Salvados de sinistros. Conceito e suas implicações. Súmula vinculante nº 32/11 do STF

RICARDO BECHARA SANTOS.

O salvado de sinistro, e sua alienação por valor justo de mercado, há de ser interpretado como fator positivo na operação de seguros de dano e, por conseguinte, para o consumidor, porque, na ciência e na lógica, inclusive atuarial, do direito do seguro e da mutualidade que o caracteriza quanto mais se restrinja o seu valor, maior será o preço do seguro, este que leva em conta para o seu cálculo atuarial a alienação dos salvados e por consequência o valor econômico dessa operação, que, pelo “Plano de Contas da Superintendência de Seguros Privados” é contabilizada como ressarcimento sub-rogatório, sem qualificação de receita.

Com efeito, no que tange aos salvados de sinistros de veículos automotores de via terrestre, o artigo 126 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, de redação simples, clara e objetiva, determina a baixa do registro de veículo irrecuperável ou definitivamente desmontado. Ocorre que os salvados de sinistros não são apenas os irrecuperáveis ou definitivamente desmontados, por isso nem todos suscetíveis de baixa do registro. Casos há, como os recuperados de roubo ou furto, que na maior das vezes se encontram em perfeitas condições de uso e trafegabilidade. Casos outros também há em que, apesar de imperceptíveis os danos, podem resultar em indenização integral, como aqueles veículos, com quilometragem ainda zerada, em que um pequeno fragmento de dano na sua fuselagem ocorrida no transporte se tornam salvados de sinistro, como se verá passos mais adiante.

Não há confundir, portanto, salvado de sinistro com sucata. Nesta última hipótese sim é que o artigo 126 do CTB determina a baixa no registro competente. Um exemplo de salvado de sinistro não sucateado é o dos veículos furtados ou roubados não encontrados no prazo contratual (em regra de trinta dias) contado da data em que o fato delituoso ocorreu e desde que comunicado às autoridades policiais, situação em que os mesmos são indenizados pelo valor integral segurado. Encontrados esses veículos após o referido prazo em bom estado, eles são recuperados e, estando em condições de circulação, não carecem de baixa no órgão de trânsito. Não são eles, a toda evidência, “irrecuperáveis ou definitivamente desmontados”, como revelam, à saciedade, as normas vigentes sobre a matéria. No viés histórico normativo, vale também conferir com a Resolução CONTRAN nº 11/98.

Outro exemplo, bastante eloquente, como retro apontado, é o dos salvados de sinistros cobertos por seguros no transporte de veículos zero quilômetro, pois basta uma mossa na lataria, ou leve arranhão, ocorrida no manejo do transporte, na carga ou na descarga, para se caracterizar uma indenização integral (antes denominada, impropriamente, de “perda total”), da qual o segurador se sub-rogará nos direitos desses salvados “zero quilômetro” e, nem por isso, terão sua baixa decretada ou perderão sua condição de veículo, já que, por óbvio, sucatas não são.

Mesmo os veículos sinistrados por colisão e que tenham sido objeto de indenização integral não são, necessariamente, irrecuperáveis, pois se trata de critério puramente contratual autorizado pelas normas da SUSEP (ver Circular SUSEP nº 269/2004), por isso o veículo indenizado por tal critério contratual, desde que não se transforme em sucata, é passível de recuperação com a segurança necessária, desde que tomadas as medidas que a legislação assim determina. Ocorre que a perda financeira de mais de 75% (setenta e cinco por cento) do valor segurado, embora implique em obrigação de a Seguradora pagar a indenização integral prevista no contrato de seguro, não significa que o veículo sinistrado tenha se tornado, necessariamente, irrecuperável.

Em verdade, duas são as hipóteses possíveis, inconfundíveis entre si: 1ª) o sinistro pode causar a irrecuperabilidade do veículo, que então não mais será vendido como veículo, mas sim como sucata; ou 2ª) o sinistro não acarreta a irrecuperabilidade do veículo, que pode, então, ser como tal alienado.

Quando o veículo for irrecuperável sob o aspecto mecânico, o mesmo é vendido como sucata e não como veículo, sendo procedida à baixa definitiva no Departamento de Trânsito Estadual (DETRAN) mediante a entrega de toda a documentação original e das placas respectivas, bem como o recorte do chassi. Com este procedimento, é impossível que um veículo indenizado como irrecuperável pela seguradora volte a circular.

Quando o veículo for recuperável do ponto de vista mecânico ou mesmo se não apresentar danos mecânicos de quaisquer espécies (por exemplo, veículo recuperado de roubo ou furto), a Seguradora comunica a transferência da propriedade ao DETRAN e procede à venda do mesmo no estado em que se encontra. Tal venda é realizada em leilões públicos ou por meio de revendedores especializados em veículos sinistrados, sendo totalmente transparente ao futuro comprador o estado físico do veículo sinistrado que está sendo comercializado. Para que o veículo sinistrado seja legalizado e possa voltar a circular, deve o comprador, após reparar – por sua conta – os danos eventualmente existentes, submeter o veículo a uma inspeção em órgão autorizado pelo INMETRO, que atestará a sua capacidade técnica de circulação e emitirá o competente Certificado de Segurança Veicular.

É exatamente o que determinam as normas vigentes, originadas do parágrafo único do artigo 10 da Resolução CONTRAN n.º 25, de 21 de maio de 1998:

“Em caso de danos de média e grande monta, o órgão fiscalizador responsável pela ocorrência, deverá comunicar o fato ao órgão executivo de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal, onde o veículo for licenciado para que seja providenciado o bloqueio no cadastro do veículo.

Parágrafo único – Em caso de danos de média monta, o veiculo só poderá retornar à circulação, após a emissão do Certificado de Segurança Veicular – CSV, emitido por entidade credenciada pelo INMETRO.”

Portanto, verdade é que as seguradoras agem em consonância com o que determina o artigo 126 do CTB e demais normas legais aplicáveis, não havendo o mínimo de sustento na alegação de que as seguradoras procedem à venda de veículos recuperados de “perda total” (leia-se indenização integral), a preço de mercado, como se fossem novos.

Referidas disposições legais determinam tão somente que o proprietário de ”veículo irrecuperável” ou “definitivamente desmontado” requeira a baixa do registro, no prazo e na forma estabelecidos pelo CONTRAN, sendo vedada a remontagem do veículo sobre o mesmo chassi, de forma a manter o registro anterior.

Relevante sublinhar que tal se dá também no interesse dos consumidores, considerando que a alienação de veículos sinistrados, como dito, é fator de redução do prêmio de seguro pago pelo segurado, pois o ressarcimento com a alienação dos salvados integra o cálculo atuarial do prêmio, tornando menos oneroso, em prol do grupo segurado, o custo do seguro. Esta é a razão pela qual “o produto da venda dos salvados é contabilizado como recuperação de indenização da seguradora”, como acertadamente diz a SUSEP em seu PARECER/GEACO/DECON/Nº9/18.05.1993, sabido que as indenizações integram o cálculo dos prêmios de seguro.

Em face da grande relevância do referido PARECER da SUSEP, vale transcrever o seu trecho que segue:

 “(…) 2. O eventual lucro obtido com a venda dos salvados é contabilizado como lucro operacional?

Resposta:

– O produto da venda dos salvados é contabilizado como recuperação de indenizações a segurados, conforme determina a Circular nº 027 de 28 de dezembro de 1988 do Superintendente da SUSEP.

– O lucro operacional não é divisível. Uma operação isolada de seguros envolveria risco insuportável. A rentabilidade da seguradora requer operação em determinada escala o que torna indivisível o lucro operacional. Se se quiser avaliar a rentabilidade (positiva ou negativa) de determinada operação de seguros, onde ocorreram sinistro com perda de mais 75% do valor segurado (são estas as perdas das quais resultam salvados), abstraindo-se o que foi acima dito, têm-se de somar os prêmios recebidos na operação de seguros de que se tratar, deduzir-se a parcela das despesas gerais correspondentes à operação, deduzir também o valor da indenização paga depois de reduzida do valor recuperado com venda do salvado. Como a indenização supera, em geral, de muito o valor dos prêmios em operações em que haja perda de mais de 75% do valor segurado, é evidente que a operação, isoladamente considerada, contém redução do lucro ou aumento do prejuízo da seguradora.

  1. Poderia ser contabilizado como lucro não operacional?

– Não poderia ser contabilizado como lucro não operacional por se tratar de ressarcimento de despesa relativa à operação de seguros que é própria e única (Decreto-Lei nº 73, de 21.11.66, artigo 73) da seguradora.

…………………..

  1. A realização do objeto social da seguradora pressupõe a venda dos salvados? Não seria essa uma atividade correlata e imprescindível ao seu fim social? Seria economicamente viável a seguradora deixar de vender os salvados?

– A resposta a esta questão pressupõe uma análise sumária das operações de seguros em que surgem salvados. A regulamentação da atividade de seguro, fiscalizada pela SUSEP, atribui ao segurado o direito de receber, em certos casos, indenização superior ao dano ocorrido. Efetivamente, se, em decorrência de sinistro, determinado bem perde mais de 75% do valor segurado, a companhia de seguros é obrigada a pagar ao segurado 100% do valor segurado caso este, por ato unilateral que passa, assim, à propriedade da seguradora. Com a alienação do bem segurado, a companhia de seguros, em tese, recupera a parcela de indenização que haja superado o dano ocorrido.

– A alienação de salvados não representa uma atividade correlata da seguradora. A proibição legal do artigo 73 do Decreto-Lei nº 73 de 1966 tornou a exploração de atividade correlata pela seguradora juridicamente impossível. Com o objetivo de supervisionar o cumprimento desta disposição, e de favorecer a fiscalização da SUSEP, da alienação de salvados como elemento inerente à operação de seguros, a permitir à Fiscalização, aos credores e acionistas minoritários uma precisa apreciação do vulto dos negócios operacionais da Seguradora, a SUSEP determinou que elas contabilizassem da forma acima, os valores recebidos a titulo de ressarcimento como é o caso dos salvados. Para esclarecer a questão, diremos que quanto maior o número de fatos que gerem as verbas contabilizadas, como receitas decorrentes de prêmios de seguros, quanto maior o número de sinistros que gerem perdas de que resulte salvados, menor o lucro das seguradoras. Como o fim social da seguradora é a realização de operação de seguros, a alienação de salvados, justamente por ser imprescindível à referida operação, é que a integra.   

 

– Se a seguradora deixasse de alienar salvados, reduziria, sem dúvida, a liquidez da rentabilidade de seu patrimônio. Administrador prudente algum favoreceria este resultado. No caso das seguradoras, cujo patrimônio garante a segurança de bens do patrimônio público (e, em muitos casos garantem o patrimônio público), este desvio dos objetivos da empresa deve ser combatido.

 

A venda de salvados miniminiza o custo do seguro, na medida em que reduz o valor (vide item 02) das indenizações pagas.

…………….

  1. os salvados constituem mercadorias? Tem valor comercial?

 

– Os salvados não são produzidos nem comprados pelas seguradoras, pelo contrário, são adquiridos sub-rogatoriamente ato unilateral da vontade do segurado, portanto não são mercadorias, até porque, não podem constituir objeto do comércio das seguradoras (Decreto-lei nº 73, de 1996, artigo 73).

………………

  1. Qual o intuito da seguradora ao vender o salvado?

 

Resposta:

 

Conforme resposta do item 05, o intuito da seguradora, ao vender o salvado, é se ressarcir das despesas de indenização, o que atuarialmente é considerado para efeito do cálculo do prêmio do seguro (…)”.

 

Realmente, aqui e acolá, em qualquer parte do mundo, a quebra de padrão ao equilíbrio que há de presidir o contrato de seguro e sua operação como um todo, tanto no caso de condenação da seguradora a pagar indenização não prevista ou em desacordo com os riscos cobertos e com as condições contratuais, como também na alienação de salvados esperada, terá ela fatalmente que despender quantia não provisionada, gerando desequilíbrio na sua malha operacional e obrigando-a, como gestora da mutualidade, a aumentar o custo da garantia. E o impacto imediato é o de repassar esses custos aos segurados.

Por outro giro, caberia aqui também registrar que nenhuma abusividade existe na cláusula de alienação de salvados muito pelo contrário, tem sido entendimento copioso do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que a abusividade não basta ser alegada, há de ser cabalmente comprovada. Basta, para não citar outras, conferir com a decisão unânime exarada no REsp nº 1.216.673-SP (2010/0184273-9) de junho de 2011, de relatoria do eminente Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA que julgou improcedente ação civil pública em que se pretendia taxar de abusiva cláusula de contrato regulado pela SUSEP sem se dar ao trabalho de demonstrar a ilicitude. E dentre os fundamentos da decisão, um deles foi justamente o de que “não pode o juiz, com base no CDC determinar a anulação de cláusula contratual expressamente admitida pelo ordenamento jurídico pátrio se não houver evidência de que o consumidor tenha sido levado a erro quanto ao seu conteúdo. No caso concreto, não há nenhuma alegação de que a recorrente tenha omitido informações aos consumidores ou agido de maneira a neles incutir falsas expectativas. Deve ser utilizada a técnica do “diálogo das fontes” para harmonizar a aplicação concomitante de dois diplomas legais ao mesmo negócio jurídico…

Acresça-se que o próprio CDC admite cláusulas restritivas ao direito do consumidor (art. 54, § 4º), salvo se abusivas.  E abusiva não é, absolutamente, a prática decorrente da “cláusula de indenização integral” e consequente alienação dos salvados de sinistros pelo valor econômico que representa, jamais sempre como sucata, porque, consoante o seu artigo 51: (I) não coloca o consumidor em desvantagem exagerada; (II) não é incompatível com a boa-fé ou a equidade; (III) não ofende princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; (IV) não restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato de tal modo a ameaçar o seu objeto ou o equilíbrio contratual; (V) não é excessivamente onerosa para o consumidor considerando a natureza e conteúdo do contrato ou o interesse das partes e da operação securitária. Pelo contrário, protege os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence.

 

Verdade inconcussa, portanto, é a de que os veículos alienados pelas Seguradoras não são por elas recondicionados, mas transferidos aos adquirentes no estado em que se encontram (estado em que o veículo é adquirido, obrigatoriamente, pela Seguradora, por abandono sub-rogatório, já com perda financeira de mais de 75% do valor segurado), indenizando-o pelo valor integral estabelecido no contrato de seguro, mas não significando que todo o veículo com danos acima de 75% se encontre ou se mostre irrecuperável, pois se trata de uma “perda total convencional” (vale repetir, hoje mais apropriadamente denominada “indenização integral”), apenas para fins de indenização do sinistro, jamais como corolário da baixa dos veículos sinistrados.

A alienação de salvados é simplesmente um ato de liquidação de sinistros, pensada e praticada em benefício dos consumidores de seguro porque, adrede, levada à conta do prêmio, por isso os desvios indevidos do seu valor, de automóvel para sucata, refletirão como se viu, ampla e repetidamente, no custo do seguro a dano do consumidor.

Em fundamento a essa afirmação basta atentar para a leitura do que já dizia, exemplarmente, o Código Comercial, quer quanto ao abandono (título XII), quanto à liquidação da coisa avariada:

“Art. 753 – É lícito ao segurado fazer abandono dos objetos seguros, e pedir ao segurador a indenização da perda total nos seguintes casos:

……………………….

III – perda total do objeto seguro, ou deterioração que importe pelo menos três quartos do valor da coisa segurada.

Art. 773 – Os efeitos avariados serão sempre vendidos em público leilão a quem mais der, e pagos no ato da arrematação; e o mesmo se praticará com o navio, quando ele tenha que ser vendido segundo as disposições deste Código; em tais casos o juiz, se assim lhe parecer conveniente, ou se algum interessado o requerer, poderá determinar que o casco e cada um dos seus pertences se vendam separadamente.”

A liquidação dos salvados, em se tratando de seguros terrestres, obedece a essa mesma sistemática, guardadas as peculiaridades de cada operação, que é adotada pela já antes citada Circular SUSEP nº 269/04.

Se os danos que atingiram o veículo o tornam efetivamente imprestável à circulação, aí sim, as Seguradoras de imediato procedem à baixa junto aos órgãos de trânsito, declarando-o como veículo com “perda total real irrecuperável”, podendo ser alienadas somente suas peças. Por outro lado, veículos roubados ou furtados, mas recuperados pelas Seguradoras com perda financeira contratual de mais de 75%, são classificados também como “perda total” para fins de indenização integral, mas nem por isto sem condições de circulação, não carecendo de baixa no órgão de trânsito se a perícia o classificar como recuperável.

Demais porque, transformar veículos recuperáveis em “bens fora de comércio”, é pretensão que viola o direto constitucional de propriedade das sociedades seguradoras e, por conseguinte, da mutualidade por elas gerida.

 

Oportuno sempre realçar, sem a pecha da repetitividade, que o direito ao ressarcimento sub-rogatório conferido ao segurador na alienação de salvados reflete positivamente no cálculo do prêmio, em benefício do consumidor de seguro. A alternativa de se deixar o salvado com o segurado seria sem dúvida para ele a solução menos vantajosa, como menos vantajoso seria igualmente o aumento no custo do prêmio acarretado por qualquer cerceamento ao segurador na alienação dos salvados, como, por exemplo, ter que transformar em sucata um veículo técnica e juridicamente recuperável.

 

Já determinava a legislação federal anterior (Lei 8.722/93 e Decreto 1.305/94), que não teria sido revogada pelo novo Código de Trânsito Brasileiro – posto que legislação mais específica sobre o tema e que imprime os conceitos de veículo irrecuperável a que o Código de Trânsito não desceu tanto aos detalhes para fazê-lo -, a obrigatoriedade de baixa dos veículos considerados pela seguradora como irrecuperáveis e que, como tais, deveriam ser comercializados como SUCATA.

 

A Lei n.º 8.722/93, ao tornar obrigatória a baixa de veículos, vendidos ou leiloados como sucata, conferiu ao Poder Executivo, ouvido o CONTRAN, a tarefa de regulamentar a matéria, da qual se desincumbiu através, primeiramente, do Decreto n.º 1.305, de 09/11/94, que logo no seu artigo 1º assim preceituou, in verbis, para definir o veículo irrecuperável visando sua baixa obrigatória como sucata:

 

“Para efeito de aplicação deste decreto, considera-se irrecuperável todo veículo que em razão de sinistro, intempéries ou desuso, haja sofrido danos ou avarias em sua estrutura, capazes de inviabilizar recuperação que atenda aos requisitos de segurança veicular, necessária para circulação nas vias públicas.”                        

 

O mesmo Decreto, também já elencava as pessoas ou entidades que devem requerer essa baixa, dentre elas, o proprietário, o segurador sub-rogado, o leiloeiro, a autoridade etc.

 

Realmente, na aplicação do Código de Trânsito Brasileiro, ao referir-se a “perda total”, há de se buscar subsídios na lei especial por ele recepcionada, que imprime o conceito de veículo irrecuperável, por que só este será suscetível de ser retirado do mundo jurídico, de tornar-se coisa fora de comércio, sob pena de se estar violando o direito de propriedade fundamentalmente assegurado pela Constituição Federal.

 

Todo veículo, em princípio, pode ser considerado recuperável, por isso um bem tecnicamente recuperável não pode, sob pena de se afrontar, repita-se, direito de propriedade, ser tisnado como bem FORA DE COMÉRCIO, sofrendo uma drástica redução de sua condição de veículo automotor para simples sucata, como que uma capitis deminutio máxima.

 

Por questões meramente negociais e comerciais, segurador e segurado podem, perfeitamente, ajustar no contrato de seguro, como ajustado está, o pagamento do sinistro pelo seu valor de mercado, ou pelo valor declarado no contrato, a título de indenização integral (perda total construtiva, hoje denominada mais corretamente indenização integral, que se contrapõe à perda total real – ver Circular SUSEP nº 269/04), cumprindo a função indenitária do contrato de seguro de dano, considerando a melhor comodidade do segurado, consumidor, já que o custo da recuperação de um veículo sinistrado poderia ser maior ou menor em função dos critérios de preço e condições adotados por diferentes oficinas recuperadoras de veículos.

 

Outro fosse o entendimento, estaria ele em frontal desrespeito a princípios fundamentais esculpidos na Carta Maior, além do direito de propriedade, outros como o da isonomia, posto que se estaria tratando de forma diferenciada os proprietários sem seguro e as seguradoras enquanto proprietárias sub-rogadas (estas que são minoria em relação aos proprietários de veículos sem seguro), sem contar que tal outro entendimento, equivocado é bem verdade, também repercutiria a dano do consumidor, porque na medida em que os salvados de sinistros sejam considerados bens fora do comércio, o preço do seguro iria aumentar consideravelmente, já que a possibilidade de ressarcimento dos salvados repita-se á exaustão, integra o cálculo atuarial do prêmio.

 

Em se conjugando todos os dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, se terá o claro entendimento de que a “perda total” ali referida há de estar, inexoravelmente, associada ao conceito de veículo efetivamente irrecuperável, conforme a legislação especial por ele recepcionada, jamais nas condições contratuais e negociais estabelecidas entre segurado e segurador, no bojo de um contrato particular e sob o pálio das autoridades normatizadoras e de controle dessas atividades (CNSP e SUSEP).

 

Daí se permite entender que a “perda total” ali referida não pode nem deve ser aquela que não determine a real irrecuperabilidade do veículo, segundo o conceito emprestado pela lei específica, conforme antes mencionado, razão pela qual não será o jargão do segures utilizado em um contrato particular de seguro – tampouco o critério previsto no contrato e autorizado pelas normas da SUSEP para fins de caracterização da indenização integral securitária – reservado entre as partes, que determinará a irrecuperabilidade do veículo segurado, independentemente da forma como o sinistro será liquidado, de comum acordo com o segurado.

 

Por isso a já conhecida perda total construtiva, ou perda total recuperável, ou ainda indenização integral, não pode, pelo fato de a seguradora indenizar o segurado pelo valor de mercado do veículo, ou pelo valor ajustado na apólice, definir que o salvado havido por abandono sub-rogatório possa, só por isso, ser considerado irrecuperável. Só mesmo uma vistoria técnica ou pericial poderia quebrar a presunção de recuperabilidade do veículo sinistrado.

 

Não se olvide, ademais, que a própria legislação que rege a operação de seguro, desde há muito considera a distinção entre perda total construtiva e perda total real, esta sim, determinante da baixa do veículo salvado como sucata, enquanto aquela não necessariamente.

 

Com efeito, dispõe, in literis, a recente Súmula Vinculante nº 32/11 do Egrégio Supremo Tribunal Federal que

 

“O ICMS NÃO INCIDE SOBRE A ALIENAÇÃO DE SALVADOS DE SINISTROS PELAS SEGURADORAS”. (DOU de 24/02/11, página 1).

 

Posta assim a Súmula, importante para sua eficácia vinculante, que se pesquise o verdadeiro conceito de salvado de sinistro, tendo em vista não estar, por óbvio, inserido no seu verbete.

 

Como de outra forma não poderia ser, os salvados de sinistros adquiridos obrigatoriamente pela seguradora por abandono sub-rogatório (art. 12 da Circular SUSEP nº 269/04), assim se define independentemente do estado em que o bem se encontrar em razão do sinistro, pois segundo a norma regente (Circular SUSEP nº 269/04), o conceito de “perda total”, ou “indenização integral” pela dicção normativa em vigor, se caracteriza não necessariamente pelos danos materiais no próprio bem em si, mas pelos “prejuízos resultantes de um sinistro que atingirem ou ultrapassarem a quantia apurada a partir da aplicação de percentual (igual ou superior a 75%) determinado sobre o valor contratato” (art. 7º da Circular SUSEP nº 269/04). É dizer, o prejuízo patrimonial sofrido pelo segurado e causado pelo sinistro, que no caso de roubo ou furto costuma ser de 100%, independentemente de o bem em si não ter sofrido dano material algum e por isso recuperado intacto.

 

Até porque, o objeto do contrato de seguro de dano ou de coisa, nos exatos termos do artigo 757 do Código Civil brasileiro, não é a própria coisa (o veículo, por exemplo, no seguro de auto), mas o interesse legítimo do segurado sobre esse bem, que nada mais é do que a relação lícita, de valor econômico, sobre o bem (bem aqui considerado no seu sentido mais amplo) e, quando essa relação se encontra ameaçada por um risco, estaremos diante do interesse legítimo segurável. Daí por que o contrato de seguro não encerra obrigação de fazer, mas de dar ou de pagar quantia certa em dinheiro, nos termos do art. 776 do Código Civil, o que faz do seguro de dano um contrato que tem por apanágio o princípio indenitário, cuja satisfação da necessidade eventual do segurado é financeira e não a te ter o próprio bem de volta, isto é, uma indenização que lhe permita adquirir, querendo, outro bem equivalente (eis aí a importância da Tabela FIPE que aplacou as controvérsias antes reinantes sobre valor de mercado e valor determinado).

 

Não é por outra que o Dicionário de Seguros da FUNENSEG, página 193 de sua última e mais recente 3ª edição, de novembro de 2011, revista e ampliada, manteve a seguinte definição de SALVADOS DE SINISTROS:

 

“São os objetos que se consegue resgatar de um sinistro e que ainda possuem valor econômico. Assim são considerados tanto os bens que tenham ficado em perfeito estado como os que estejam parcialmente danificados pelos efeitos do sinistro”.

 

E esse conceito tem o aval do maior jurista de seguros do País, assim chamado de o nosso jurista maior do direito securitário. Refiro-me, obviamente, ao saudoso Dr. PEDRO ALVIM que, em escólios de sua multiconsagrada obra, “O Contrato de Seguro”, Forense Rio, 3ª edição, página 420, assim se expressou, para não deixar nenhum rebuço de dúvidas:

 

“Dá-se o nome de salvados aos remanescentes de sinistro, que abrange todos os bens segurados que ficaram em perfeito estado e aqueles que sofrerem danos, mas tenham ainda algum valor econômico”.

 

Não sem repisar que a possibilidade de o segurador sub-rogar-se nos direitos sobre os salvados é levada em conta no cálculo atuarial do prêmio, reduzindo o valor da prestação do segurado, portanto, em benefício da mutualidade, da coletividade da qual faz parte cada segurado. Por essa razão tal conceito não passou despercebido do Dicionário de Seguros, de ALEXANDRE DEL FIORI, da editora Manual Técnico de Seguros, edição 1996, que, à página 149, assim se expressou:

 

“SALVADOS – Termo utilizado para definir bens com valor econômico que escapam, sobram ou se recuperam após um sinistro, pertencentes ao segurador mediante indenização paga ao segurado e que serão alienados para minimizar os valores pagos”.

 

Enfim, salvadas são, desassombrada e indubitavelmente, as coisas com valor econômico que escapam ou sobram do sinistro, inteiros ou danificados, seja por colisão, incêndio ou roubo, que são formas de prejuízos causados pelo sinistro e cobertos pelos competentes seguros de dano.

 

É esse, em apertada síntese, o resumo de meu entendimento, sub censura dos doutos.

 

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