Seguro de Pessoa. Doença preexistente versus exame médico prévio

RICARDO BECHARA SANTOS

Em data recente, me foram submetidas peças de um processo judicial em que revelavam tratar-se, inicialmente, de sinistro por invalidez, cuja enfermidade que lhe dera causa foi omitida do segurador na celebração do contrato de seguro.

Ao exame da questão sobre o tema versado – doença preexistente do segurado não submetido a exame médico prévio – levado a juízo em face de recusa manifestada pela operadora, tive a oportunidade de tecer algumas considerações, que me permito aqui reviver, em forma de artigo.

Pelo que pude colher das peças levadas aos autos, a invalidez que acometera o segurado, da qual teria resultado a sua morte quando já em curso a demanda judicial, fora decorrente de doença preexistente omitida pelo mesmo no preenchimento do minucioso, claro e objetivo questionário de avaliação de risco (declaração de saúde) constante da proposta do seguro.

O juiz de primeiro grau, mesmo a despeito da omissão pelo segurado da enfermidade de que este padecia e de que este também sabia de alguma forma ser dela portador (senão por confissão, por fortes indícios e ou presunção – note-se que o STF no julgamento do “mensalão”, tornou público, e de forma contundente, a consagração da valoração da prova indiciária -, solicitando inclusive aumentos casuísticos de capital segurado), se enveredara pela tese, excepcional e inadequada é bem verdade, de que sem a exigência pelo segurador de exame médico prévio não caberia a recusa por doença preexistente. Mesmo a despeito também, de o segurado haver negado para a seguradora, ou dela escondido, a submissão a determinados procedimentos médicos e internações pertinentes que, por si só, já seriam suficientes para diagnosticar e denunciar ao paciente o mal que lhe acometia.

O tema em discussão será decerto julgado pelo STJ, no âmbito do qual, não se olvide, existem decisões na linha do argumento utilizado na sentença.

Todavia e bem a propósito, mister pesquisar em que circunstâncias o E. Superior Tribunal de Justiça tem exarado suas decisões condicionando a validade da recusa por doença preexistente à solicitação de exame médico prévio pela seguradora.

Com efeito, em palestra ministrada pelo Eminente Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA sobre o tema (III Congresso Brasileiro de direito de Seguro e Previdência da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, in separata da Revista dos Tribunais, ano 99 – Outubro de 2010 – Volume 900, páginas 32/44), chamou à atenção para pesquisa que realizara e da qual concluíra que, nas decisões do STJ em que se justificava a solicitação de exame médico prévio era, a uma, quando não houvesse prova da preexistência da enfermidade e consequente má-fé do proponente e, a duas, naquelas em que o proponente indicava, na sua declaração de saúde, padecer de alguma doença, não a omitindo, portanto, caso em que, aí sim, se justificaria a solicitação do exame médico de modo a, diante de uma leal ressalva e em se constatando a enfermidade, restar ao segurador as seguintes opções: (I) aceitar o risco sem restrições se a moléstia não for relevante; (II) recusar o risco em função da gravidade da moléstia; (III) aceitar o risco com a exclusão da invalidez ou morte que seja decorrente da enfermidade constatada; ou, finalmente, (IV) aceitar o risco totalmente, mas com agravamento de prêmio, conforme seja a gravidade da doença e sobrevida do proponente.

Assinalou o Ministro, “que valia a pena verificar que as ementas dos acórdãos do Tribunal que integra, em alguns casos, não exprimiam, exatamente, o conteúdo das decisões”. Alertado, o nosso mui dileto, atento e estudioso colega Dr. ADILSON CAMPOY, em artigo publicado na Revista dos Tribunais, aprofundou a pesquisa e chegou à conclusão de que ao Ministro Noronha assistia inteira razão, demonstrando que, na medida em que novas decisões – proferidas mesmo na esfera do STJ – se baseiam em ementas de julgados anteriores, e na medida em que essas ementas não exprimem com fidelidade o acórdão ementado, cria-se a falsa impressão – “induvidosamente falsa”, de que prevalece entendimento isolado de outrora da lavra do Ministro Ruy Rosado (REsp 86095/SP, julgado em 1996), quando, em verdade, decisões subsequentes, de conteúdo e não de ementas, foram proferidas no sentido de que, realmente, o verdadeiro entendimento da corte era mesmo no sentido de que a exigência do exame médico só deveria ter lugar quando houvesse indicação na proposta (declaração de saúde) de alguma enfermidade ou circunstância que sugerisse o referido exame, ou quando não houvesse prova da má-fé do segurado.

Na verdade, o segurador não tem que provar a má-fé do segurado para negar-lhe o direito ao seguro, competindo-lhe demonstrar que foi levado a aceitar a proposta em erro e que, se conhecesse o real estado do risco não o teria aceitado, ou o teria sob outras condições. Faltando com a verdade, isto é, faltando com a boa-fé, subjetiva ou objetiva, o segurado perde direito ao seguro, cabendo ao segurador processá-lo criminalmente na quebra do princípio da boa-fé subjetiva para não fomentar a fraude, e apenas negar a cobertura se o segurado ou beneficiário quebrar o princípio da boa-fé objetiva, faltar com a verdade, comissiva ou omissivamente.

Realmente, o seguro não tolera declarações mentirosas do segurado. Agir de boa fé implica em um dever de conduta, onde se inclui a veracidade e a lealdade, pois é fiada nas declarações do segurado que a seguradora dimensionará a sua responsabilidade, taxará o prêmio ou decidirá se aceita ou não o risco proposto, tudo em nome da mutualidade por ela gerida.

Aliás, lembra-nos o PADRE JUAN EUSÉBIO, que o verdadeiro há de imperar em tudo, até mesmo na fábula. Quanto mais no contrato de seguro, onde a boa-fé é sua mais eloquente peculiaridade. Realmente, todo cuidado é pouco com o mendaz, devendo-se contra ele adotar, com rigor, a mais severa e adequada punição de modo a que não o encoraje a fraudar o seguro, pois na expressão de W. HOLMES, “o pecado tem várias ferramentas, sem dúvida. Mas a mentira é o cabo que a todas serve”.

Lembra-nos, com propriedade, o Dr. MANUEL DA COSTA MARTINS, advogado português e professor da Universidade Lusíada, em trabalho intitulado “Contributo Para a Delimitação do Âmbito da Boa-Fé no Contrato de Seguro”, que a boa fé, modelo de conduta social, é arquétipo jurídico segundo o qual cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a um modelo standart, agindo na relação jurídica como agiria um homem médio, normal: com honestidade, lealdade e probidade, acrescendo que esse princípio, na vertente objetiva da boa-fé, tem clara manifestação em ambos os lados da relação jurídica contratual do seguro: a) Do lado do Segurado, porque ele está em uma especial posição, relativamente ao conhecimento integral e efetivo do risco ou do conjunto de riscos que pretende segurar. Por isso, desde as negociações preliminares ou pré-contratuais na conclusão do negócio e, posteriormente, deve tomar uma atitude de total clareza e de verdade relativamente ao objeto material do contrato de seguro. Durante sua vigência, deverá tomar todas as medidas necessárias para que não se verifique o sinistro ou não se agravem os danos em consequência do mesmo. Uma vez ocorrido o sinistro, o Segurado deverá procurar encontrar soluções de modo a que o dano seja o menor possível. b) Do lado da Seguradora, o princípio da máxima boa-fé encontra análoga amplitude, nomeadamente, no dever de informação, no respeito aos princípios da hermenêutica contratual especificamente aplicável, ou seja, no modo como deve ser feita a interpretação das Condições Gerais, Especiais e Particulares do contrato de seguro em causa e no modo como deve ser regulado um sinistro coberto pela respectiva Apólice.”

Por isso a violação do dever de informar à seguradora, como pressuposto essencial para a existência e eficácia do contrato, terá ela, necessariamente, de afetar, senão o pagamento total ou parcial da indenização ou do capital segurado, a própria validade do contrato, com todas as consequências legais daí resultantes.

A seguradora também, de seu turno, como detentora dos conhecimentos técnicos de análise de riscos, deverá, através dos Questionários de Avaliação de Riscos, no caso Declaração de Saúde, precisar quais as circunstâncias concretas e relevantes para uma caracterização científica e atuarial do risco, em cada situação concreta. Tarefa que, no caso concreto aqui examinado, foi realizada a contento.

Não seria demasiado reiterar, que nas propostas o questionário informando à seguradora dos fatos e circunstâncias relacionados ao objeto e interesse segurável, é prática corrente e necessária para a operação do seguro que se baseia nas declarações do proponente, segurado, tomador e beneficiário, sendo delas que depende o seguro.

É até comezinho, para qualquer um que lida com o seguro, a noção de que com base nos elementos fornecidos pelo interessado, o segurador examinará o risco, a responsabilidade que está assumindo e fixará a taxa do prêmio. Tudo dependerá da veracidade/exatidão das declarações, o que basta para se avaliar a excepcional importância das declarações e informações nas operações de seguro. Dois sistemas são adotados para se obter a declaração do proponente: o da declaração espontânea e o do questionário, este com vantagens. A ausência de boa-fé do segurado poderá ser tão sutil que vise a, exclusivamente, fazer um seguro e pagar menos prêmio, beneficiando-se indevidamente. Se for mendaz ou reticente, ainda que possa influir somente no preço do seguro, mesmo assim se dará a sanção total da perda do direito.

O segurador em regra desconhece as peculiaridades do risco que lhe é submetido para aceitação, quer seja nos seguros de dano quer seja nos seguros de pessoa. Em relação aos seguros de dano desconhece, por exemplo, o estado do automóvel, as características de uma fábrica, as condições de conservação e de trabalho, das máquinas do imóvel, das instalações elétricas e dos riscos adjacentes, enfim de tudo que os envolve e cujo conhecimento é necessário tanto para o exame da aceitação como para a taxação do prêmio. E se de pessoa o seguro, como no caso dos autos, o segurador também desconhece as condições de saúde do proponente e os riscos a que normalmente se expõem, se pratica paraquedismo, esporte radical, meio de transporte mais arriscado etc. Daí, como só os segurados conhecem essas particularidades dos riscos que lhes são próprios, muitas vezes personalíssimos, ao segurador só seria possível conhecê-los e seus elementos que interessam ao exame de aceitação mediante informações e declarações prestadas pelo proponente ou segurado, ou por quem os represente, jamais por iniciativa e investigações próprias do segurador, restando-lhe por isso mesmo confiar nas respostas ao questionário que, sem alternativa, submete aos proponentes e segurados, daí a exigência da lei que essas respostas sejam dadas com a mais absoluta lealdade, exatidão e veracidade.

O princípio da boa-fé exige que o segurado, e principalmente seu corretor que por pressuposto detém também os conhecimentos técnicos do seguro, prestem as informações que conhecem ou deveriam conhecer, independentemente de lhe ser perguntado. É que também é pertinente, no contexto do seguro, o sistema das declarações espontâneas, pois o questionário, diante do princípio da boa-fé objetiva que impende sobre cada uma das partes do contrato de seguro, há de ser visto apenas como um ponto de partida, um ponto de referência informativa, como ponto de enquadramento da declaração. É claro que esse dever de informar espontaneamente abrange somente as informações que possam influir na avaliação técnica do risco ou na análise das suas consequências e que sejam ou possam ser eles de conhecimento do declarante.

Fechados esses parêntesis e retornando às advertências do Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA e à pesquisa levada a cabo pelo Dr. ADILSON CAMPOY, ao início postas, vejamos então algumas decisões em que se verificaram conflitos entre as suas ementas e os seus conteúdos, revelando-se que, pela simples leitura aparente da ementa, bastaria, como regra, a não exigência do exame prévio, mas ao se verificar os fundamentos da decisão, se vê que o exame serve apenas para suprir a não comprovação de que o segurado padecia da doença previamente, jamais para resolver as situações em que se demonstre ou se evidencie a preexistência da doença e o seu conhecimento pelo segurado, como é o caso que examinamos, em que restou demonstrado, pelas respostas ao questionário e pela comprovação dos procedimentos médicos, consultas e internações, que o segurado já era enfermo e que disso já o sabia:

  1. I) STJ, AgIn 702.216/RS, Relator Ministro CASTRO FILHO, j. 07.06.2006 – Na ementa se diz que a seguradora não deve se eximir do pagamento do capital segurado se não exigiu exames médicos previamente à contratação, sob a alegação de que houve omissão de informações pelo segurado. Mas no corpo do julgado, na sua substância, segue a orientação do que foi decidido no RESP 576.088/ES, de relatoria do Ministro BARROS MONTEIRO, e não da ementa, onde se assinala que a hipótese é a de que o segurador não se desincumbira de provar a má-fé do segurado.
  2. II) STJ, REsp 576.088/ES – “Seguro de vida em grupo. Óbito. Alegação de doença preexistente. Ausência de exame prévio” – na ementa, se diz que não pode a seguradora eximir-se do dever de indenizar, alegando omissão de informação do segurado, se dele não exigiu exames clínicos prévios. Mas o ministro Relator BARROS MONTEIRO baseia o seu voto na circunstância de que o segurado não tinha conhecimento da enfermidade, mesmo a despeito de haver respondido ao questionário declarando não ser portador de doença, por isso o ônus da prova seria da seguradora para demonstrar o desconhecimento da enfermidade pelo segurado, afirmando, inclusive, que “a lei não exige a efetivação de tal exame médico prévio, tampouco alude ao questionamento sobre o estado de saúde do proponente, mas sobreleva que, não procedendo ao mencionado exame, o ônus de comprovar a má-fé do segurado é todo seu”.

III) STJ, REsp 402.457/RO, 4ª T. j. em 20.92.03, de relatoria do Ministro BARROS MONTEIRO – Na ementa se diz: “Seguro de vida. Óbito. Alegação de doença preexistente. Ausência de exame prévio. Em sede de recurso especial não se examina matéria probatória (Súmula 7 do STJ). Não pode a seguradora eximir-se do dever de indenizar, alegando omissão de informação por parte do segurado, se dele não exigiu exames clínicos prévios”. Aqui o Relator inicia por assinalar que “o segurado não procedeu com má-fé, pois nenhum elemento há nos autos que evidencie que a patologia fosse preexistente à avença e do conhecimento do falecido”. Assinale-se que o Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR acompanhou o Relator, mas, para afastar dúvida, registrou em seu voto que  “o fato de o segurado se vincular ao plano de seguro não implica, automaticamente, no ônus para a companhia seguradora de proceder a um exame, a um chek-up completo e gratuito, para verificar se o mesmo está hígido e que, não o fazendo, isso já importaria em admissão incondicional desse segurado, quando se revelar má-fé por parte do mesmo na omissão de doença de que padeceu”.

Como se vê, em se lendo somente as ementas, pelas quais procuram se orientar certos julgados como, por exemplo, o julgador de primeiro grau dos autos examinados, se aponta para uma conclusão, errada, que se poderia assim resumir: “sem a realização do prévio exame médico, não cabe discutir as declarações pré-contratuais do proponente, sendo devido o pagamento do capital segurado em qualquer hipótese”.

Mas não é essa conclusão a que se chaga com a interpretação dos acórdãos a partir de suas fundamentações. E a julgar pelas fundamentações e não pelas ementas, resta claro que, feita a prova da quebra do princípio da boa fé em qualquer de suas vertentes, objetiva ou subjetiva, fica afastada a obrigação do segurador de efetuar o pagamento do capital segurado previsto no contrato.

E é preciso que se mostre ao próprio STJ a existência desse conflito entre ementa e conteúdo do acórdão, até para se estancar uma falsa orientação jurisprudencial, por parte dele próprio e de outros tribunais, pois, nos casos citados a guisa de amostragem, pelas ementas, “só o comportamento do segurador – pela exigência ou não de exame médico – seria relevante; pelos acórdãos, o comportamento do segurado é que é relevante – se ele agiu com má-fé ou ausência de boa-fé, o segurador estará desobrigado de pagar o capital previsto no contrato”.

E isso também há de servir para que se evite, nos noticiários midiáticos sobre decisões judiciais, o conflito entre as “manchetes” e o conteúdo da notícia.

Afinal, o entendimento majoritário do STJ deve se exprimir não pelas ementas, mas pela fundamentação dos acórdãos. Se assim é, como se espera, “prevalece naquela Corte o entendimento majoritário de que, para se negar o direito ao capital segurado, basta que se demonstre a violação do princípio da boa-fé, tenha ou não o segurador exigido exame médico prévio”.

E nem poderia ser de outra forma, pois resta privilegiado o sistema de declarações estabelecido pelo Código Civil, como vontade da lei, jamais a sua banalização. Eis que, do contrário, em se considerando sem qualquer importância as declarações prestadas pelo proponente de seguro, ante a não realização de prévio exame médico, equivaleria no mais xucro modo de derrogação, e por meio ilegítimo, do artigo 766 do Código Civil.

A lei, portanto, adotou, inequivocamente, “o sistema de declarações pré-contratuais para o contrato de seguro, e até com destacada ênfase, para além da clareza, tanto que o dispositivo impõe a pena de perda do direito à garantia e de pagamento de prêmio vencido, àquele que omitir informações, ou as prestar incompleta ou incorretamente”. Por isso a submissão de um proponente a prévio exame médico – muitos deles até invasivos, constrangedores e dispendiosos a ponto de onerar substancialmente o custo do seguro – jamais poderia se contrapor ao comando do artigo 766 do Código, muito menos torná-lo inoperante ou reduzi-lo a oblívio. O exame médico prévio bem como a sua não realização, não poderiam ter, jamais, o condão de alforriar o proponente do seu dever de lealdade para com o segurador, ou para com a mutualidade a que pretende ingressar, pois estará jungido ao mesmo dever ditado pelo artigo 765 do mesmo Código.

Até porque, se ao ensejo da realização eventual de um exame clínico prévio, o proponente omitir circunstâncias que conhece e que lhe sejam expressamente indagadas pelo médico indicado pelo segurador, estará da mesma forma infringindo o disposto no citado artigo 765, com as consequências determinadas no também citado artigo 766.

Urge que se argua junto ao E. STJ, no que tange à doença preexistente como motivo legítimo para se recusar o pagamento do capital segurado, não só também o quanto a respeito já se tem de sobejo dito e mostrado, em peças doutrinárias e outros arrazoados, com as citações doutrinárias e jurisprudenciais naturalmente carreadas, como também as considerações com as quais nos permitimos prosseguir com este artigo. Mas não sem antes citar as próprias decisões do STJ retro assinaladas pelos seus fundamentos e razões de decidir, jamais pelas ementas mal retratadas e mal conectadas ao conteúdo dos acórdãos, de modo a se desmistificar os conflitos apontados.

Realmente, aqui não se trata de situação em que o segurado tenha informado ao segurador qualquer enfermidade que justificasse a necessidade de um exame médico preliminar, mas sim de declarações das quais não se tinha de duvidar na conclusão do contrato, inclusive quanto a sua completude, mas que se revelaram inexatas diante da prova médica colhida por ocasião da regulação do sinistro, pelas quais o proponente induzira o segurador a aceitar o risco sem restrições, fiada nas declarações do segurado de que gozava ele de boas condições de saúde, incidindo-se, portanto, nas iras dos artigos 765 e 766 do Código Civil (correspondentes aos artigos 1443 e 1444 do CC de 16), eis que, se conhecida a verdadeira condição de saúde do segurado o segurador teria a oportunidade de decidir sobre a aceitação do risco e sua taxação com base em alguma das situações mais acima descritas, ou mesmo solicitar os tais exames clínicos prévios.

Feito o questionário de avaliação de risco por ocasião da proposta, que permitiu ao proponente prestar as declarações necessárias, é claro que o segurador, se nada havia sido declarado que o fizesse sequer suspeitar de alguma doença preexistente, não tinha mesmo que desconfiar de tais declarações, supostamente de boa-fé e, nada obstante, exigir um exame médico complementar – do contrário, tal importaria em indevida inversão da presunção de boa-fé que rege o contrato de seguro -, capaz até de gerar constrangimento ao proponente já no limiar de sua relação contratual, pelo simples fato de estar o segurador insinuando a má-fé do proponente, quando se sabe que o contrato de seguro é contrato de extrema boa-fé, de máxima boa-fé, de uberrimae bona fidei, como já se afirmava, sem rebuços, desde as eras mais remotas do direito romano.

Não sem lembrar de que tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor, em sincrônico diálogo de fontes, estabelecem, com relevância, que a boa fé objetiva é pedra fundamental para qualquer contratação e que, no contrato de seguro, é ela exigida com sobrelevada importância, tanto que, apesar de o CDC (art. 4º, III) e o próprio CC como cláusula geral (art. 422), já estabelecerem que tal princípio seja pedra angular, no capítulo do seguro do CC o legislador fez questão de enfatizá-lo em detalhes nos seus artigos 765 e 766, como cláusula específica, ratificando assim tratar-se o seguro de contrato de boa-fé por excelência.

O contrato de seguro está de tal forma fundado na boa-fé que sua ausência é suficiente para retirar-lhe a eficácia, como decorre do citado art. 766 do Código Civil, pois a consequência pela quebra do princípio da boa- fé ali expressamente estabelecida, não é apenas a perda do capital segurado ou da indenização, mas a perda da garantia, isto é, a perda do próprio seguro.

Ora bem, quem não haveria de saber, a certa altura da vida e por menos atilado que fosse, ser portador de uma enfermidade grave, como uma diabete, por exemplo, em estado avançado, e de suas consequências, a ponto de lhe ameaçar ou de gerar uma cegueira e, posteriormente, a invalidez e ou a morte, tendo sido os sintomas a ele revelados em várias ocasiões anteriores a propositura do seguro, quando passara a se submeter a diversos exames clínicos, consultas e internações médicas, além das informações ao alcance de todos sobre tal enfermidade, dentre outras, que acomete grande parte dos brasileiros e de sua gravidade? A indagação é longa, mas precisa.

Nada obstante, depois de evidenciada a enfermidade e o conhecido risco de suas consequências, nascera ao proponente/segurado a “necessidade”, adrede, senão da realização de seguros como também da majoração dos capitais segurados já existentes, mas, certo de que não poderia contar com a aceitação integral da seguradora se esta fosse informada da doença, tratou, maliciosamente e mesmo a despeito das advertências de perda de direito constantes do questionário, de omitir da mesma os males de que já sabia padecer, incidindo, já desde aí, na violação ao princípio da boa-fé que norteia, fundamentalmente, o contrato de seguro.

E isso é, induvidosamente, na melhor das hipóteses, pura ausência de boa-fé, na sua vertente objetiva, quiçá até na sua vertente subjetiva, com intenção. Só que, para se determinar ao segurado a perda do direito à garantia, basta a violação do princípio da boa-fé objetiva, considerando, ademais, que seguro é mutualidade na sua essência, onde o direito da coletividade de segurados que a integram se sobrepõe ao individualismo de cada um isoladamente, sabido que os efeitos de um pagamento tecnicamente equivocado atingem mais fundo o segurado como ente coletivo do que à própria seguradora, esta que, como gestora da mutualidade, estará obrigada a onerar o custo do seguro visando o equilíbrio atuarial desfalcado por uma decisão judicial equivocada, a dano dos demais segurados, em face de um evento pago, porém não coberto, por isso não levado em conta nas projeções atuariais do cálculo do prêmio.

A esse tópico, oportuno trazer à colação, mais uma vez, as equilibradas observações do Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, também em palestra proferida sobre o tema, in verbis: “O juiz precisa ter sensibilidade social, mas também responsabilidade com os agentes econômicos, pois todo desequilíbrio contratual penaliza, em última instância, o consumidor”.

Faltando com a verdade, é dizer, violando o princípio da mais estrita boa fé e veracidade (boa-fé objetiva), tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes, nos termos do artigo 765 do CC, prestando declarações inexatas, reticenciando ou omitindo circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, nos exatos termos do artigo 766 do CC, sem dúvida que o segurado, como dito, perde não só o direito ao capital segurado, mas o direito à própria garantia, ou seja, perde o próprio seguro, na clara e insofismável dicção do dispositivo legal acima citado.

Em suma, se nos afigura por demais equivocada a exigência do exame médico prévio como regra e condição para o exame da recusa por doença preexistente, ainda mais em não se considerando as declarações pré-contratuais prestadas por consumidores interessados em contratar.

A substituição do sistema legal de declarações do segurado pelo do exame médico prévio, além de gerar custos insuportáveis e inviabilizantes para o seguro, e impraticáveis se adotados como regra, importaria em condenável inversão da presunção de boa-fé que devem gozar as declarações do segurado.

Reitere-se que, não só a lei como a doutrina e a própia jurisprudência, são acordes em afirmar, mormente após o advento do Código Civil de 2002, este que, no diálogo das fontes, se harmoniza com o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo como cerne e cantando-a em prosa e verso, a observância do princípio da boa-fé objetiva, nos seus sistemas de cláusulas abertas, o CC com os acordes de seus artigos 422 e 765, o CDC, afinado no seu art. 4º, inciso III.

Mas desde sempre esse princípio já era assim exigido, com destacada importância, no contrato de seguro, pois “…Todos os contratos devem, naturalmente, abeberar-se na boa-fé e na honestidade, mas, no seguro sobreleva a importância desse elemento, porque, em regra, ele se funda, precipuamente, nas mútuas afirmações das próprias partes contratantes. Além da boa-fé, devem estas obrar com veracidade, não bastam sejam leais, é preciso sejam verdadeiras. Tal obrigação existe ainda que o segurador costume proceder investigações preliminares antes de aceitar o seguro(WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO).

Acresça-se queA mesma regra vale com relação a reticências, isto é, com relação às circunstâncias que poderiam influir sobre o seguro e eram conhecidas do segurado ou do estipulante, que não obstante as omitiu de boa-fé ou de má-fé(CARVALHO SANTOS).

Os autores são unânimes em sublinhar a significação especial da boa-fé, no contrato de seguro. É que as decisões do segurador se louvam geralmente nas informações prestadas pelo segurado ou pelo estipulante. Essas razões ponderáveis induziram o legislador de nosso Código Civil a realçar a importância da boa-fé no contrato de seguro, consignando expressamente: o segurado e o segurador são obrigados a guardar, no contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, das circunstâncias e declarações a ele concernentes“ (PEDRO ALVIM).

E esse princípio há de ser observado por todos os partícipes do seguro, seja o estipulante, seja o tomador, seja o segurado ou seu representante, seja o segurador, e em todas as suas fases, inclusive nas renovações, pois como observou JOAQUIM GARRIGUES, renomado jurista espanhol, “Sendo o seguro contrato de duração, de trato sucessivo ou de execução continuada, porque seus efeitos se prolongam no tempo, os deveres inerentes também subsistem, notadamente o da boa-fé, que perdura, até mesmo, após o término de sua duração material”.

Saliente-se que o Supremo Tribunal Federal – STF, quando julgava questões de seguro, deixou o seguinte e indelével legado de ensinamento jurisprudencial sobre o tema: “As companhias seguradoras não estão sequer obrigadas a examinar todas as declarações dos segurados e estipulantes, com profundidade, razão porque a lei as protege contra declarações inexatas” (STF, 2ª. Turma, Rev. Forense 82/635).

Vale enfatizar, ainda mais, que a boa-fé tem duas vertentes, a subjetiva e a objetiva, mas para o fim aqui colimado, basta a quebra do princípio da boa fé objetiva para se inferir o direito da seguradora, no caso, e em nome da mutualidade por ela gerida, para determinar a perda do direito do segurado ao recebimento do capital em face da inexatidão de suas declarações indutoras da aceitação do risco pelo segurador.

Sabe-se que a boa-fé, na sua vertente objetiva, para sua violação, não se requer estado de espírito ou intenção, bastando a quebra dos padrões de conduta, sendo suficiente, portanto, o prejuízo causado à outra parte, ou sua probabilidade. O contraponto da boa-fé objetiva seria a ausência de boa-fé, que no seguro é suficiente para caracterizar a infração, como se dera no caso. E a sua quebra pode se dar por omissão ou por comissão.

Mais grave seria se estivessemos diante da quebra da boa-fé na sua vertente subjetiva, pois aí estar-se-ia diante de um crime em tese, com consequências muito mais graves, justo porque o contraponto da boa-fé subjetiva é a má-fé, que traduz-se num estado de crença errônea, um estado psicológico, o dolo, um erro crasso, ou uma culpa grosseira, grave.

Termino por afirmar que o contrato de seguro, aleatório por natureza, tem características proprias ligadas a um equlibrio atuarial que jamais pode ser rompido, muito menos pela quebra do princípio da boa-fé. Afinal, não é apenas a sorte que manda no jogo.

No “jogo” do seguro, que objetiva a superação do risco, sem o desejo de que o evento futuro aconteça posto que desfavorável (ao contrário do que sucede no jogo de apostas), existe cadência com suporte técnico e atuarial, existem regras que precisam ser cumpridas, e uma delas é a da lealdade e da veracidade dos participantes que integram a mutualidade, a coletividade gerida pelo segurador, para não agravar o risco delimitado na conclusão do contrato, que, por exemplo, no caso não inclui o da doença preexistente, até por ser risco já em vias de se materializar em ato consumado, de modo a não potenciá-lo voluntariamente a ponto de torná-lo ato, de convertê-lo em sinistro. A boa-fé, melhor, a máxima boa-fé acima de tudo.

Tudo, ainda que se saiba que o risco de dar tudo certo na vida seja muita vez o mesmo de dar errado. Por isso as pessoa fazem seguro, mas há de fazê-lo sempre de boa-fé, em busca do equilíbrio, de um equilíbrio patrimonial, econômico ou financeiro, até pessoal, que possa ser perdido ou ameaçado por um sinistro, que é risco em ato. Em busca, portanto, de uma necessidade eventual calcada em um interesse legítimo segurável, contra o risco temido. Nunca em busca de uma necessidade não eventual, embora temida, mas lesiva à mutualidade e com vistas a satisfazer a uma “necessidade ilícita”.

 

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