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Artigos de Direito do Seguro
Seguro de Vida – da não aplicação da regra da concorrência prevista na ordem da vocação hereditária
RENATO BARCELLOS SANTOS
(i) INTRODUÇÃO
O Contrato de Seguro é considerado um contrato típico, previsto no Código Civil entre os artigos 757 e 802, que tem por objeto a garantia de interesse legítimo do segurado relativo à pessoa ou à coisa, contra riscos predeterminados, devendo ser considerado como interesse legítimo a relação de caráter econômico entre o bem protegido e a pessoa segurada.
Ao contrário do que muitos pensam o objeto do contrato de seguro não é o bem segurado propriamente dito, como por exemplo, o automóvel, ou a residência, ou a vida, mas sim o interesse legítimo que o segurado tem sobre este bem. Nesse tema de há muito já alertava o Professor AMILCAR SANTOS no seu livro “Seguro”, publicado em 1959, in literis:
“O verdadeiro objeto do seguro, observa KISCH, não é propriamente a coisa, porém o interesse, o interesse econômico de que não aconteça o sinistro, interesse na conservação da coisa, interesse em evitar o prejuízo. O que o seguro garante, continua, não é tanto o bem patrimonial, por ele próprio, porém principalmente o valor pecuniário que lhe está incorporado; não a coisa, não a hipoteca, não o lucro, não o montante da responsabilidade, porém a soma em dinheiro correspondente a esses diversos bens”.
No contrato de seguro, a seguradora assume os efeitos econômicos do risco segurado, que deve necessariamente ser futuro e incerto (quanto à data da ocorrência, já que no seguro de vida, ocorrência da morte é certa). Note-se que a seguradora não assume o risco do segurado, mas tão somente os seus efeitos econômicos.
O próprio diploma legal divide o contrato de seguro em duas modalidades: de dano (artigos 778 a 788) e de pessoa (artigos 789 a 802). O primeiro tem por base o princípio indenitário, com a garantia prometida não podendo ultrapassar o valor do interesse segurado no momento da conclusão do contrato (artigo 778), devendo o beneficiário da indenização ser o proprietário do bem protegido. Já o segundo, tem como base a livre estipulação de capital segurado e da indicação beneficiária, já que não visa ao ressarcimento de um dano, mas sim tranquilidade financeira daquelas pessoas escolhidas pelo segurado, se assemelhando, assim, a um investimento/poupança, quando se cuidar de seguro de vida à base de acumulação ou capitalização, guardadas, decerto, as peculiaridades que diferenciam o seguro da poupança nomeadamente pelo fator risco.
No presente trabalho vamos nos ater à modalidade de seguro de pessoa e, em específico, à questão da cláusula beneficiária em branco, prevista no artigo 792 do Código Civil.
Abordaremos a figura do beneficiário, que pode ser livremente estipulado e a qualquer tempo substituído pelo segurado, salvo em algumas hipóteses bem definidas na legislação, que deve ser considerado como elemento importante do contrato de seguro de pessoa já que, no caso de morte do instituidor, será ele quem terá legitimidade para pleitear o recebimento do capital ou litigar contra a seguradora em caso de recusa de pagamento, quer seja ele expressamente nomeado, ou omitida a sua nomeação (cláusula beneficiária em branco).
Daremos ênfase à regra prevista no aludido artigo 792, que determina o pagamento do Capital Segurado quando da ausência de indicação expressa ou do não reconhecimento da indicação, metade ao Cônjuge (se houver) e a outra metade aos herdeiros legais, obedecida a ordem da vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do mesmo Código Civil, que também contempla o cônjuge como herdeiro concorrente dos descendentes.
No que diz respeito à regra de concorrência, indicaremos as divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da aplicação do exposto no inciso I do artigo 1.829, especialmente em relação ao cônjuge unido sob o regime de comunhão parcial de bens, indicando as principais correntes e a sua aplicação para o contrato de seguro, que deve levar em conta o exposto no artigo 794, que determina não ser herança o capital contratado pelo segurado.
(ii) DO BENEFICIÁRIO DO SEGURO DE VIDA
O beneficiário é um dos interessados no contrato de seguro, juntamente com o segurado e a seguradora que figuram como partes, sujeito titular de uma expectativa de direito, somente concretizada com a ocorrência do sinistro coberto. No seguro de vida é o segurado quem em regra o indica, sendo a nomeação ato de última vontade, podendo ocorrer a qualquer momento, sem a necessidade de qualquer formalidade. Diferentemente do estipulado em outras legislações estrangeiras, a indicação beneficiária não requer a anuência da pessoa indicada.
A única exceção à indicação beneficiária por pessoa que não seja o segurado, prevista no artigo 790 do Código Civil, diz respeito à contratação de seguro sobre a vida de outrem. Neste caso, o contratante do seguro, aqui entendido como estipulante, tem o poder de nomear a si próprio como beneficiário. Porém, para efetivar a contratação deve, necessariamente, comprovar o interesse na preservação da vida do segurado, sob pena de nulidade do contrato.
A nomeação beneficiária é livre, sendo vedada apenas, de acordo com o artigo 793 do Código Civil, a indicação de companheiro(a), ou convivente na dicção mais atual, quando o segurado, ao tempo da contratação, for casado e não separado judicialmente ou de fato há mais de dois anos.
Pelo disposto no artigo 791 do Código Civil, a substituição beneficiária só não é possível quando o segurado renuncia expressamente a tal faculdade ou quando a cobertura é destinada à garantia de uma obrigação do segurado.
O ministro JOSÉ AUGUSTO DELGADO preleciona em sua obra “Comentários ao Novo Código Civil, volume XI, tomo 1, que “não há, na lei, qualquer proibição que a designação do beneficiário seja feita no momento da celebração do contrato ou em momento posterior”[1].
O mesmo autor, em seguida, explica que[2]:
“Essa é a razão da lei permitir que o segurado substitua o beneficiário, a qualquer tempo, sem expor qualquer motivação para o exercício dessa vontade manifestada. Ela, portanto, pode ser revogada ad nutum e por mais de uma vez”.
Para o segurador, o beneficiário legitimado ao recebimento do capital contratado é sempre o último formalmente informado, sendo certo que a ausência de comunicação de substituição, desobriga a seguradora a qualquer outro pagamento que não seja àquele inicialmente informado. Esta regra está prevista no Parágrafo único do art. 791.
(iii) DA APLICAÇÃO DA REGRA PREVISTA NO ARTIGO 792 DO CÓDIGO CIVIL
Não obstante ser da faculdade do segurado nomear livremente o beneficiário por ato de ultima vontade, é possível também que este decida pela não nomeação de qualquer pessoa, ou que seja considerada invalidada a indicação realizada.
Para estas hipóteses, o legislador estabeleceu no artigo 792 do Código Civil uma regra impositiva, que fixa e especifica como beneficiários o cônjuge (aqui se equiparando, também, o companheiro ou convivente de união estável) não separado judicialmente (se houver), na proporção de 50% (cinquenta por cento) do capital segurado, e os herdeiros legais, na ordem da vocação hereditária, nos outros 50% (cinquenta por cento) restantes.
Como exemplos de não reconhecimento de uma indicação do segurado, temos: (i) a morte precedente do beneficiário, já que, como dito alhures, a indicação beneficiária é uma mera expectativa de direito; (ii) a estipulação feita pelo representante do segurado em seu próprio benefício (art. 117 do Código Civil); (iii) a ofensa comprovada, por parte do segurado ao designar o beneficiário, aos bons costumes; (iv) o erro substancial no ato de designação quanto ao beneficiário e (v) a declaração feita sob coação ou em estado de perigo.
Em relação ao cônjuge separado de fato do segurado, a doutrina diverge. Para JOSÉ AUGUSTO DELGADO, somente o cônjuge ainda casado com o segurado quando da ocorrência do sinistro terá direito à metade do capital. O autor conclui que “o cônjuge só terá direito à metade do capital segurado, se ele se encontrar na constância dos efeitos do casamento, isto é, subordinado à convivência comum e no cumprimento de seus deveres”[3].
Já os ilustres Ernesto Tzirulnik, Flávio Cavalcanti e Ayrton Pimentel, por sua vez, defendem que:
“em todos os casos em que não houver indicação de beneficiários, deverá ser provado perante a seguradora que o segurado não estava separado judicialmente, ou de fato, do cônjuge sobrevivente. Em havendo separação de fato, que o sobrevivente foi inocente na separação, para não perder direito sucessório e ter direito a seu quinhão no capital estipulado”.[4]
Por fim, tem-se a posição de que, sendo o cônjuge separado de fato do segurado, a ele será sempre assegurado o direito ao capital a ser pago pela seguradora quando do sinistro, independentemente de haver culpa sua ou não na separação. Neste sentido, assevera JOÃO MARCOS BRITO MARTINS que “o cônjuge não separado judicialmente tanto pode ser o marido ou a esposa, na constância do casamento, ou os mesmos, ainda que separados de fato” [5].
Segundo nos ensina RICARDO BECHARA SANTOS[6]:
“Mal comparando com o direito sucessório (apenas mal comparando, porque o seguro não é herança, conforme, aliás, expressamente estabelece o art. 794), a hipótese deste artigo 792 ora em comento, que disciplina a destinação do capital segurado quando não houver indicação ou nomeação expressa, equivaleria a quem não deixa testamento, contentando-se assim o segurado com as regras do direito positivo sucessório”.
Na verdade, o que a legislação estabelece nos casos de não indicação beneficiária é uma presunção da vontade do segurado em nomear os seus entes familiares mais próximos, que são as pessoas que realmente precisam do capital segurado ou dele merecedores.
PEDRO ALVIM expôs que[7]:
“a falta de beneficiário não anula o seguro e nem autoriza o segurador a reter a quantia. Se alguém há de ser contemplado com a soma prometida, o menos indicado é o segurador que já teve sua compensação no prêmio auferido, durante a vida do segurado. Quem poderá ser então? Presume-se, geralmente, que a intenção do segurado, ao celebrar o contrato, era aparar a própria família, seus parentes ou pessoas que lhe eram mais chegadas.”
Esta regra prevista no Código Civil existe na legislação pátria desde 1943, com o advento do Decreto-lei 5.384/43 que, na verdade, segue um conceito universal, previsto em legislações de outros países, como, por exemplo, na França e em Portugal, que determinam que a soma segurada deve ser paga aos herdeiros do segurado.
Em razão da regra já existente, com a vigência do novo Código Civil em 2003, aparentemente o legislador não teria alterado o que sempre fora utilizado pelo mercado segurador. Dizemos aparentemente porque em realidade, no que pese a manutenção da quase totalidade da redação prevista no aludido Decreto-Lei 5.384 de 1943, no campo do direito sucessório, aplicado aqui de forma subsidiária, foram realizadas alterações substanciais na ordem da vocação hereditária prevista no artigo 1.829, que implicam diretamente no processo de regulação de sinistro.
(IV) DA ORDEM DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA
O artigo 1.829 do Código Civil dispõe acerca da ordem da vocação hereditária, estabelecendo o quanto segue:
“A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais”.
Os descendentes encontram-se na primeira classe de sucessores, ressaltando que estes não devem ser considerados apenas os filhos, mas também os netos, bisnetos e a assim ad infinitum. Na segunda classe, encontram-se os ascendentes (também sem limite de grau de parentesco). Na terceira, o cônjuge sobrevivente e na quarta e última, os colaterais, sendo certo ainda que a existência de uma classe exclui a outra.
A grande inovação trazida pelo Código diz respeito ao cônjuge sobrevivente, considerado agora, além de herdeiro necessário, concorrente dos descendentes, dependendo do regime de casamento, e dos ascendentes, independente do regime de casamento.
Esta regra da Ordem da Vocação Hereditária não se aplica ao companheiro ou companheira, tendo em vista a existência de regra específica de sucessão para eles no artigo 1.790 do Código Civil, não havendo, portanto, que se falar em concorrência deste com os herdeiros do segurado em relação ao capital contratado.
(V) DA CONCORRÊNCIA
Considerando a nova ordem da vocação hereditária prevista no Código Civil de 2002, o Cônjuge passou a ter uma posição mais favorável no que diz respeito ao direito sucessório. Além de ser herdeiro necessário, passou ele a concorrer com os descendentes, com no mínimo um quarto da herança, dependendo do regime de bens adotado no casamento, e com os ascendentes na proporção mínima de um terço, independente do regime de casamento, obtendo, assim, muitas vezes, um quinhão maior do que os descendentes do falecido.
A exceção à regra da concorrência com os descendentes são as pessoas casadas sob o regime: (i) de comunhão universal; (ii) de separação obrigatória de bens e; (iii) de comunhão parcial, quando o falecido não deixa bens particulares. Nos demais regimes de casamento previstos em lei, e nos casos de comunhão parcial com bens particulares deixados pelo falecido, o cônjuge herda em concorrência com os descendentes.
Aduz o artigo 1832 do vigente Código Civil que “em concorrência com os descendentes caberá ao cônjuge quinhão igual aos dos que sucederem por cabeça […]”.
Uma questão a ser observada na regra da concorrência, diz respeito à quota parte a ser considerada na herança. Seria ela a totalidade dos bens deixados pelo de cujus, apenas os bens particulares ou aqueles adquiridos na constância do casamento? Conforme se verá a seguir, tal definição é de suma importância para o seguro.
(VI) DAS DIVERGÊNCIAS
Com relação à concorrência do cônjuge com os ascendentes, não existem divergências, já que a lei não estabelece qualquer exceção, como nos casos dos descendentes. Aqui, o cônjuge sempre concorrerá independente do regime de casamento, considerando-se a integralidade dos bens deixados pelo de cujus.
Já em relação aos descendentes, a redação do inciso I do artigo 1.829 dá margem a diversas interpretações no que diz respeito à concorrência com o cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial com existência de bens particulares.
Pelo menos cinco correntes de pensamento existem sobre a matéria:
(i) a primeira estabelece que a sucessão do cônjuge, pela comunhão parcial, somente se dá na hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, incidindo apenas sobre esses bens;
(ii) A segunda sustenta que a concorrência se dá apenas em relação aos bens adquiridos na constância do casamento, ficando de fora os bens particulares.
(iii) A terceira estabelece que a concorrência somente ocorre se o falecido deixar apenas bens particulares.
(iv) A quarta defende que a sucessão na comunhão parcial também ocorre somente se o ‘de cujus‘ tiver deixado bens particulares, mas incide sobre todo o patrimônio, sem distinção;
(v) A quinta e última sustenta que a sucessão do cônjuge, na comunhão parcial, só ocorre se o falecido não tiver deixado bens particulares.
Fixaremos-nos, aqui, às três primeiras correntes acima, consideradas as principais.
A primeira está prevista no Enunciado 270 proposto na 3ª Jornada de Direito Civil realizada pelo Conselho da Justiça Federal, nos dias 1º a 3 de maio de 2004, sob a Coordenação-Geral do Ministro Ari Pargendler, que assim dispõe:
“Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”.
Corrobora este entendimento o pensamento dos ilustres juristas ANA CRISTINA DE BARROS MONTEIRO FRANÇA PINTO (atualizadora do Curso de Direito Civil de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Vol. 6 – 37ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 97); NEY DE MELLO ALMADA (Sucessões, São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 175), entre outros.
Já a segunda corrente é defendida pela Ministra NANCY ANDRIGHI, integrante da Terceira Turma do STJ. Para ela, a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, deve ser tomada como norte para a interpretação das regras sucessórias, não podendo, assim, os bens particulares participarem da concorrência, mas tão somente os bens adquiridos na constância do casamento. Tal entendimento foi apresentado pela ilustre Ministra no julgamento do REsp 1.117.563, conforme se vê no trecho do seu voto conforme abaixo narrado:
“Por tudo isso, a melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges. Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens”.
Por fim, a terceira corrente entende que na sucessão legítima sob o regime de comunhão parcial, não há concorrência em relação à herança, nem mesmo em relação aos bens particulares (adquiridos antes do casamento), visto que o cônjuge sobrevivente já está amparado pela meação.
O Desembargador HONILDO AMARAL DE MELLO, convocado para o julgamento de um RESP na Quarta Turma, afirmou que “Os bens particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do regime convencionado em vida pelo casal”, tendo o novo ordenamento estabelecido apenas uma exceção a tal regra, qual seja:
“Se inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar apenas bens particulares, a concorrência é permitida, “tendo em vista o caráter protecionista da norma que visa a não desamparar o sobrevivente nessas situações excepcionais”.
O Desembargador foi acompanhado pelos ministros LUIS FELIPE SALOMÃO e JOÃO OTÁVIO DE NORONHA.
Dúvidas também surgiram em ralação ao casamento pelo regime de Participação final em Aquestos, tendo em vista a sua semelhança com o regime de comunhão parcial de bens. Neste caso, entendem os doutrinadores, na sua maioria, que não obstante a inexistência de qualquer ressalva no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil, a regra a ser aplicada deve ser a mesma da comunhão parcial.
(VII) DA MELHOR REGRA
Em que pese os entendimentos citados nos itens anteriores, os quais merecem o devido respeito, entendemos que a melhor opção seja aquela que determina a concorrência da herança apenas em relação aos bens particulares do falecido.
Segundo nos ensina o ilustre jurista MIGUEL REALE, um dos autores do Anteprojeto do Código vigente:
“[…] durante dezenas de anos vigeu no Brasil, como regime legal de bens, o regime de comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivo não concorre na herança, por já ser “meeiro”. Com o advento da Lei 6.515, de 21 de dezembro de 1977 (Lei do Divórcio), o regime legal da comunhão de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial. Ampliado o quadro, tornou-se evidente que o cônjuge, sobretudo quando desprovido de recursos, corria o risco de nada herdar no tocante aos bens particulares do falecido, cabendo a herança por inteiro aos descendentes ou aos ascendentes. Daí a ideia de tornar o cônjuge herdeiro no concernente aos bens particulares do autor da herança[8]” (grifo nosso).
Sendo a intenção do legislador a de dar a devida proteção ao cônjuge sobrevivente, que é base central do núcleo familiar, para que este não corra risco de ficar desamparado, não resta dúvida que somente os bens particulares do falecido devem integrar o quinhão da herança em concorrência, já que sobre os bens comuns o cônjuge já é contemplado com a meação, não havendo que se falar em desprovimento de recursos.
Assim, de acordo com cada regime de casamento previsto no Código Civil, podemos concluir o quanto segue:
- Regime de Separação Convencional de Bens: a concorrência seria sobre a totalidade da herança, já que os bens particulares são os únicos a serem transmitidos aos herdeiros, não existindo qualquer meação.
- Regime de Comunhão Parcial de Bens – existindo bens particulares: a concorrência ocorre quanto aos bens particulares do de cujus, pois o legislador instituiu que em não havendo bens particulares aquela não se verifica; por isso não seria coerente falarmos em concorrência quanto à totalidade da herança.
- Comunhão Parcial de Bens – não existindo bens particulares: Na hipótese de não existirem bens particulares do de cujus, há a incidência, apenas e tão somente, do instituto da meação; desta feita, resta evidente a não concorrência do cônjuge sobrevivente.
- Regime de Participação Final nos Aqüestos: o cônjuge sobrevivente concorre aos bens particulares, uma vez que tal regime é equiparado, no que se refere à sua dissolução, ao regime de comunhão parcial de bens, devendo ser regulado, no que tange à matéria sucessória, de forma semelhante.
- Regime de Comunhão Universal de Bens: todos os bens que compreendem o acervo patrimonial do casal são comuns; desta forma, não existem bens particulares. Neste caso, não há concorrência, mas tão somente a meação.
- Regime de Separação Obrigatória de Bens: O legislador, de maneira clara e objetiva, estabelece que o cônjuge supérstite casado sob o regime da separação obrigatória de bens não concorre com os herdeiros do de cujus, diferentemente do regime da separação voluntária de bens, que não foi objeto de exceção.
(VIII) DA APLICAÇÃO DA REGRA DA CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE NO CONTRATO DE SEGURO
Para o Contrato de Seguro, o legislador não determinou qualquer regra específica em relação à concorrência do cônjuge, devendo, no caso, conforme dito acima, ser aplicada para o pagamento do capital segurado a regra da ordem da vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil, salientando que tal aplicação deve ser apenas de forma subsidiária, respeitando-se todos os princípios atinentes ao contrato de seguro, dentre eles o previsto no artigo 794 do Código Civil, que determina não ser herança o capital segurado, para todos os efeitos de direito.
Não sendo o capital segurado herança e já tendo sido o cônjuge sobrevivente contemplado com metade desse capital, em que pese a literalidade do dispositivo que prevê a concorrência na herança, a participação deste nos 50% (cinquenta por cento) restantes do capital segurado representaria um bis in idem, incompatível com os princípios constitucionais de proporcionalidade e razoabilidade.
ARRUDA ALVIM, THEREZA ALVIM e NELSON RODRIGUES NETO, em “Comentários ao Código Civil Brasileiro”, destacam que:
“Erigido à condição de herdeiro no Código Civil de 2002, o cônjuge na hipótese específica do contrato de seguro de vida não deverá concorrer com os descendentes do de cujus, haja vista que o artigo 792 já disciplina a hipótese.”
Negando, igualmente, a concorrência do cônjuge com os descendentes e ascendentes de cujus, registre-se o entendimento de JOSÉ MARIA TREPAT CASAES[9].
O entendimento contrário, no sentido de que o Cônjuge, além de receber metade do capital segurado, concorreria com os demais herdeiros quanto à segunda metade, muito embora sustentado por ilustres juristas, contraria a própria regra da concorrência imposta pelo legislador no já citado artigo 1.829 do Código Civil, aplicada apenas, conforme já visto acima, aos bens particulares deixados pelo autor da herança, ou seja, aqueles que não representem bens comuns da sociedade conjugal já compartilhados pela meação.
Ora bem, se o Cônjuge já é aquinhonhado com metade do capital segurado, deve este ser considerado, por analogia, lembrando que a aplicação da regra hereditária é subsidiária, como um bem comum não sujeito à concorrência.
(IX) CONCLUSÃO
Procuramos no presente trabalho mostrar um panorama sobre a não aplicação da regra da concorrência do cônjuge com os herdeiros do segurado quando este não nomeia experessamente beneficiários para o recebimento do capital segurado contratado.
Como o Artigo 792 do Código Civil, pertencente ao Capitulo dedicado ao contrato de seguro, estabelece expressa aplicação do direito sucessório, estas duas áreas do direito foram abordadas, com pesquisas doutrinárias abrangendo tanto autores especializados em direito securitário quanto em direito sucessório.
As divergências existentes na aplicação da regra da concorrência do cônjuge com os descendentes do de cujus, de forma involuntária, foram transferidas para o contrato de seguro. O Cônjuge já contemplado com 50% do capital segurado participaria dos outros 50% como concorrente dos herdeiros descendentes?
Seguindo a melhor doutrina, concluímos que o cônjuge sobrevivente, neste caso, tem direito apenas a 50% do capital segurado, sem direito à concorrência, tendo em vista que o valor deixado pelo segurado não pode ser entendido como bem particular, único sujeito a tal regra.
(X) BIBLIOGRAFIA
SANTOS, Ricardo Bechara. Direito de Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil, volume XI, tomo 1: das várias espécies de contrato, do seguro. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro: de acordo com o novo código civil brasileiro. 2. Ed. Ver., atual e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. São Paulo: Forense, 1999.
MARTINS, João Marcos Brito. O contrato de seguro: comentado conforme as disposições do código civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
CASAES, José Maria Trepat. Código Civil Comentado, volume VIII. Ed. Atlas, 2003.
O cônjuge no novo Código Civil. Disponível em http://estado.estadao.com.br/editoriais/03/04/12/aberto001.html. Acesso em 10 de novembro de 2003.
[1] DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil, volume XI, tomo 1: das várias espécies de contrato, do seguro. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 733.
[2] DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil, volume XI, tomo 1: das várias espécies de contrato, do seguro. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 733.
[3] DELGADO, José Augusto. Comentários ao novo Código Civil, volume XI, tomo 1: das várias espécies de contrato, do seguro. Rio de Janeiro: Forense, 2004. P. 740.
[4] TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro: de acordo com o novo código civil brasileiro. 2. Ed. Ver., atual e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. P. 173
[5] MARTINS, João Marcos Brito. O contrato de seguro: comentado conforme as disposições do código civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. P. 136.
[6] BECHARA, Ricardo. Direito de Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria. Rio de Janeiro: Forense, 2006. P. 391.
[7] ALVIM, Pedro. O Seguro e o Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 16.
[8] O cônjuge no novo Código Civil. Disponível em http://estado.estadao.com.br/editoriais/03/04/12/aberto001.html. Acesso em 10 de novembro de 2003.
[9] CASAES, José Maria Trepat. Código Civil Comentado, volume VIII. Ed. Atlas, 2003 p. 294