Seguro ambiental. Considerações especiais sobre projetos de lei que objetivam sua regulamentação, alterando dispositivos do DL 73/66, para tornar obrigatório seguro de responsabilidade civil do poluidor e instituir as suas regras básicas. Inconstitucionalidade.

RICARDO BECHARA SANTOS

Temos observado algumas iniciativas, louváveis por sinal, de projetos de lei visando a tornar obrigatório seguro de responsabilidade civil de danos ao meio ambiente, oportunidade em que temos afirmado que a garantia do risco ambiental, pelo seguro, somente seria concebível na sua forma acidental, com limites e desde que acompanhado de um forte coeficiente de prevenção. Do contrário, o tiro sairá pela culatra, quer dizer, o poluidor, que afinal encarnaria a figura do segurado já que não raro se trata de seguro de responsabilidade civil, acabaria por encontrar abrigo e estímulo na garantia do seguro para sentir-se ainda mais à vontade na sua vocação de poluir.

 

Relevante observar, desde já, que o princípio da prevenção qualifica-se hoje como um balizador de qualquer política moderna de meio ambiente, não também sem esquecer-se do princípio da precaução, tão bem revelado pelo Princípio 15 do ideário elaborado na Declaração do Rio de Janeiro de 1992.

 

Temos afirmado também que esses projetos, dentre os quais pode ser citado o PL de Lei Ordinária Nº. 2.313/2002, fonte de inspiração destas críticas, não poderiam prever ação de regresso contra o próprio segurado, considerando ser este o autor dos danos ambientais que se pretende garantir por um seguro de responsabilidade civil. Como igualmente não poderia estabelecer ao segurador a “obrigação”, muito menos em curto prazo, “de restabelecer o estado original do equilíbrio ecológico”.

 

Até porque, o problema ambiental, em todo o planeta, é tão transcendente, que não pode nem deve se resumir em questão indenizatória, muito menos o Poder Público transferir para o segurador privado os ônus, inclusive dos altos custos da prevenção, sendo talvez mais adequado do que a criação de uma seguradora única, ainda que estatal, para assumir os riscos ambientais, o próprio poder público enfatizar e incrementar o seu poder de polícia ambiental, que não se exaure, obviamente, com o embargo a essa ou àquela obra, a esse ou aquele desmatamento, enfim, devendo desenvolver, fortemente, seu múnus fiscalizatório e sancionatório, como, aliás, tem verberado o atual ministro do meio ambiente. O direito a um meio ambiente sadio foi explicitado pela Constituição da República Brasileira de 1988 como o primeiro direito intergeracional, “o direito mais relevante, de maior dimensão, pois pertine à própria potencialidade de subsistência da vida no Planeta” (ADI 126.780-0/8-00, Relator Desembargador Renato Nalini, TJ/SP).

 

O risco ambiental é por demais gravoso, talvez também por isso, como temos dito, o mundo inteiro não o quer, compulsoriamente. Sabe-se muito bem que, além da responsabilidade objetiva pura que preside o dano ambiental, está em franca evolução, na doutrina e possivelmente em jurisprudência próxima futura, a responsabilidade do poluidor por danos coletivos (emergentes, moral, lucro cessante, perda de chance etc.), que torna, por exemplo, titulares de pretensão indenizatória todos os moradores, digamos, de um balneário, de alguma forma atingidos, direta ou indiretamente, por vazamento de óleo na praia, para não citar outros exemplos. Há casos recentes, já analisados pelo judiciário, como os danos por vazamento de óleo na Bahia da Guanabara.

 

São elogiáveis iniciativas como que tais e louváveis os esforços de argumentação, que revelam autores estudiosos e particularmente preocupados com o planeta, afinal, o homem, predador mor do ecossistema, acha que a Terra pertence a ele, quando, em verdade, é o homem que pertence a Terra.

 

A propósito do artigo que me motivei escrever para esta edição, versando sobre “seguro ambiental”, permito-me fazê-lo comentando o projeto de lei ao inicio referido (PL de Lei Ordinária Nº. 2.313/2002), pois se trata de tentativa legislatória equivocada, que pretende alterar o art. 20 do Decreto-Lei nº. 73/66, para nele inserir mais um seguro obrigatório, o de “Responsabilidade Civil do Poluidor, pessoa física ou jurídica que exerça atividades econômicas potencialmente causadoras de degradação ambiental, por danos a pessoas e ao meio ambiente em zonas urbanas ou rurais“.

 

Os autores e defensores do projeto, entretanto, não se dão conta de que o DL 73/66 a que se pretende alterar foi recepcionado pelo art. 192 da CF com status de Lei Complementar, posto dispor sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, este programado para ser disciplinado por Lei Complementar a ser aprovada Pelo Congresso Nacional.

 

Além disso, a pretexto de estabelecer as condições básicas desse seguro, o projeto dá ao IRB (Instituto de Resseguros do Brasil) o poder de calcular o valor do prêmio, também sem considerar, em momento posterior de sua tramitação, a edição da Lei Complementar 126/2007, que dispõe sobre a política de resseguro, retrocessão e sua intermediação, as operações de cosseguro, as contratações de seguro no exterior e as operações em moeda estrangeira do setor securitário e altera o DL 73/66, confirmando também aí o status de lei complementar de que este se reveste. Lei Complementar essa que retira do IRB qualquer resíduo de competência para legislar sobre a matéria e muito menos para proceder a cálculos de prêmio em operações de seguro privado, tarefa restrita às próprias seguradoras, o que nem mesmo a SUSEP poderá fazê-lo a não ser mediante o exame das Notas Técnicas e Atuariais, até porque inconstitucional se afiguraria o chamado “controle prévio de preços”.

 

Afinal, com a abertura do resseguro no Brasil, todas as funções monopolistas antes atribuídas ao IRB são repassadas para o CNSP e a SUSEP, até porque, em um regime de livre concorrência onde o IRB passa à condição de empresa (economia mista) que atuará, embora com algumas reservas de mercado, concorrentemente com as demais resseguradoras que operarão nesse mercado de resseguros aberto, não faria qualquer sentido deixar com ele funções como que tais.

 

Tal já bastaria para se determinar o arquivamento do referido projeto de lei que, aliás, ao estabelecer as “condições básicas” para o seguro que pretende seja obrigatório, impõe penalidades às sociedades seguradoras que infrinjam as disposições dessa projetada lei, além de estabelecer que as seguradoras farão jus apenas a 58% da receita bruta do prêmio arrecadado, para arcar com as indenizações (sem limites), despesas administrativas, tributos, combate à fraude etc., sendo os restantes 42% repassados, respectivamente, para a União, os Estados e os Municípios (30%), e para o Fundo Nacional de Meio Ambiente (12%), livres de quaisquer desses ônus.

 

Isso também já seria suficiente para se tisnar de inconstitucional o projeto por violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sendo exemplo gritante de violação a esses princípios, como também ao princípio da isonomia, pois não há notícias de precedentes na legislação brasileira e no mundo de que algum outro segmento econômico tenha sido onerado com um “tributo” de alíquota tão perversa (42% da receita bruta do prêmio), restando ferido, por aí, também o princípio constitucional da propriedade pelo seu visível coeficiente confiscatório.

 

Uma lei, muito menos lei ordinária, jamais poderia impor a uma sociedade de seguro privado o ônus de contribuir com 42% de sua receita bruta de prêmios para o setor público, tornando-o sócio quase majoritário da operação, considerando que o percentual dos prêmios que sobra para a seguradora não está livre de todos os ônus e obrigações (indenizações cobertas pelo seguro em caso de sinistro, despesas, inclusive administrativas e de combate à fraude que assola, em crescente flagelo, o mercado segurador etc.). Tal exação, afrontosa à Constituição, não é “taxa” (não há serviço, específico, divisível, prestado ou posto à disposição do contribuinte), nem “preço público” (o serviço, mesmo que houvesse, não poderia superar o seu valor real), tampouco “empréstimo compulsório” (não há previsão de devolução e desobedecidas suas restritas hipóteses de instituição) e, como “imposto”, não se encartaria dentre aqueles atribuídos à competência da União. Como “imposto de competência residual”, teria que ser instituído por Lei Complementar (CF, art. 154), que de qualquer sorte jamais poderia acolher alíquota tão escorchante.

 

Pareceria mesmo um tributo com efeitos mais que de confisco, vedado pela Constituição Federal (art. 150, IV).

 

Além de não reunir o necessário coeficiente de razoabilidade e proporcionalidade, o que por si só já o enfermaria com a eiva da inconstitucionalidade, o projeto em causa atenta contra outros princípios constitucionais.

 

Ora bem, tratando-se de projeto de lei ordinária, peca por ferir princípio constitucional de reserva de competência legislativa, considerando que o mesmo estaria disciplinando matéria reservada à lei complementar, como a tratada pelo DL 73/66, que o projeto em causa pretende alterar, e pela LC 126/07. Tanto isso é verdade que foi apresentado ao Congresso Nacional, pelo governo federal, o Projeto de Lei Complementar nº. 249/05, para alterar o DL 73/66, dispondo sobre a política e operações de resseguro, seguro, cosseguro, retrocessão e dando outras providências, que se transformou na referida Lei Complementar 126/07.

 

O próprio STF, por mais de uma vez, firmou entendimento quanto à natureza de lei complementar do DL 73/66, uma delas foi na procedência da ADIN nº. 2.223 proposta pelo PT, julgando inconstitucional a lei ordinária nº. 9.932/99 exatamente porque esta lei ordinária havia alterado dispositivos do referido decreto-lei, considerando que este estatuto legal fora recepcionado pelo art. 192 da CF/88 como lei complementar.

 

Restaria, portanto, ofendido, desavisadamente, o princípio da reserva de competências, porque, ademais, o projeto invade a competência da Lei Complementar de que se revestem os estatutos legais acima referidos que regulamentam o funcionamento e operações das sociedades seguradoras, ao menos enquanto não for editada a lei complementar programada pelo art. 192 da Carta Maior. Dá-se, aí, a medida de que só uma lei complementar pode, legitimamente, disciplinar matéria que afete o funcionamento e as operações do setor de seguro, por isso uma lei ordinária não teria estatura hierárquica suficiente para pura e simplesmente alterá-los, quanto mais para, assim o fazendo, criar situações que afetam o funcionamento e as operações das sociedades seguradoras, como seria o caso de se impor como obrigatório um seguro que as seguradoras não pretendem operar tal como ali proposto.

 

Nesse conseguinte, o projeto em foco acaba igualmente comprometendo os princípios da economia de mercado, os das livres concorrência e iniciativa a que alude o art. 170 da CF, este que, ao desenhar os cânones da Ordem Econômica e Financeira, proclama que a mesma há de ser fundada não só na valorização do trabalho humano, mas na livre iniciativa, calcada, dentre outros, no princípio da livre concorrência e busca do pleno emprego.

 

Insta lembrar que a livre iniciativa, da qual a livre concorrência é uma de suas nuanças, é inscrita não só no pórtico da Constituição como fundamento da organização republicana (art. 1º, IV), mas também no título da Ordem Econômica e Financeira, como um de seus princípios cardeais (art. 170, caput e parágrafo único). Ela se expressa duplamente: é liberdade de acesso ao mercado e liberdade de exercício da atividade empresarial. A primeira observação a ser feita, em relação a esses dois aspectos da livre atividade empresarial, é que nenhuma restrição ou redução do âmbito da liberdade constitucional há de ser admitida fora das hipóteses expressamente previstas no texto da Constituição Federal. Os únicos setores econômicos em que se pode vedar o acesso ou exercício livre da iniciativa privada são os que a própria Constituição reservou, explicitamente.

 

O projeto de lei ordinária em comento, por conseguinte, estaria comprometendo de algum modo tais princípios, posto vulnerar a liberdade de as próprias empresas operarem com os seguros, facultativos ou não, que melhor se ajustem à sua política comercial.

 

De tudo também decorre não haver razão plausível que pudesse justificar a desproporção entre o motivo do projeto de lei em causa e o tamanho de seu desgaste para o mercado segurador e a reversão do custo para a mutualidade, o que faz dele um projeto, data venia, desarrazoado e desproporcional. Por isso a Constituição alberga o princípio da razoabilidade, também o da proporcionalidade, como parâmetro de valorização dos atos do Poder Público, nomeadamente o que elabora leis, até para inferir se eles são informados por um valor superior que o justifique. Princípio esse que é mais fácil de ser sentido do que conceituado, se diluindo em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão subjetiva.

 

Razões, portanto, existem de sobejo que justificam a impugnação do PL em referência, quer de mérito, quer em face da Constituição da República, pelo vício de inconstitucionalidade de que se ressente, mormente considerando a decisão do Plenário do STF na já aqui referida ADIN, que sufragou o entendimento de que o DL 73/66, objeto da alteração almejada pelo referido projeto de lei ordinária, tem status de Lei Complementar, mesmo no que tange a dispositivos seus que aparentemente poderiam não se referir à Lei Complementar programada pelo art. 192 da CF, razão pela qual, para se alterar o seu art. 20, mister também seja mediante Lei Complementar, já que a estrutura da alteração projetada atinge a operação e o e funcionamento das sociedades seguradoras. Tais precedentes atraíram a matéria para o âmbito da lei complementar.

 

Demais, permito-me endossar as sempre lúcidas e especializadas palavras de WALTER POLIDO, que orientam, operacional e tecnicamente, a rejeição do projeto em apreço, demonstrando, inclusive, que não estaríamos na contramão do mundo, eis que, de qualquer forma, de nada adiantaria escrever a obrigatoriedade de um seguro para o “segurado”, se não há como impor a contrapartida de uma correspondente obrigatoriedade para a “seguradora privada”, já que o texto constitucional lhe protege contra a coerção na aceitação de um risco para ela inaceitável, ou que simplesmente não queira aceitar escudada pelo princípio, fundamental, constitucional, da livre iniciativa. Com a gravidade de, em se tornando seguro de responsabilidade civil legalmente obrigatório, ainda caber ação direta do terceiro contra a seguradora nos termos do art. 788 do Código Civil e sem que seja necessária a verificação de culpa posto tratar-se de caso típico de responsabilidade civil objetiva. O projeto, portanto, já nasceria carente de efetividade.

 

Enfim, como bem ponderou POLIDO, a obrigatoriedade de tal seguro não servirá de panaceia para os males da poluição, ao contrário, se não for bem estruturado para, por exemplo, só admitir a indenização em caso de sinistro acidental, como também se não for acompanhado de um vigoroso critério de prevenção e limites indenizatórios, poderá até, ao revés, estimular a degradação do meio ambiente, na medida em que o “poluidor”, ou agressor do ecossistemas, se sinta protegido pelo seguro e daí se acometa de um possível e bem provável relaxamento. O projeto, bem por isso, vai na contramão dos princípios informadores do direito ambiental.

 

Realmente, conforme as várias razões apresentadas por WALTER POLIDO contra a obrigatoriedade deste seguro no Brasil, inclusive aquelas que foram divulgadas pela Fenaseg no “2º Plano Setorial da Indústria de Seguro – 2004”, não haveria muito que acrescentar a respeito, salvo, como pondera POLIDO, “o fato de que as Seguradoras não poderão oferecer coberturas abrangentes para este segmento tão especial de risco – para todos os segurados – e para o qual sequer existe infraestrutura adequada implantada no mercado segurador nacional (especialistas em subscrição; especialistas em inspeções e regulações de sinistros etc.). Nada disso se instala da noite para o dia e não será a obrigatoriedade do seguro a mola propulsora, com toda a certeza”.

 

Observa ainda POLIDO, que o Governo sempre se esquiva de assumir responsabilidades ambientais, mas não deve ser por isso que se possa admitir como válido o repasse dessa responsabilidade para a iniciativa privada, sem a participação concentrada e específica do próprio Governo Federal. Se os Órgãos Estatais não são eficientes e não são, será impossível repassar para o seguro a solução de todas as ineficiências concernentes ao tema. Pura ilusão de quem nada conhece de seguro e de sua filosofia contratual-jurídica. O Estado já criou vários “fundos” de reparação ambiental e nada conseguiu de concreto a respeito, ao longo de décadas. Onde estão os fundos e seus recursos em prol do meio ambiente agredido no Brasil?! As Seguradoras não têm o “poder de polícia” de que dispõe o Estado e, por isso mesmo, nada poderão fazer na área ambiental sozinhas e, de igual lógica, sequer poderão substituir as tarefas de competência original do Estado – nas três esferas da administração pública (municipal, estadual e federal).

 

Enfatiza o especialista que “cabe ao Estado conceder, negar e suspender licenças de funcionamento, fiscalizar, monitorar, punir, multar, etc. os poluidores e não às Seguradoras certamente. Jamais tais atividades poderão ser exercidas pela iniciativa privada; este ponto é crucial para o Deputado e para qualquer outra pessoa/profissional não afeto ao contrato de seguro entender que “obrigatoriedade” não é remédio para o problema ambiental existente no Brasil e no mundo. Fora o fato de que prevalece entre nós a liberdade de iniciativa, nos termos da CF. Nenhuma Seguradora poderá ser obrigada a aceitar um determinado risco ambiental que ela entenda não dispor de condições técnicas adequadas.”

 

A propósito, vem decidindo o STJ pela responsabilidade do Estado, ao menos solidária com o poluidor direto, mormente quando não cumpre, satisfatoriamente, com o dever de fiscalização, ou sendo omisso ao não adotar medidas cabíveis. Colhe-se de tais decisões pretorianas, que a responsabilidade solidária do Estado nasce quando, devendo agir para evitar o dano, mantém-se inerte ou age de forma deficiente. Decisões do Tribunal reiteram que as entidades de direito público podem e devem ser arroladas no polo passivo de ação civil pública, quando, por exemplo, expedem alvarás sem autorização dos órgãos de proteção ambiental, ou por omissão, ou quando falham no dever de vigilância. E reforça os fundamentos de tais decisões cláusula constitucional que impõe ao Poder Publico o dever de defender e preservar o meio ambiente para presentes e futuras gerações.

 

A propósito, vale ilustrar a assertiva acima, com a ementa da mais recente jurisprudência do STJ, Segunda Turma, que adiante se insere como amostra, dando conta da transcendente responsabilidade do Poder Público no trato com o meio ambiente:

 

EMENTA – Danos Ambientais. Responsabilidade Solidária. A questão em causa diz respeito à responsabilização do Estado por danos ambientais causados pela invasão e construção, por particular, em unidade de conservação (parque estadual). A Turma entendeu haver responsabilidade solidária do Estado quando, devendo agir para evitar o dano ambiental, mantém-se inerte ou atua de forma deficiente. A responsabilização decorre da omissão ilícita, a exemplo da falta de fiscalização e de adoção de outras medidas preventivas inerentes ao poder de polícia, as quais, ao menos indiretamente, contribuem para provocar o dano, até porque o poder de polícia ambiental não se exaure com o embargo à obra, como ocorreu no caso. Há que ponderar, entretanto, que essa cláusula de solidariedade não pode implicar benefício para o particular que causou a degradação ambiental com sua ação, em detrimento do erário. Assim, sem prejuízo da responsabilidade solidária, deve o Estado – que não provocou diretamente o dano nem obteve proveito com sua omissão – buscar o ressarcimento dos valores despendidos do responsável direto, evitando, com isso, injusta oneração da sociedade. Com esses fundamentos, deu-se provimento ao recurso. Precedentes citados: AgRg no Ag 973.577-SP, DJ 19/12/2008; REsp 604.725-PR, DJ 22/8/2005; AgRg no Ag 822.764-MG, DJ 2/8/2007, e REsp 647.493-SC, DJ 22/10/2007. REsp 1.071.741-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 24/3/2009.” Os grifos são nossos.

 

Ressalta mais aquele estudioso do tema, que esse seguro “não é obrigatório na França, muito menos nos USA e tão pouco na Suécia, até onde se pode pesquisar para a elaboração do seu novo livro sobre o tema (editado pela RT Editora). Não se pode comparar os mercados seguradores e seus respectivos estágios de desenvolvimento – Brasil vs. USA/França/Suécia. Os países que adotam a obrigatoriedade o fazem somente na condição do seguro ser apenas “mais uma” entre as “diversas opções de garantia” que podem ser apresentadas pelo empreendedor de qualquer atividade. A nossa Lei de RC de Energia Nuclear (n.º 6.453/77) apresenta tal solução “moderna”, mesmo sendo de 1977. O seguro, na condição de única garantia não pode prosperar, mesmo em países desenvolvidos e cujos mercados são muito superiores ao nosso em termos tecnológicos. Seria interessante propor que o seguro seja enquadrado apenas na condição de “mais uma entre outras garantias financeiras”, tal como acontece em países mais desenvolvidos e também no nosso no caso da lei de RC Nuclear já citada. O caráter “Facultativo” deste tipo de seguro é muito mais salutar para o Brasil. Veja o caso da Unibanco-Aig que lançou produto para o segmento e que certamente não poderá abranger todos os riscos que lhe serão submetidos. Se fosse obrigatório – aquela Seguradora não teria, certamente, lançado um produto tão abrangente e complexo como aquele que ela lançou”.

 

Em se conjugando o texto do projeto em causa com o da “justificação” que o acompanha, pode-se de pronto perceber que o objetivo não é outro senão o de transferir para o segurador privado as conhecidas deficiências do setor público, ficando este com as benemerências e o setor privado com os ônus.

 

Seria, portanto, um seguro que, apesar de obrigatório para o “poluidor”, impossível de ser regulamentado e ou aceito pelas sociedades seguradoras, não só por se configurar incompatível com os fundamentos do contrato de seguro, mas também por ser esta bastante vulnerável à fraude.

 

Fosse um seguro aceitável, o próprio mercado se encarregaria, facultativamente, de propor sua regulamentação e operação, dentro do salutar princípio da livre iniciativa, sendo, portanto írrita e despicienda uma lei para forçar a tanto a iniciativa privada.

 

Por mais cuidados que se tenha na sua regulamentação, tal garantia acabaria servindo para “solucionar” problemas do poluidor e do Estado diante dele, e, por via inversa, onerar o segurador privado, e o “poluidor”, fiado no seguro, se acomodaria ou se encorajaria na sua vocação predatória.

 

Ainda que assim não fosse, seria um seguro de risco tão elevado, que o custo da garantia não o viabilizaria, técnica, operacional, econômica e financeiramente.

 

Posto assim, não seria demasiado mencionar que a instituição do seguro não se presta para “soluções” de tal natureza, muito menos compulsoriamente, tampouco deve ser vista como panacéia de todos os males. Isto porque o risco de que cuida o seguro privado, primeiramente, há de estar calcado no interesse legítimo segurado a que alude o art. 757 do Código Civil, do que evidentemente se afastaria aquele que se filia à idéia de fazer-se substituir o poluidor, nos seus efeitos econômicos, pelo segurador, muito menos no contexto acima mostrado, sendo desde a origem nulo o objeto do contrato de seguro, pela ausência de um interesse legítimo segurável.

 

O projeto em referência, pelo fato de propor a obrigatoriedade de um seguro privado inviável, acaba também violando por antecipação o princípio da efetividade e operabilidade, na medida em que, se convertido em lei ordinária, não teria eficácia, a uma porque natimorta pela enfermidade congênita da inconstitucionalidade, a duas, porque não poderia ganhar o selo da obrigatoriedade e porque, mesmo facultativamente, não haveria um segurador sequer que, em condições técnicas e atuariais normais, pudesse operá-lo, tampouco aceitar o risco que o envolve nos termos propostos. Por isso também restariam violados aqueles outros já citados princípios constitucionais como os da razoabilidade e proporcionalidade e, de outra parte, também princípios constitucionais como os da livre iniciativa e economia de mercado, na proporção em que, impondo um seguro que a rigor só seria obrigatório para o poluidor, deixaria no vazio da unilateralidade essa suposta obrigatoriedade, uma vez que lei infraconstitucional alguma poderia jamais ter legitimidade para obrigar o segurador privado a aceitar riscos por ele considerados inaceitáveis, ou que simplesmente não pretenda assumir, resvalando daí também para malferir o princípio constitucional de proteção à propriedade privada, igualmente fundamental, se acaso impusesse ao segurador privado a subordinação de seu patrimônio para garantia de riscos impossíveis ou impróprios, ou que não se afinem com sua política de aceitação.

 

A propósito do princípio constitucional por último citado, não seria demasiado lembrar de que é opinião doutrinária assente no sentido de que o conceito de propriedade privada e de sua proteção, em texto constitucional, tem alcance mais amplo do que no sistema do direito privado, por isso, quando as constituições a ele aludem, o fazem referindo-se, largamente, a todo o direito de conteúdo patrimonial e não apenas ao direito real de usar, fruir e dispor de bens determinados, daí se tratar de uma proteção de amplo alcance, coibindo as violações diretas ou indiretas, próximas ou remotas, mediatas ou imediatas à propriedade da pessoa, física ou jurídica.

 

Quanto ao princípio da razoabilidade, lembre-se ainda de que o legislador constitucional o criou como parâmetro de valorização dos atos do Poder Público, até para inferir se eles são informados por um valor superior que o justifique e que deve ser também observado, e com mais forte razão ainda, na elaboração das leis. É razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário, excessivo, e caprichoso, o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes. A razoabilidade, pois, é a adequação de sentido que deve haver entre os elementos utilizados pelo Poder Público, mormente na elaboração das leis. E, concessa venia, nada disso estaria presente no projeto de lei em causa.

 

Daí porque referido projeto termina malferindo igualmente o também citado princípio da proporcionalidade, que no dizer de CANOTILHO, “cuida-se de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos“. Aqui, não haveria danos causados pela inexistência do seguro que se propõe, muito ao contrário na medida em que com ele o poluidor sentir-se-ia de certo modo relaxado na sua vocação de poluir, nem vantagem pelo fato de sua existência na medida em que se trata de seguro inaceitável pelas seguradoras privadas. Ainda com CANOTILHO, trata-se “de uma questão de medida ou desmedida, para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim…” E, como se disse, a compulsoriedade de um seguro com tal desenho, decerto ocuparia, nessa balança, o prato das “desvantagens”. Se houvesse alguma vantagem nesse seguro obrigatório, jamais superaria as desvantagens que representa.

 

Enfim, o projeto contraria a lição do STF, que sufraga o entendimento de que o substantive due process of law (devido processo legal) reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas, físicas ou jurídicas, contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade e proporcionalidade.

 

Acresça-se que a obrigatoriedade que se propõe dar ao seguro rascunhado no projeto de lei em causa, também carrega a eiva da inconstitucionalidade porque certamente a grande maioria dos poluidores, mormente pessoas físicas, não poderia ser compelida a realizar um seguro, para suprir providências que são do Estado (com seu poder de vigilância e coerção), que não teria condições de assumir e bancar, arcando com os prêmios vultosos que certamente seriam cobrados para a assunção desse risco pelo segurador, que acabaria tendo um vulto próximo do valor dos danos incomensuráveis ao meio ambiente. Sem falar do constrangimento de se criar uma obrigatoriedade ineficaz, na medida em que não haveria organismo que pudesse legitimamente compelir o segurador privado a aceitar riscos impossíveis como que tais.

 

Não seria demasiado trazer a colação o registro de que, em matéria ambiental, é fundamental privilegiar o chamado Princípio da Prevenção, como ensina ÉDIS MILARÉ (Direito do Ambiente, SP, RT 202, p. 106), citado em elogiável artigo de Silvia Zeigler, publicado às páginas 112 e seguintes da Revista do Advogado da AASP nº. 102, de março de 2009:

 

“O Princípio da Prevenção é basilar em Direito Ambiental, concernindo à prioridade que deve ser dada às medidas que evitem o nascimento de atentados ao ambiente, de modo a reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar a sua qualidade.

 

Tem razão Romón Martin Mateo quando afirma que os objetivos do direito ambiental são fundamentalmente preventivos. Sua atenção está voltada para momento anterior ao da consumação do dano – o do mero risco. Ou seja, diante da pouca valia da simples reparação, sempre incerta e, quando possível, excessivamente onerosa, a prevenção é a melhor, quando não a única, solução”.

 

Acima de tudo, entretanto, o projeto de lei em análise malfere, a não mais poder, princípios primários do direito ambiental, notadamente o princípio da prevenção. Neste fecho, é importante explicitar o que, sem margens a tergiversações, o que estatui o Princípio nº. 6 da Carta da Terra: “Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução”. O projeto aqui comentado, bem por isso, não resolve o problema ambiental, menos ainda diminui o risco, mas sim o agrava, na medida em que resume os danos ambientais a uma mera operação de ressarcimento, certo que, na espécie em comento, prevenir é melhor que reparar, proteger é melhor que recompor, nenhuma lesão ao meio ambiente é completamente reparada ou recomposta, como bem assinala, dentre o mais, o ilustre e sempre presente FRANCISCO CARLOS ROSAS GIARDINA, colega de sociedade da Miguez de Mello Advogados, que, a este tema, me concedeu sua valiosa colaboração.

 

Com tais considerações, embora louvando a iniciativa da autoria do Projeto de Lei do nobre Deputado, com todo respeito não merece o mesmo prosperar, impondo-se a sua rejeição como medida de direito e de justiça.

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