Seguro de automóvel – breve comentário ao voto do ministro Ricardo Cueva, no resp 1485717, que reverte orientação do STJ para admitir a excludente do risco da embriaguez mesmo que o condutor não seja o próprio segurado

    Por RICARDO BECHARA SANTOS

 

Vale a pena comentar, ainda que em breve síntese, recentíssima decisão do STJ no RESP 1.485.717 em que foi Relator o eminente Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, cujo voto condutor reverte, por decisão unânime, orientação data venia equivocada da Corte, segundo a qual a excludente do risco da embriaguez por agravamento de risco só era admitida quando o próprio segurado conduzia o veículo.

 

Colhe-se do voto em comento que basta o veículo estar sendo conduzido por pessoa embriagada, independentemente de ser ela o segurado ou não, para legitimar a excludente prevista no contrato de seguro de automóvel por agravamento intencional do risco, caracterizando daí a conduta como de culpa grave e dolo eventual, consoante o disposto no artigo 768 do CC.

Cuidou o caso julgado de um segurado, pessoa jurídica (transportadora de carga), cujo condutor do caminhão sinistrado deu causa ao sinistro com perda total pelo fato de sua embriaguez, não colhendo frutos a arguição da segurada de que ao entregar o veículo ao seu motorista estava ele em plenas condições de dirigir e que, no seu entendimento, a entrega do veículo a pessoa que no momento estava sóbrio por si só não traduz agravamento intencional do risco, conforme, aliás, orientação da própria Turma, que no caso foi derribada pelo voto condutor do eminente Relator no presente julgamento, seguido pela unanimidade dos demais Ministros.

Realmente, consoante o artigo 768 do Código Civil, “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”, por isso se convenceu o Relator e a unanimidade da Turma, de que a configuração do risco agravado não pode se dar somente quando o próprio segurado se encontra alcoolizado na direção do veículo, abrangendo também os condutores principais (familiares, empregados e prepostos), pois o dispositivo ao referir-se ao segurado, quis também se referir a todos aqueles por ele autorizados a fazê-lo, tais como prepostos, empegados, familiares dentre outros. Nessa senda, concluiu o julgado que a direção do veículo por um condutor alcoolizado já representa agravamento essencial do risco, sendo lícita a cláusula do contrato de seguro de automóvel que preveja, nessa situação, a exclusão da cobertura securitária, ressaltando que o álcool altera as condições físicas e psíquicas do motorista, o que aumenta a probabilidade de acidentes, considerando mais que o seguro não pode servir de estímulo para o aumento de riscos e que sua função social é valorizar a segurança. Até porque, no caso de segurado pessoa jurídica, é evidente, até evidentíssimo, que a empresa é uma abstração, uma ficção, por isso é que ela atua e age através de seus prepostos, dirigentes e empregados, sabido, por óbvio, que empresa não bebe nem se embriaga, mas nem por isso a excludente do risco de embriagues no contrato de seguro poderia ser reduzida a oblívio, a verdadeira letra morta.

Ponto destacado do voto foi o de que o segurado deve se portar como se não tivesse seguro, “devendo abster-se de tudo que possa incrementar, de forma desarrazoada, o risco contratual, sobretudo se confiar o automóvel a terceiro que queira dirigir embriagado, o que feriria a função social do contrato de seguro, por estimular comportamentos danosos à sociedade”.

Certo de que o princípio da boa-fé objetiva é peculiaridade fundamental do contrato de seguro, foi também possível concluir que o segurado, quando ingere bebida alcoólica e assume a direção do veículo ou empresta-o a alguém desidioso, que irá, por exemplo, embriagar-se (culpa in eligendo ou in vigilando), frustra a justa expectativa das partes contratantes na execução do seguro, pois se rompe com os deveres anexos do contrato, como os de fidelidade e de cooperação, máxime diante das características próprias do seguro em que a mutualidade é pedra angular e fundamental e, à luz dos fundamentos do contrato de seguro, impõe-se a presunção de que o risco foi agravado e do nexo de causalidade entre a embriaguez e o sinistro, salvo se demonstrado que o sinistro ocorreria independentemente do estado de embriaguez (como culpa exclusiva de outro motorista, falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, animal na estrada, entre outros).

Aliás, a decisão ora analisada guarda estreita conexão com a recente Súmula 575 do STJ, cujo enunciado estabelece que “constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor à pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo”.

A Corte, assim, uniformizou o entendimento de que é crime de perigo concreto ou abstrato o simples fato de permitir, confiar ou entregar veículo a pessoa não habilitada, embriagada ou drogada no momento do sinistro, reforçando também a tese do agravamento intencional do risco conforme o citado artigo 768 do CC e a presunção do nexo causal. É que os verbos “permitir, entregar ou confiar”, são amplos o suficiente para alcançar a hipótese de veículos conduzidos por pessoas inabilitadas, embriagadas ou drogadas com a aquiescência do segurado, facilitando acesso às chaves do veículo, é dizer, mesmo que não haja a “entrega” do mesmo, bastando que ocorra alguma forma de permissão, mormente em relação a filhos menores do segurado, como é comum ocorrer, até porque os pais  respondem objetivamente pelos atos dos mesmos, consoante artigos 932 e 933 do CC, assim como o preponente e o patrão pelos atos dos prepostos e empregados. Posto assim, o segurado que entrega, permite ou confia a condução do veículo à pessoa que venha a se envolver em acidente estando alcoolizado, como sucedeu no caso julgado, assume o risco de perder a garantia do seguro, é dizer, a perder o próprio seguro e não apenas o direito à indenização. É que o citado art. 310 do CTB estabelece um dever, mais que isso uma obrigação, de não permitir, confiar ou entregar a direção de um automóvel a determinadas pessoas, indicadas no tipo penal, com ou sem habilitação, com problemas psíquicos ou físicos, embriagadas ou drogadas, ante o perigo geral que encerra a condução de um veículo nessas condições.

A importância da evolução da jurisprudência para o setor de seguro neste caso se mostra cada vez mais evidente, razão pela qual acabamos de editar a nossa “COLETÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES SOBRE SEGURO”. Importância não só da jurisprudência, na medida em que os arestos jurisprudenciais invariavelmente se apoiam em excertos doutrinários, e vice versa, em permanente e salutar “diálogo de fontes”. Tanto a jurisprudência cita a doutrina como a doutrina também costuma se apoiar na jurisprudência. No caso em destaque vê-se que, para a reversão da orientação que antes vigia no STJ, ponderou o ilustre Relator em seu voto que “o tema merece nova reflexão pelo Superior Tribunal de Justiça, considerando-se, principalmente, a interação que deve haver entre os princípios do Direito Securitário e o novo Direito Civil”. Não sem lembrar de que tanto o CC quanto o CDC adotam o sistema de cláusulas abertas, no chamado “Civil Law”.

E a doutrina no caso foi decisiva para o convencimento da Corte nessa reversão de orientação, tanto que o voto condutor do ilustre relator citou, dentre outros, textos doutrinários produzidos nas oficinas de trabalho dos Grupos temáticos da AIDA- Brasil, que no caso podemos citar os textos de FERNANDES, Marcus Frederico B. e CUNHA, Lucas Renaut, com o tema “Supressão de Cobertura Securitária x Motorista Sob Influência de Álcool, InAspectos Jurídicos dos Contratos de Seguro”, organizado por CARLINI, Angélica e SARAIVA NETO, Pery, ali mostrando que é certo que todo consumo de álcool é feito com o deliberado propósito de submeter-se a seus efeitos, ciente [o motorista], inclusive, de que isto alterará a sua própria capacidade de conduzir veículos automotores, distanciando-o da aptidão que tem o ‘homem comum’, a qual justamente fora utilizada pelo segurador para mensurar riscos e fixar os prêmios“.

Muito acertada foi a decisão agora erigida na Terceira Turma do STJ, não só por concluir pela inafastabilidade da culpa grave da empresa e consequente perda da garantia securitária por agravamento intencional do risco, como também ao aplicar o “princípio do absenteísmo, que emana da conjugação das regras dos artigos 762 e 768 do Código Civil, quanto a vedação de qualquer conduta agravadora do risco também por filhos e empregados do segurado, mormente quando estes se encontram indicados como principais condutores” (aqui mais uma vez a doutrina produzida nas oficinas da AIDA pôde influenciar o julgador, com texto de ANGOTTI JUNIOR, ROBERTO E SARRO, MARIANA KALUDIN, abordando o tema “Agravamento do Risco Segurado Por Embriaguez ao Volante”, da mesma obra coletiva antes citada “Aspectos jurídicos dos Contratos de Seguro”).

Só não foi feliz, permita-me máxima vênia, o ilustre Relator, quando ressalva, desnecessariamente, aliás, porque no caso não houve dano à terceiro, que esse mesmo entendimento não poderia se aplicar à cobertura de responsabilidade civil. Até porque, se o entendimento é válido para a cobertura de casco conforme conclusão da própria decisão em comento, válido há de ser também para a de responsabilidade civil, porque igualmente nesta garantia o dolo e a culpa grave (por conseguinte o dolo eventual) são excludentes do direito à indenização, não havendo como se admitir dois pesos e duas medidas.

A propósito, os ministros da 2ª turma do STF na sessão do dia 1º/12/15, em sede de Habeas Corpus (HC 127774), proferiram decisão unânime que ilustra e reforça a legitimidade da excludente do dolo eventual, culpa grave, ou culpa consciente, nos seguros de RCF, mantendo a classificação de homicídio doloso em acidente de trânsito, causado pelo condutor de uma camionete após a ingestão de bebida alcoólica. Vencido no STJ, o autor do dano, tentando afastar o dolo eventual com a desclassificação para homicídio culposo, no STF não teve melhor sorte, eis que o Relator do HC, ministro TEORI ZAVASCKI – tragicamente falecido -, salientou em seu voto que a imputação de homicídio doloso na direção de veículo automotor supõe a evidência de que o acusado assume o risco pelo possível resultado danoso, explicando que a dificuldade na especificação desses delitos costuma estar nos “estreitos limites conceituais” que ligam o dolo eventual, a culpa grave e a culpa consciente. Também a propósito, escreveu o eminente Desembargador SYLVIO CAPANEMA, em artigo sobre embriaguez para a Revista Jurídica de Seguros da CNSG – no contexto em que a culpa do segurado não exonera a seguradora nos seguros de responsabilidade civil facultativos (RCF) – que “(…) há situações, entretanto, em que a culpa do autor do dano é de tal maneira grave (culpa grave) que se torna irmã siamesa do dolo, com ele se confundindo. É o que a doutrina penal chama de dolo eventual ou culpa consciente. Daí a razão de estabelecer o artigo 768 do Código Civil, lembra o Desembargador, que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.

O STJ, aliás, põe o dolo e a culpa grave em um mesmo patamar para fins de aferição ou aplicação da responsabilidade civil, por exemplo, ao eximir aquele que dá carona, se não obrou com dolo ou culpa grave. É o que se extrai de sua Súmula nº 145, segundo a qual,no transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.

Eis aí, nesse tópico, um bom contraponto aos que defendem o entendimento de que a culpa grave, como a consciente, não poderia ou não deveria ser objeto de exclusão nos seguros de responsabilidade civil.

Todavia, o acórdão do STJ aqui comentado deixa um ponto para estudos das competentes oficinas da AIDA, que estou certo não encontrarão dificuldade, tampouco medirão esforços, para produzir texto doutrinário no sentido de que o mesmo entendimento é válido também para a garantia de responsabilidade civil. Não sem lembrar de que o direito da vítima não ficará prejudicado na medida em que restará a ele ação indenizatória contra o causador do dano ou mesmo contra o proprietário do veículo.

Quid juris se houve a caracterização de um empréstimo ou comodato do veículo a pessoa não elegível no perfil como condutor habitual? Deveria o segurado, comodante, responder pelos atos do comodatário, pelos danos que ele causar a terceiro? Se não, decerto que a cobertura de RCF igualmente não operaria já que depende da responsabilidade civil do segurado. Mas isso já seria tema para outro artigo, razão pela qual deixo a questão no ar, não sem antes apontar as seguintes reflexões.

Ainda nos referindo à cobertura de Responsabilidade Civil Facultativa, sustentável quer nos parecer a recusa sem maiores indagações, de modo que os danos causados às vítimas pelo veículo sejam suportados por quem diretamente os causou, no caso aquele que o conduzia, sem qualquer relação de preposição com o segurado.

 

Realmente, adotando o direito brasileiro como regra a teoria subjetiva da culpa (artigos 186 e 927 do CC), sem ela não pode responder o proprietário do veículo. O só fato de ser proprietário, não induz, por presunção, responsabilidade pelo dano causado pelo veículo, tampouco se amolda à hipótese do risco da atividade a que alude o parágrafo único do art. 927 do Código. Por isso as exceções a essa regra, ou seja, as hipóteses de responsabilidade civil objetiva, que independem de culpa, necessariamente para operar hão de estar previstas expressamente na lei.

 

Com efeito, diz o parágrafo único do art. 942 do CC, que “são solidariamente responsáveis com os autores, os coautores e as pessoas designadas no art. 932″.

 

Como se sabe, a solidariedade não se presume, mas decorre da lei ou da vontade das partes (art. 265 do CC). Daí porque, se o proprietário não é coautor – ou cúmplice como dizia a redação do código velho em seu art. 1.518 do condutor do veículo e se este não é filho menor do proprietário, sob sua autoridade e companhia; seu tutelado ou curatelado nas mesmas condições; seu empregado, comissário, serviçal ou preposto no exercício do trabalho ou em razão dele; enfim, qualquer daquelas pessoas indicadas do art. 932 do mesmo Código, não se teria, legal e juridicamente, como atribuir a responsabilidade civil ao proprietário do veiculo por danos causados por alguém que estava na posse direta do veículo quando por aquele emprestado, ou dele desapossado contra a sua vontade ou vigilância, na medida em que não se possa atribuir a culpa do mesmo no empréstimo à pessoa sabidamente capaz e habilitada para conduzir veículos, ou ainda no caso de furto de uso, que importa no desapossamento do bem furtivamente, ainda que com o propósito de devolvê-lo, porém sem o consentimento do proprietário. Demais também porque, o comodato ou empréstimo a título gratuito do veículo, tácito ou expresso, perfaz-se com a simples tradição do objeto (art. 579 do Código), a ele se transferindo a posse e responsabilidade, tanto que diz o art. 582 que o comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada.

 

Nem se alegue com o fato de o art. 933 haver estabelecido que “as pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”. Realmente tal dispositivo inova em relação ao correspondente do Código Revogado (art. 1.523) para determinar a responsabilidade objetiva das pessoas referidas no art. 933. Todavia, tal não se estende ao comodato posto que nem comodante nem comodatário sejam mencionados na lista taxativa ali referida.

 

Saindo, portanto, o veículo do poder de vigilância ou custódia do proprietário, posto que transferido para o comodatário, só a este cabe responder pelos danos que venha a causar a terceiro. Responderá, todavia, o proprietário, por culpa “in eligendo“, se acaso ficar demonstrado o empréstimo do carro a pessoa sabidamente desqualificada para conduzi-lo ou qualquer outra forma consentida, respondendo também por culpa “in vigilando“, acaso facilite a subtração, o que, aliás, acarretaria agravamento de risco conforme artigos 768 e 769 do Código. Fora disso, nenhum erro de conduta teria cometido o proprietário, por isso que, sem culpa, não poderá responder, porque, no caso, “res inter allios acta nocere non potest”. E se não responde civilmente, também não responderá o seguro de RCF.

 

 

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