Seguro saúde. Breves comentários ao acórdão exarado no REsp nº 1.471.569 do STJ, cuja ementa a seguir se expõe

 Por RICARDO BECHARA SANTOS.

“RECURSO ESPECIAL Nº 1.471.569 – RJ (2014/0187581-7) – RELATOR: MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA – RECORRENTE: UNIMED NORTE FLUMINENSE COOPERATIVA DE TRABALHO MÉDICO).

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PLANO DE SAÚDE COLETIVO EMPRESARIAL. DENÚNCIA DO CONTRATO PELA OPERADORA. RESCISÃO UNILATERAL. LEGALIDADE. MIGRAÇÃO DE USUÁRIO PARA PLANO INDIVIDUAL. MANUTENÇÃO DAS CONDIÇÕES ASSISTENCIAIS. PREÇO DAS MENSALIDADES. ADAPTAÇÃO AOS VALORES DE MERCADO. REGIME E TIPO CONTRATUAIS DIVERSOS. RELEVÂNCIA DA ATUÁRIA E DA MASSA DE BENEFICIÁRIOS.

  1. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se a migração do beneficiário do plano coletivo empresarial extinto para o plano individual ou familiar enseja não somente a portabilidade de carências e a compatibilidade de cobertura assistencial, mas também a preservação dos valores das mensalidades então praticados. 2. Os planos de saúde variam segundo o regime e o tipo de contratação: (i) individual ou familiar, (ii) coletivo empresarial e (iii) coletivo por adesão (arts. 16, VII, da Lei nº 9.656/1998 e 3º, 5º e 9º da RN nº 195/2009 da ANS), havendo diferenças, entre eles, na atuária e na formação de preços dos serviços da saúde suplementar. 3. No plano coletivo empresarial, a empresa ou o órgão público tem condições de apurar, na fase pré-contratual, qual é a massa de usuários que será coberta, pois dispõe de dados dos empregados ou servidores, como a idade e a condição médica do grupo. Diante disso, considerando-se a atuária mais precisa, pode ser oferecida uma mensalidade inferior àquela praticada aos planos individuais. 4. Os contratos de planos privados de assistência à saúde coletivos podem ser rescindidos imotivadamente após a vigência do período de 12 (doze) meses e mediante prévia notificação da outra parte com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias (art. 17, parágrafo único, da RN nº 195/2009 da ANS). A vedação de suspensão e de rescisão unilateral prevista no art. 13, parágrafo único, II, da Lei nº 9.656/1998 aplica-se somente aos contratos individuais ou familiares. 5. A migração ou a portabilidade de carências na hipótese de rescisão de contrato de plano de saúde coletivo empresarial foi regulamentada pela Resolução CONSU nº 19/1999, que dispôs sobre a absorção do universo de consumidores pelas operadoras de planos ou seguros de assistência à saúde que operam ou administram planos coletivos que vierem a ser liquidados ou encerrados. A RN nº 186/2009 e a RN nº 254/2011 da ANS incidem apenas nos planos coletivos por adesão ou nos individuais. 6. Não há falar em manutenção do mesmo valor das mensalidades aos beneficiários que migram do plano coletivo empresarial para o plano individual, haja vista as peculiaridades de cada regime e tipo contratual (atuária e massa de beneficiários), que geram preços diferenciados. O que deve ser evitado é a abusividade, tomando-se como referência o valor de mercado da modalidade contratual. 7. Nos casos de denúncia unilateral do contrato de plano de saúde coletivo Documento: 57215727 – EMENTA / ACORDÃO – Site certificado – DJe: 07/03/2016 Página 1 de 2 Superior Tribunal de Justiça empresarial, é recomendável ao empregador promover a pactuação de nova avença com outra operadora, evitando, assim, prejuízos aos seus empregados, pois não precisarão se socorrer da migração a planos individuais, de custos mais elevados. 8. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, João Otávio de Noronha (Presidente) e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 1º de março de 2016 (Data do Julgamento) Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Relator.”

Trata-se de mais uma bem lançada peça decisória de relatoria do ilustre Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, desta feita, como se vê da ementa acima transcrita, versando tema relacionado ao seguro saúde que, por unanimidade, reverteu decisão de segunda instância, cunhando entendimento, a nosso ver acertado, de que operadora de plano de saúde não é obrigada a manter preços em caso de migração de plano coletivo para individual.

Com tal assertiva, o venerando acordão prestigia fundamentos de ordem técnica e atuarial que, necessariamente, hão da mesma forma de presidir em tal modalidade de seguro, cujas operações vêm sofrendo as agruras de interpretações meramente caritativas, sem levar em conta a lógica do seguro, não sem lembrar de que, consoante o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde, conquanto direito de todos, é dever primordial do Estado, que não pode nem deve ser substituído pelo setor privado, regido por regras que lhe são próprias e distintas das que regem o setor público (as operadoras privadas de planos e seguros saúde não operam sob regime de concessão), não sem lembrar de que a saúde não tem preço, mas a medicina tem seus custos. Altos custos, por sinal, com procedimentos, tecnologias, medicamentos e materiais, que vem sufocando o setor da Saúde Suplementar, como bem assinalou SOLANGE BEATRIZ, MD presidente da FenaSaùde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), em palestra recentemente proferida no CVG (Clube de Vida em Grupo), sem, contudo, serem acompanhados pela equivalência da contrapartida dos preços pagos pelos segurados e beneficiários, submetidos ainda ao revés de um sistemático controle prévio de preço pelo Estado Regulador que muita vez desconsidera as planilhas de custo apresentadas pelas Operadoras. Também observado por SOLANGE BEATRIZ, que “a sustentabilidade do sistema tem pautado a preocupação de todos que atuam no setor por duas principais razões: a acelerada evolução dos custos da saúde e a solidariedade intergeracional…

Vale também destacar, que o custo médico-hospitalar bate recordes nunca experimentados, sabido por fontes fidedignas que o índice de Variação de Custos Médico-Hospitalares (VCMH) registrou alta de 19,3% nos 12 meses encerrados em dezembro de 2015, sendo essa a maior variação registrada pelo indicador produzido pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) desde 2007, eis que até junho de 2015, o VCMH/IESS apresentava alta de 17,2% no acumulado de 12 meses. E para tornar o quadro ainda mais severo, a título de comparação, a inflação geral do País, medida pelo IPCA, ficou em 10,67% no ano passado.

Bem a propósito, em face da sensibilidade que caracteriza o contrato de seguro saúde, por tão eloquente a sua função social, não é incomum se ver confusão entre a possível fragilidade de uma parte com a debilidade de sua pretensão jurídica, valendo lembrar as palavras do eminente Desembargador CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO: “poderia até parecer socialmente bom querer aumentar a responsabilidade das seguradoras por razões exclusivamente humanitárias, mas seria injusto. E o que é injusto nunca será socialmente bom”.

 

Oportuno também lembrar visão madura de uma das mais influentes Ministras do STJ, acerba defensora dos direitos dos consumidores, a gaúcha NANCY ANDRIGHI, em um de seus votos versando a função social do contrato, refreando tendências que esfumaçam a lógica e a razão que devem presidir os julgamentos serenos e justos, no campo da humanização das relações econômicas. Assim ponderou a Ministra, não sem lembrar de que há escolhas e arbítrios nos riscos a que estamos expostos: “a função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de riquezas”. (3ª T. do STJ, REsp nº 803.481, Relatora Ministra Nancy, DJU de 1/8/07)

Com efeito, e voltando ao acórdão objeto dos presentes comentários e à ementa ao início transcrita, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitou recurso da Unimed Norte Fluminense Cooperativa de Trabalho Médico, e decidiu que a empresa não está obrigada a manter os valores de mensalidades após a migração de plano coletivo empresarial para plano individual, destacando o eminente Ministro Relator que a empresa não cometera nenhuma ilegalidade eis que seguiu passo e compasso os dispositivos legais pertinentes.  Não sem advertir que, no caso de migração de um plano coletivo empresarial para um plano individual, o segurado/beneficiário tem o direto de ter a mesma cobertura e não precisa observar período de carência, mas em nenhum momento é garantido um preço igual. A garantia existente é a de um preço compatível com o mercado e com as boas e necessárias regras atuariais que também regem o seguro saúde, igualmente submetido ao regime de solvência.

Colhe-se do bojo do acórdão em comento, que a Operadora tinha convênio com a Prefeitura de Itaperuna (RJ) para oferecer planos de saúde aos servidores municipais. Após impasse na pactuação do reajuste, a Operadora optou por rescindir unilateralmente o contrato (na verdade deixou de renovar o contrato no seu vencimento, o que lhe é permitido fazê-lo unilateralmente nos contratos coletivos) alegando que o convênio causou prejuízo à empresa devido a valores defasados, ocasião em que os servidores tiveram a possibilidade de migrar para um plano individual, mas que, no entanto, insatisfeitos com os valores mais altos do novo plano, optaram por ingressar com ação judicial objetivando manter os valores das mensalidades do plano coletivo no plano individual migrado, resultando que em primeira e segunda instâncias os servidores lograram êxito nos seus intentos.

Inconformada e com espeque na legislação que rege os planos e seguros saúde, a Operadora aparelhou recurso junto ao STJ, este que julgou conforme a ementa ao início transcrita, por unanimidade, com base no voto do Eminente Relator Ministro VILLAS BÔAS CUEVA, que o sustentou e o fundamentou no sentido de que a decisão imposta à empresa causaria prejuízos significativos sem qualquer amparo legal, valendo transcrever os seguintes excertos do acórdão: “As mensalidades cobradas devem guardar relação com os respectivos riscos gerados ao grupo segurado, sob pena de prejuízos a toda a sociedade por inviabilização do mercado de saúde suplementar, porquanto, a médio e longo prazo, as operadoras entrariam em estado de insolvência.

Ressalte-se que a migração de plano coletivo para individual, como se dera no caso julgado, por si só já constitui benefício ao consumidor, tendo em vista as vantagens do plano individual em relação ao coletivo, inclusive no que tange a aspectos de sua rescisão e nos seus índices de reajuste nas respectivas datas base, haja vista o disposto no artigo 13 e inciso II de seu parágrafo único, da Lei 9.656/98, sobre o qual ponderamos nas linhas que seguem. Senão, vejamos.

Pelo que se dessume do mencionado dispositivo, escrito com inescondível propósito de proteger o consumidor, os seguros e planos privados de assistência à saúde, sejam coletivos ou individuais, terão “renovação automática” a partir do vencimento do prazo inicial de vigência, descabendo a cobrança de qualquer ônus adicional no ato da renovação (art. 13 caput).

 

Contudo, nos contratos individuais, impõe-se uma vigência mínima de um ano e a vedação da sua “suspensão ou a rescisão unilateral“, salvo por fraude ou não pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência, sendo vedadas a suspensão e a rescisão unilateral, em qualquer hipótese, durante a ocorrência da internação do titular (art. 13, parágrafo único, incisos II e III).

 

A vigência mínima de um ano se impôs na lei notadamente para coibir eventual prática de contratos com prazo de vigência igual ou menor que o da própria carência, situação que obtusamente permitiria a rescisão do contrato antes mesmo que o consumidor tivesse a oportunidade de usufruir de todos os benefícios, o que certamente caracterizaria prática abusiva.

 

Quanto à regra de vedação de suspensão ou rescisão unilateral, ressalvados os casos de fraude e de inadimplência, o propósito teria sido o de tutelar o consumidor contra a “denúncia vazia ou desmotivada” por parte do fornecedor. Porém, no afã de proteger, poderia parecer que o legislador estivesse com isso criando uma contratação ad eternum, que agrilhoaria o fornecedor ao contrato, e a um contrato, dentre o mais, regido pelo dirigismo estatal de fortes pendores emocionais e sociais, com reajustes de preços controlados e que dele só poderia se alforriar por aquelas “justas causas” do art. 13, II. A situação seria absurda, num regime constitucional de livre concorrência e de economia de mercado, já que o setor privado, como algures dito, não pode nem deve substituir o Estado na sua obrigação de dar assistência à saúde da população como prestador de serviço público, que costuma ser financiado por via dos tributos e contribuições (CF, arts. 196 e 199). Todavia, como o direito não pode conviver com o absurdo, a melhor interpretação que se poderia colher seria, permita-me vênia, a de que tudo isso só pudesse transcorrer dentro dos períodos ânuos de vigência, como que se de um ano fosse apenas o prazo mínimo e que, daí, a cada proximidade do aniversário do contrato, fosse dado às partes o direito de não renová-lo mediante as competentes notificações, até porque medeia considerável diferença entre “não renovação” e “rescisão” de um contrato, tal como, aliás, já sucede nos contratos de seguro de vida, onde a renovação é automática (pelo menos uma vez a teor do art. 774 do novo Código Civil), mas não impeditiva de aviso prévio para a não renovação (sugere-se que esse aviso prévio seja disciplinado na apólice). Por isso a renovação automática a que alude o caput do art. 13 não poderia, ao menos nos seguros coletivos, ter o sentido de cercear, legal e juridicamente, o direito que as partes têm em um contrato bilateral e oneroso, como soe ser o de seguro saúde, de não renová-lo ao cabo de cada vencimento anual, pois o silêncio das partes é que reconduziria tacitamente o contrato em suas renovações por outros tantos períodos de um, ou de mais anos. Não fosse essa a intenção do legislador, não teria feito ele referência a certo prazo mínimo de vigência, renovável automaticamente, teria ele, isto sim, escrito no referido art. 13 da lei que o contrato era de prazo indeterminado, mas rescindível apenas em determinadas condições que a lei determinasse sem permitir a “denúncia vazia”. Afinal, o legislador jamais estabelecera que o seguro saúde fosse vitalício, cativo!…

 

Por falar em rescisão de contrato bilateral, oneroso, como soe ser o de seguro saúde, e em repúdio à ideia de eternidade contratual, oportuno trazer à colação decisão outra do STJ, da lavra do eminente Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, proferida, também por unanimidade, em sede do AgRg no Agravo de instrumento nº 988.736-SP, julgado em 23/07/2008, quando ali se resgatou, como regara geral, que “É princípio de direito contratual de relações continuativas que nenhum vínculo é eterno”, valendo extrair da ementa o seguinte complemento: “Se uma das partes manifestou sua vontade de rescindir o contrato, não pode o Poder Judiciário impor a sua continuidade…”

 

Nem a referência a “prazo indeterminado” constante do art. 1º, inciso I, da mesma lei, poderia ter o condão de transformar uma “renovação automática” em “renovação obrigatória”: a uma porque no art. 1º o legislador assim se referiu na definição do plano no seu sentido operacional de prestação continuada dos serviços, enquanto que no art. 13 da mesma lei para especificar a questão da renovação, do prazo inicial e do prazo mínimo dos contratos firmados individualmente, por isso o art. 13, como preceito mais específico, no mesmo sistema da lei, prevalece no seu sentido próprio de que a renovação é automática sim, mas não determinante da eternidade do contrato, até porque, a duas, a indeterminação do prazo, no contexto jurídico brasileiro, quiçá do mundo, não teria de qualquer forma o significado de permanente, vitalício, eterno, pois se assim o fosse diria o legislador. E lembre-se de que, se caísse o contrato em prazo indeterminado após garantido o primeiro prazo anuo de vigência, a regra dominante seria a de que poderia ele findar pela notificação prévia, normalmente de trinta, sessenta ou noventa dias, por qualquer das partes, conforme se estipular.

 

Aliás, o próprio art. 774, antes citado, do Código Civil, que nos termos do art. 777 do mesmo diploma legal tem aplicação subsidiária ao contrato de seguro saúde, cunhou de certo modo aversão a mecanismos que resultem em perenização contratual ao vedar a recondução tácita do contrato pelo mesmo prazo por mais de uma vez.

 

Nesse propósito vale também lembrar de que a questão da inadimplência no seguro saúde continua regida pela Lei 9.656/98 em face do supracitado art. 777 do Código Civil, segundo o qual todo o capítulo reservado ao contrato de seguro aplica-se apenas no que couber aos seguros regidos por leis próprias, prevalecendo, portanto, o art. 13 daquela lei especial sobre a regra do art. 763 do novo Código Civil, este que determina a perda do direito à indenização para o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação.

 

Fechado esse parêntesis, nem se diga que a possibilidade de não renovação do contrato após o primeiro ano de vigência garantido pela lei, afrontaria o direito do consumidor, já que ele poderá, no regime de livre concorrência, contratar novo plano em outra empresa dentre as muitas existentes, carregando as suas carências etc…

 

De chofre, já se pode concluir que, nos contratos coletivos de seguro saúde, a questão está mais livre para ser disciplinada no instrumento contratual, porquanto as vedações supra são restritas aos seguros individuais, razão pela qual cuidados mais redobrados hão de ser adotados na redação do contrato no que tange, por exemplo, a essas questões da rescisão, não renovação, inadimplência, dentre outras no seguro saúde, com regras diferenciadas para os seguros coletivos e para os seguros individuais, eis que, tal como redigida na lei do seguro saúde e somados com os eflúvios do Código Consumerista, acaba emanando a encarnação de Santa Edwiges, padroeira dos devedores, tanto que o art. 71 deste Código tipifica, como infração penal, o fato de o fornecedor “utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira em seu trabalho, descanso ou lazer. Difícil, portanto, se encontrar um momento ou espaço mais adequado para se cobrar uma dívida do consumidor!…

 

Mas em seu extenso e muito bem alicerçado voto, Sua Excelência o Ministro RICARDO CUEVA, foi por demais rico e exaustivo em sua fundamentação, abordando inclusive sobre a formação de preços das mensalidades dos planos de saúde individuais e coletivos empresariais (também sobre migração, portabilidade e muito mais), mostrando quão distintas são suas respectivas bases de cálculo, valendo transcrever os seguintes trechos de seu voto:

“Como cediço, os planos de saúde variam segundo o regime e o tipo de contratação. Assim, consoante o art. 16, VII, da Lei nº 9.656/1998, há três modalidades: (i) individual ou familiar, (ii) coletivo empresarial e (iii) coletivo por adesão. O plano de saúde individual é aquele em que a pessoa física contrata diretamente com a operadora ou por intermédio de um corretor autorizado. A vinculação de beneficiários é livre, não havendo restrições relacionadas ao emprego ou à profissão do usuário em potencial (art. 3º da RN nº 195/2009 da ANS). Já o plano de saúde coletivo é aquele contratado por uma empresa, conselho, sindicato ou associação junto à operadora de planos de saúde para oferecer assistência médica e/ou odontológica às pessoas vinculadas às mencionadas entidades bem como a seus dependentes. Como visto, são dois os regimes de contratação de planos de saúde coletivos: o coletivo empresarial, o qual garante a assistência à saúde dos funcionários da empresa contratante em razão do vínculo empregatício ou estatutário (art. 5º da RN nº 195/2009 da ANS), e o coletivo por adesão, contratado por pessoas jurídicas de caráter profissional, classista, como conselhos, sindicatos, cooperativas e associações profissionais (art. 9º da RN nº 195/2009 da ANS).”

 

Quanto à formação de preços dos serviços de saúde suplementar e ao reajuste das mensalidades, pondera o Ministro:

“(…) o cálculo difere entre as três modalidades de plano de saúde. Com efeito, no plano coletivo empresarial, a empresa ou o órgão público tem condições de apurar, na fase pré-contratual, qual é a massa de usuários que será coberta, pois dispõe de dados dos empregados ou servidores, como a idade e a condição médica do grupo. Diante disso, considerando-se a atuária mais precisa, pode ser oferecida uma mensalidade inferior àquela praticada aos planos individuais. Ademais, ao se constatar, na execução contínua do contrato, um desequilíbrio econômico-financeiro devido à alta sinistralidade da massa e à inflação acumulada no período, pode a operadora, em livre negociação com a estipulante, pactuar um reajuste que viabilize a manutenção dos serviços de saúde suplementar. Em outras palavras, o reajuste anual nesse tipo de contratação é apenas acompanhado pela ANS, para fins de monitoramento da evolução dos preços e de prevenção de práticas comerciais abusivas, não necessitando, todavia, de sua prévia autorização. Assim, não havendo mais interesse na prestação dos serviços por qualquer das partes, os contratos de planos privados de assistência à saúde coletivos podem ser rescindidos imotivadamente após a vigência do período de 12 (doze) meses e mediante prévia notificação da outra parte com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias (art. 17, parágrafo único, da RN nº 195/2009 da ANS). Cumpre ressaltar que a vedação de suspensão e de rescisão unilateral prevista no art. 13, parágrafo único, II, da Lei nº 9.656/1998 aplica-se somente aos contratos individuais ou familiares.”

 

Nesse sentido, ilustra o seu voto com um desfiar de julgados pertinentes, a começar pelo

 

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PLANO DE SAÚDE. RESILIÇÃO UNILATERAL. PLANO COLETIVO. CDC. INAPLICABILIDADE. ADMITIDA RESCISÃO UNILATERAL DO PLANO COLETIVO/EMPRESARIAL. SÚMULA 83/STJ. DISSÍDIO NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.” (AgRg no REsp nº 1.421.266/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Terceira Turma, DJe 23/10/2015) “AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE COLETIVO. RESCISÃO UNILATERAL. POSSIBILIDADE. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. É possível a resilição unilateral do contrato coletivo de saúde, uma vez que a norma inserta no art. 13, II, b, parágrafo único, da Lei 9.656/98 aplica-se exclusivamente a contratos individuais ou familiares. Precedentes. 2. Agravo regimental não provido.” (AgRg no AREsp nº 539.288/SP, Rel. Ministro Documento: 57214195 – RELATÓRIO E VOTO – Site certificado Página 6 de 13 Superior Tribunal de Justiça RAUL ARAÚJO, Quarta Turma, DJe 9/2/2015) “RECURSO ESPECIAL – SEGURO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DE CONTRATAÇÃO COLETIVA – PACTUAÇÃO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI Nº 9.656/1998 – APLICAÇÃO, EM PRINCÍPIO, AFASTADA – CLÁUSULA QUE PREVÊ A RESILIÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE COLETIVO, COM PRÉVIA NOTIFICAÇÃO – LEGALIDADE – A VEDAÇÃO CONSTANTE DO ARTIGO 13 DA LEI Nº 9.656/1998 RESTRINGE-SE AOS PLANOS OU SEGUROS DE SAÚDE INDIVIDUAIS OU FAMILIARES – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – VIOLAÇÃO – INOCORRÊNCIA – DIREITO DE DENÚNCIA UNILATERAL CONCEDIDA A AMBAS AS PARTES – RECURSO IMPROVIDO. I – O contrato de assistência médico-hospitalar em tela, com prazo indeterminado, fora celebrado entre as partes em data anterior à entrada em vigor da Lei nº 9.656 de 1998, o que, em princípio, afastaria sua incidência à espécie; II – O pacto sob exame refere-se exclusivamente a plano ou seguro de assistência à saúde de contratação coletiva, enquanto que o artigo 13, parágrafo único, II, ‘b’, aponta a nulidade da denúncia unilateral nos planos ou seguros individuais ou familiares; III – O Código de Defesa do Consumidor considera abusiva e, portanto, nula de pleno direito, a cláusula contratual que autoriza o fornecedor a rescindir o contrato unilateralmente, se o mesmo direito não for concedido ao consumidor, o que, na espécie, incontroversamente, não se verificou; IV – Recurso especial não conhecido.” (REsp nº 889.406/RJ, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Terceira Turma, DJe 17/3/2008)

 

Por sua vez, no plano de saúde individual ou familiar, lembra o Ministro Relator que

 

“não existe livre negociação de preço sobre a mensalidade que será paga diretamente pelo beneficiário, visto que os valores praticados devem ser aqueles compatíveis com o mercado e previamente aprovados pela ANS, mediante notas técnicas, devendo ser cobrados indistintamente de todos que contratem aquela cobertura específica no mesmo período, segundo a faixa etária de cada um. Nessa modalidade, o preço e os reajustes anuais são vinculados à prévia autorização da ANS, não guardando o índice de reajuste correlação com a sinistralidade do plano de saúde em si, mas com outros parâmetros adotados em metodologia particular.”

 

Quanto à migração de planos de saúde,  adaptação e portabilidade de carências, aduz:

“A migração de plano de saúde e a portabilidade de carências, incluídas as especiais e as extraordinárias, são institutos similares, mas possuidores de regulamentação distinta. Enquanto o primeiro se refere a contratos firmados em data anterior a 1º/1/1999 (contratos antigos), efetivando-se no âmbito da mesma operadora, o segundo abrange o período posterior, sem limitação de operadora. De fato, conforme a RN nº 254/2011 da ANS, a migração é a celebração de novo contrato de plano privado de assistência à saúde ou o ingresso em contrato de plano privado de assistência à saúde coletivo por adesão, no âmbito da mesma operadora, referentes a produtos com registro em situação “ativo”, concomitantemente com a extinção do vínculo ou do contrato, anterior a 1º de janeiro de 1999 (art. 2º, II). O direito de migração é garantido para os beneficiários de planos antigos, individuais ou familiares ou coletivos por adesão, sendo dispensada nova contagem de carências. Além disso, deve haver compatibilidade com o plano de origem e adequação à faixa de preço, cujos valores não podem ser superiores aos praticados em condições normais de comercialização do mesmo produto. Desse modo, na migração, comumente a mensalidade é majorada, já que é necessário o enquadramento do valor do plano antigo em faixa de preço compatível à atualidade de mercado, segundo a faixa etária do usuário.

Já a portabilidade de carências “(…) é a contratação de um plano privado de assistência à saúde individual ou familiar ou coletivo por adesão, com registro de produto na ANS, em operadoras, concomitantemente à rescisão do contrato referente a um plano privado de assistência à saúde, individual ou familiar ou coletivo por adesão, contratado após 1º de janeiro de 1999 ou adaptado à Lei nº 9656, de 1998, em tipo compatível, observado o prazo de permanência, na qual o beneficiário está dispensado do cumprimento de novos períodos de carência ou cobertura parcial temporária” (art. 2º, VII, da RN nº 186/2009 da ANS). O essencial, na portabilidade de carências, é encontrar o tipo compatível para transferência, conceituado este como o tipo que “preencher os requisitos de segmentação assistencial, tipo de contratação individual ou familiar, coletivo por adesão ou coletivo empresarial e faixa de preço, nos termos desta Resolução” (art. 2º, VI, da RN nº 186/2009 da ANS). Há ainda a portabilidade especial de carências, que poderá ser exercida em três situações: a) por beneficiário de operadora que tenha seu registro cancelado pela ANS ou que esteja em processo de liquidação extrajudicial, b) por dependente que perdeu seu vínculo com o plano, seja por falecimento do titular seja por perda da condição de dependente, e c) por ex-empregado demitido ou exonerado sem justa causa ou aposentado durante o período de manutenção da condição de beneficiário garantida pelos arts. 30 e 31 da Lei nº 9.656/1998 (vide arts. 7º-A ao 7º-D da RN nº 186/2009 da ANS). Tanto a migração quanto a portabilidade de carências não se confundem com a adaptação, que é a adequação do contrato antigo ao sistema trazido pela Lei nº 9.656/1998, facultada ao usuário; isto é, a avença continua a mesma, mas com ajustes ante às inovações surgidas.”

 

Aliás, em outra decisão do STJ, de relatoria do mesmo e insigne Ministro RICARDO CUEVA, proferida no final do ano passado (23/11/15), o tema já havia sido objeto de apreciação pela Corte, que decidiu no mesmo sentido do acórdão ora comentado, qual no de que plano de saúde pode alterar regime de custeio, desde que mantenha a cobertura a que o contratante aposentado ou demitido tinha direito quando da vigência do contrato de trabalho. Naquela oportunidade, a questão foi levada ao STJ pelas mãos da Operadora Sul América Companhia de Seguros e Saúde S/A.

 

O relator, ministro VILLAS BÔAS CUEVA, afirmou em seu voto que, entre as garantias asseguradas, não há direito adquirido a modelo de plano de saúde ou de custeio. Empregadora e seguradora podem redesenhar o sistema e alterar valores para evitar o colapso do plano, contanto que não haja onerosidade excessiva ao consumidor ou discriminação contra o idoso.

No caso, um trabalhador aposentado entrou com ação contra a empresa seguradora com o objetivo de manter o plano de saúde coletivo empresarial nas mesmas condições de cobertura e com os valores da época que estava em vigor o contrato de trabalho. A seguradora contestou alegando que no momento do desligamento havia sido feito novo plano coletivo para todos os empregados e que não poderia prorrogar o contrato anterior.

O juízo de primeira instância determinou que, se o empregado quisesse manter o plano, deveria pagar mensalidade do novo contrato firmado entre a seguradora e a empresa. No julgamento da apelação, ele conseguiu a manutenção do plano nas mesmas condições do período em que mantinha vínculo empregatício, desde que assumisse o pagamento integral das prestações.

Seguindo o voto do relator, a turma deu provimento ao recurso da Sul América para restabelecer a sentença.

Estes os meus comentários.

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