, o saque, que envolve arrebatamento do bem, portanto a perda de sua posse, não estaria em princípio coberto, mas apenas os danos aos bens que não forem carregados pelos meliantes em meio ao tumulto, permanecendo os mesmos na posse do segurado ainda que avariados.

Com efeito, na linguagem corrente que habita os dicionários, saque soe ser a ação ou efeito de saquear, que nada mais é do que roubar por meio de assalto e violência, pilhando, destruindo, assolando, devastando, arrebatando, tirando, despojando, esbulhando violentamente.

O saque, portanto, é roubo ou pilhagem efetuado por uma tropa, multidão ou grupo, quiçá até, em excepcional, individualmente, que pode se dar em uma cidade, em um navio, em uma aeronave, em um caminhão, em um trem, em um ônibus, em um estabelecimento comercial, dentre o mais nas ruas como no caso.

O saque é o ilícito comumente coletivo, que, modernamente, nem na guerra é permitido. Historicamente, era tolerado na milícia romana, por exemplo, na Idade Média, a título de recompensa normal das tropas mercenárias.

O tumulto, de seu turno, também lexicamente e na linguagem enciclopédica, costuma ser movimento desordenado, barulho, agitação, discórdia, agitação moral, exaltação, algazarra, balbúrdia, alvoroço, confusão, bulício, gestos sediciosos, imprecações, estrondo de povo sublevado, resultando na perturbação passageira da ordem pública, restabelecida pela ação da autoridade policial, que no caso em foco encontrava-se presente até que inibida pela imprensa.

Assim é que o saque, ainda que praticado em clima de tumulto, com este não se confunde. É que este não tem por objetivo, necessariamente, o roubo. Por isso o saque pode, ou não, ser uma consequência, um efeito do tumulto ou vice-versa, mas que sempre importa em subtração de um bem, com a consequente perda da posse por quem a detinha.

O tumulto, assim, não se confunde com o motim, nem se entende revolta, é simplesmente o ato intentado para estabelecer confusão, criar a desordem, promover a agitação, ou alterar a normalidade de alguma coisa. Nele, pois, não há gesto de rebeldia, mas a intenção daninha de perturbar a boa marcha ou a ordem normal das coisas.

Assim, no interesse do seguro e no seu sentido jurídico, tumulto deve ser movimento que nasce sem prévia determinação, excitando, agitando, descontrolando o povo e que, por assumir graves proporções, se torna impossível de controle e exige a coibição da polícia e em alguns casos até da Força Nacional, dependendo do vulto que assume.

O tumulto difere-se também da greve, do lock-out, da guerra civil, da rebelião, da arruaça, do sequestro, enfim cada qual com suas próprias características e conceitos, que por sua vez diferem-se igualmente do saque, mas figuras que têm em comum o fato de constarem, não raro, como riscos excluídos das apólices de seguro.

Tome-se como paradigma a seguinte cláusula, que aleatoriamente extraí de determinada apólice de seguro patrimonial e comumente presente em grande parte dos seguros de dano, dentre os quais de automóveis, que elenca, logo no pórtico dos riscos excluídos, in verbis:

“Os prejuízos gerais não indenizáveis são:

  1. a) perdas ou danos, ou suas reclamações, decorrentes, direta ou indiretamente, próxima ou remotamente, de atos de hostilidade, de terrorismo, de guerra, revolução, tumultos, motins, greve, lock out, rebelião, insurreição, revolução, confisco, nacionalização, destruição ou requisição provenientes de qualquer ato de autoridade, de fato ou de direito, civil ou militar, e, em geral, todo e qualquer ato ou consequência dessas ocorrências, e de quaisquer outras perturbações da ordem pública, bem como atos praticados por qualquer pessoa agindo por parte de, ou em ligação com qualquer organização, cujas atividades visem derrubar pela força o governo ou instigar a sua queda, pela perturbação da ordem política e social do país, por meio de ato de terrorismo, guerra revolucionária, subversão e guerrilhas, saque ou pilhagem decorrentes dos fatos anteriores.
  2. b) reclamações por danos decorrentes, direta ou indiretamente, próxima ou remotamente, de atos de vandalismo, arruaça, depredações, pichações, badernas, aglomerações, vingança, comoção civil, manifestações de protesto, qualquer per turbação da ordem, destruições deliberadas do bem segurado, com uso de arma de fogo ou qualquer objeto contundente, material incendiário, inclusive pontapés, dentre outros meios deliberados, inclusive ameaças, ainda que em situações isoladas, ou fora do controle habitual do Segurado e/ou do Segurador, sendo ou não possível identificar e individualizar precisamente os seus autores.”

O saque, pois, pode se dar no antecedente ou no consequente a um tumulto, como causa ou como efeito do mesmo, o que imprime a essas figuras mais um traço que as diferenciam entre si. Tanto podem as pessoas já estarem predispostas ao saque, visando um estabelecimento fixo, como um supermercado, ou uma loja que seja, figurando o tumulto apenas como meio para se alcançar o resultado, o roubo, enquanto que relativamente a um caminhão de carga que tomba na estrada, por exemplo, é possível que o saque se dê, espontaneamente, no consequente, com ou sem tumulto.

Acresça-se que o Código Civil é claro ao determinar que o seguro cobre somente os riscos predeterminados no contrato, por outros não respondendo o segurador e, por mais forte razão ainda os riscos expressamente excluídos.

Daí já se pode concluir que, mormente diante do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e de todo o sistema montado para a sua proteção, para que a recusa dos danos causados por saque possa ter alento há de estar o risco clara e expressamente excluído da apólice, de modo a que se possa invocar, com maior segurança, o pálio do Código Civil, segundo o qual, limitados e particularizados no contrato de seguro os riscos cobertos e excluídos, por outros não responderá o segurador, tendendo os casos duvidosos a ser interpretados em favor do consumidor.

Excluído o risco, milita a favor da recusa o próprio CDC, na medida em que admite as clausulas restritivas ao direito do consumidor, desde que redigidas com clareza e fácil compreensão, não tolerando no caso as clausulas abusivas, por isso sendo da natureza própria do contrato de seguro a limitação do risco em toda sua extensão no contrato, não seria abusiva uma clausula que clara e induvidosamente preveja a excludente do risco de saque, e ou de quaisquer outros danos que sejam acontecidos em decorrência das clássicas situações de greve, insurreição, motim, rebelião, vandalismo etc.

As clausulas excludentes de riscos extraordinários, como soe ser aquelas que arredam da cobertura os danos, quaisquer que sejam estes (por saques, roubo, furto, etc.), decorrentes de greve, tumulto, rebelião e outras situações excepcionais, além de não colocarem o consumidor em desvantagem exagerada, decididamente não são incompatíveis com a boa-fé ou a equidade, tão pouco se inserem como tais no rol das abusividades do art. 51 do CDC, até porque não ofendem, de modo algum, os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertencem, muito ao contrário, hospedam-se justamente na lógica essencial do seguro e na sua natureza própria de se delimitar o risco no contrato.

Até porque, como cediço, o CDC não veio à luz para alterar a natureza dos contratos típicos desenhados pelo Código Civil, dentre eles o de seguro. Toda a revolução jurídica que o Código traz há de estar a serviço da melhoria das relações de consumo, e não para resolver as ilusões de cada um de nós. E o equilíbrio dessas relações é o limite (art. 4º do CDC), eis que, uma vez ultrapassado, restaria ameaçado um princípio maior e fundamental (art. 5º da CF), que é o da SEGURANÇA JURÍDICA, pondo-se em risco daí a própria estabilidade das instituições, cuja destruição também não está no objetivo do Código.

Poderia até se especular sobre saques justificáveis, argua-se tão só para argumentar, que seriam aqueles caracterizados por ações coletivas das massas famintas objetivando saciar a fome, o que muitas vezes acaba sendo gerado pela ausência de política pública voltada para atender e suprir as carências sociais. É o denominado “estado de necessidade” que não é acudido no tempo e na hora certa pelos órgãos competentes e que não recebe tratamento para ser banido do convívio social. Mas não seria essa a situação presente.

Existem, entretanto, aqueles outros saques provocados por grupos, organizados ou não, que bem retratam as situações vividas recentemente nas ruas e que, salvante os movimentos reivindicatórios pacíficos e que fazem parte da democracia, são absolutamente injustificáveis posto que tipificados como atos ilícitos e contrários à lei.

Por fim e por mais que se considere a função social do contrato de seguro, é mais que dever, é obrigação do segurador, como gestor da mutualidade, zelar pela validade das cláusulas e condições do contrato de seguro, sob pena de punição pelo próprio órgão de controle da atividade de seguros, que tem também o múnus de zelar pela solvência das seguradoras, não sem lembrar de que o pagamento de sinistros não cobertos pelo seguro, mormente com habitualidade, poderá criar novação, comprometendo futuras recusas sobre o mesmo fato, tornando assim uma cláusula validamente excludente, em letra morta.

No momento, seriam essas as considerações que entendo oportunas apresentar.

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